terça-feira, 12 de setembro de 2023

Duas notas breves

 




Francisco

 

Muito se escreveu sobre a vinda do Papa Francisco a Portugal e sobre a Jornada Mundial da Juventude. Já muito se tinha escrito sobre o Papa Francisco e sobre o dedo que ele começou a pôr nas feridas da Igreja, logo no início do seu pontificado. Veio, logo que foi eleito, parece-nos, escancarar a porta que João Paulo II tinha deixado entreaberta. Meio disfarçados até então, os escândalos de pedofilia no seio da Igreja são assumidos sem meias tintas e condenados por Bergoglio, que quer justiça para as vítimas e duras penas para os que vierem a ser condenados.

Mas não foi apenas com estes casos que o seu tempo na cadeira de Pedro se tem revelado inspirador e profícuo. A sua forma de entender os evangelhos, reescrevendo-os sempre que se pronuncia sobre a vida de todos nós, crentes e não crentes, mostra-nos que o tempo, as leis, as mentalidades no tempo de Cristo, e nos séculos antes da Sua vinda, não se podem aplicar e serem entendidos da mesma forma, à luz deste século XXI, que corre vertiginoso ao nosso lado. Francisco transformou o Deus Todo-Poderoso e vingativo do Antigo Testamento num Pai compreensivo e tolerante que eu não conheci quando, criança, andava na catequese. O Deus castigador, que, qual Big Brother de Orwell, andava sempre de olho nas nossas acções, nos nossos pensamentos e nos nossos desejos, é hoje, nas palavras de Francisco, um Pai que, como todos os bons pais, aceita todos os seus filhos, por muito desviados que possam andar dos caminhos que a Igreja decidiu classificar como os caminhos do Bem.

Se o Papa Francisco fosse Deus, personalizado e livre de todos os insondáveis mistérios com que, ao longo dos séculos, os homens da Igreja O cobriram, eu repensaria as minhas opções de fé e reformularia as minhas vivências espirituais. Mas enquanto na Igreja não houver uma real e generalizada prática dos ensinamentos deste verdadeiro homem de Deus… continuarei a admirá-lo, a defendê-lo e a seguir o seu pensamento… mas do lado de fora. 

 

António e Marcelo

 

            Portugal, esta nossa pátria “muito amada”, é um país sem rumo e sem políticos capazes de fazerem deste pequeno território um exemplo perante todos os outros do planeta: a economia está exponencialmente… a estagnar. As fábricas ficam sem matérias-primas para os seus produtos. Os combustíveis aumentam, assim como o preço de tudo o que deles depende: bens alimentares, luz, gás... Os professores continuam a lutar pelos seus direitos, porque nunca, em tempo algum, no decorrer desta democracia, trataram tão mal uma das classes profissionais mais importantes e imprescindíveis à nossa sobrevivência. Os médicos do Serviço Nacional de Saúde continuam mal pagos e desrespeitados pelas tutelas. Os doentes fazem fila nos centros de saúde sem saberem se são ou não consultados pelo seu médico de família. As reformas de grande parte dos portugueses não são suficientes para as despesas da casa e ainda mais para os medicamentos e outras emergências. Os estudantes universitários conquistam com o seu esforço um lugar nas universidades mas, depois, os pais não têm dinheiro para o alojamento e para as propinas. Há cérebros enormes e utilíssimos ao país que são obrigados a ir embora para outras paragens onde o seu valor seja verdadeiramente reconhecido. As bolsas e os financiamentos de projectos de investigação são interrompidos nas universidades portuguesas sem se saber os motivos. Os montes e vales deste país estão queimados pelos fogos de Verão, que se repetem anualmente com consequências gravíssimas para tudo o que é ser vivo. As barragens e as albufeiras, os rios, os ribeiros, as reservas de água, estão a deixar ver o fundo, com resultados nefastos para a agricultura, pecuária e consumo humano. Continuam a viver e a dormir na rua, nas grandes cidades do país, independentemente das estações do ano, centenas e centenas de sem-abrigo, sem comida, sem dinheiro, sem tecto, sem futuro, muitos deles vítimas das políticas de habitação e de emprego que atiram para a rua quem, até então, tinha uma vida digna e razoavelmente feliz. (Põe-se um Presidente da República a distribuir sopa aos pobrezinhos, como se isso fosse a solução certa para resolver o problema.) Alimenta-se uma guerra no centro da Europa, respeitando os protocolos de auxílio e outras cenas impostas pela Nato, colocando o país à mercê de um míssil mal-parado do senhor Putin, que poderá atingir, quer a Ponte sobre o Tejo, quer o Castelo de Montemor. Figurões nacionais fazem figurinhas tristes em cenários de guerra, quando deveriam estar preocupados com o que se passa no seu próprio país. A extrema-direita portuguesa continua a ganhar terreno, não devido a mérito próprio mas pelo demérito da esquerda, que continua dividida e orgulhosa e a permitir que, aos poucos, tudo regresse ao que estava, enquanto caminhamos vertiginosamente para o cinquentenário do 25 de Abril.

