segunda-feira, 14 de outubro de 2024

Dois desabafos

 




Figurinhas fofas

 

Temos assistidos de boca aberta à representação teatral mais canastrona de que há memória, com dois actores que mais parecem figurinhas de presépio. Por que lhes chamo figurinhas de presépio, correndo o risco de continuar a causar alguns amuos a certos amigos meus? Porque Pedro Nuno e Luís Filipe, quais pastores, lavadeiras ou reis magos, fazem tudo o que fazem estas figuras de presépio que nós colocamos amorosamente sobre o musgo para gáudio dos mais pequenos: nada. Ou melhor: empatam, atrasam, procrastinam, à espera do dia de Reis para voltarem para dentro da caixa de sapatos.  

            O Orçamento vai ser debatido e votado na generalidade nos próximos dias 30 e 31 deste mês. Se for aprovado, com algumas das suas alíneas mais ou menos onerosas para os portugueses, será menos uma crise imediata que o nosso país tem de enfrentar.  Se não passar pelo crivo do Parlamento, vêm aí as temidas eleições antecipadas. E, claro, a gestão do país por duodécimos e outras tretas, todas elas prejudiciais para quem se levanta diariamente para ir trabalhar. Independentemente do resultado, não teriam sido necessárias tantas propostas, contra-propostas ou contra-contra-propostas.

            Admirado estou eu que Montenegro e os seus ministros e secretários de estado se tenham aguentado até aqui. O Governo é, desde o início, uma manta de retalhos, um Ser com várias peças que, tal como a Criatura de Victor Frankenstein[1], se vai revelando com uma capacidade absoluta de aniquilar o seu Criador. Se tal não aconteceu no célebre romance de Mary Shelley, poderá vir a acontecer nesta história real e lusa, com ou sem o Orçamento aprovado, e que, ao contrário das tragédias narradas no livro, mais parece o resultado de uma comédia de enganos. Agora, há que assumir as culpas. E é a maioria do povo que as deve assumir: o engano foi seu… quando o elegeu.

   

            Uma nota final para sublinhar a triste intervenção, no passado dia 8, de Luís Filipe sobre o Plano para os Media: quando um primeiro-ministro e um seu repetidor, chamado Pedro Duarte, ministro dos Assuntos Parlamentares, têm o desplante e a tenebrosa ousadia de dizer que “não gostam de jornalistas ofegantes” e que “não gostam de perceber que há jornalistas que se limitam a expressar o que lhes sopram ao ouvido”, algo começa a estar muito, mas muito podre, neste país a caminho de um abismo sem retorno. Ao longe, ouvi o falsete daquela voz vinda das trevas a proclamar “Tudo pela Nação, nada contra a Nação”[2]. Tratar os jornalistas como se fossem miúdos mal comportados era a última coisa que se esperava do primeiro-ministro do meu país. Há que estar alerta e preparados para dizer a um Montenegro com “olhos doces”, não sei por onde vou, mas “sei que não vou por aí”[3].

 

 

Transparências

 

Com a idade começamos a ficar mais transparentes. Já não temos paciência para ocultarmos os nossos sentimentos, os nossos gostos e desgostos. Os que não nos conhecem mostram desagrado se algum comentário nosso lhes faz dói-dói, os nossos amigos começam a esperar de nós, exactamente esses comentários, essas opiniões, que eles próprios, tantas vezes, subscrevem. Deixamos, finalmente, de ser uma espécie de instituição pública em que há uma lei que nos obriga a sermos iguais para toda a gente. Passamos a dar mais do nosso tempo a quem nos oferece o tempo que tem, e começamos a apreciar os pequenos momentos com algumas pessoas que, pela sua intensidade, são os melhores, os mais consoladores, os que preenchem os longos silêncios de quem, por circunstâncias da vida e da morte, se afastou fisicamente de nós. 

 

A acrescentar a estes pequenos caprichos, começamos com a tendência nunca antes vista de ficar mais tempo em casa, gozando cada momento e cada metro quadrado. E se nos apetecer uma escapadinha ao fim da tarde, então vamos até às Fontainhas e atiramos uma moeda para a taça como se, enlaçados com a nossa cara-metade, estivéssemos a sonhar junto à Fontana di Trevi. E, depois, quer tenhamos viajado até Itália, quer tenhamos apenas subido três ou quatro ruas da nossa cidade, regressamos a  casa, à nossa ilha, ao nosso reduto, ao nosso forte, à nossa sauna, nossa ou arrendada, maior ou mais pequena, mais luxuosa ou mais minimalista, mais rica ou menos rica. Porque também é aqui que regressamos, após um dia de desânimo, após uma tarefa não concluída ou um projecto falhado. É aqui, no nosso lar, na nossa casa, que sentimos a segurança e o conforto que não experimentamos em qualquer outro lugar. E o nosso lar é tudo: é a nossa mulher, o nosso marido, os nossos pais, a nossa namorada ou namorado, os nossos  filhos e netos, o nosso cão, gato ou periquito... ou nós próprios, apenas.   

 

E, quando tudo se proporciona, se na nossa casa podemos juntar alguns amigos, à volta de um livro ou à volta de coisa nenhuma, em almoços épicos, porque profundos e intermináveis, então, aí, chegamos ao verdadeiro Paraíso.

Isto não é um recado. É um desejo. Só não percebe quem não quiser.

 

 

João Luís Nabo


In "O Montemorense", Outubro 2024



[1] Victor Frankenstein é a personagem-título e protagonista do romance de 1818, de Mary Shelley, Frankenstein ou O Prometeu Moderno

[2] Um dos mais queridos lemas do ditador António de Oliveira Salazar (1889-1970).

[3] Alusão ao poema Cântico Negro, de José Régio.

Distraídos crónicos...


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