            Tudo isto poderia ser resolvido, com tempo e com empenho. A questão é que os nossos políticos não têm nem uma coisa nem outra. Há escândalos nos gabinetes ministeriais, há gatunos à solta, a gozarem com o Zé Povinho, que já nem sequer tem força para lhes fazer um manguito. Os ricos aumentam de número e os pobres também. Mais explicações para quê?

Muitos de nós, patrióticos e amantes deste território que já foi de tantos estrangeiros, começamos a ficar cansados de sermos portugueses. Sobretudo quando o assunto nas televisões é, de manhã à noite, o amuo do nosso Primeiro-ministro no Conselho de Estado.

João Luís Brejo Nabo

In "O Montemorense", Setembro de 2023 


sexta-feira, 14 de julho de 2023

Antes de férias

 

 



O Piano do Tio Johnny

          Tenho um piano desde os meus dezoito anos. Foi, e é ainda, uma das minhas grandes paixões. Não apenas pela música que ele me tem permitido tocar nestas quatro décadas e meia, mas pela sua história e pelo espaço que tal instrumento foi conquistando na família.

Segundo umas investigações do meu amigo Ulf Ding, extraordinário pianista e construtor/afinador de pianos, o meu é de 1935, vencedor de vários concursos, e, calculem, foi de viagem até ao Brasil, de barco, onde passou uma temporada para, depois, regressar a Portugal onde o fui encontrar, numa propriedade perto de Coruche. O meu pai, sempre presente na minha vida, ao testemunhar (a princípio, um bocadinho contrariado) a minha paixão pela música, decidiu oferecer-me aquele instrumento, pressionado também pela minha querida professora de piano, Isabel Joaquina da Cruz, que lhe disse que sim, que valia apena o miúdo continuar a estudar a bela arte dos sons.

E assim foi. Feito o negócio com o proprietário, serviu de prolongada companhia à minha Mãe, também sempre na minha memória, e aos meus queridos vizinhos Toneca, Custódio, Jorge e Custódia Maria Cachola (a primeira pequena cantora que eu acompanhei ao piano) que, no nosso querido Bairro de São Pedro, dificilmente se desabituaram dos sons diários, quando me casei e trouxe aquele tesouro para a minha casa nova, na parte alta da Vila.

Ficou por ali um vazio. E ficou cheia a minha casa nova. E mais cheia ficou com o nascimento dos meus três filhos, que se habituaram a ver e a ouvir o pai a tocar todos ou quase todos os dias. Com eles, começou a praticar-se cá em casa uma Praxe muito simples, quase um ritual, porque isto da música é uma religião e os músicos são os seus sacerdotes: todas as crianças nascidas na família teriam de passar uns bons momentos a explorar o teclado do piano, a descobrir sons, melodias, dissonâncias, conforme a força e a agilidade dos seus dedinhos pequenininhos e rechonchudos. O João, a Joana e o Pedro foram os primeiros candidatos a pianistas sem, contudo, termos conseguido esse desiderato. Deram outros voos, igualmente extraordinários.

Depois, começaram a sentar-se naquele banco, para além da filharada, os sobrinhos, o Ricardo Romeiras, o João Pedro, a Marianinha e, mais tarde, os filhos dos sobrinhos, o Duarte, a Carminho, a Benedita… Também amigos e os filhos deles… Outros passaram por ali, de forma mais séria e cheia de compromisso, não foi Pedro, Paulo, Vera e Francisco? Até amigos adultos e sem tacto nenhum para a música se sentaram naquele banco e se divertiram a brincar com os sons… (A Sónia, o Ricardo e o Luís são exemplos disso mesmo, ainda que contrariem, hoje e sempre, a minha análise.)

E hoje, quando há uma ou outra visita da miudagem, quase todos apontam para o alto da escada e pedem para ir tocar no velho piano que a todos hipnotiza. E os que não vêm cá a casa, passam pela Igreja da Misericórdia com os pais-cantores, onde, minutos antes do início do ensaio do Coral de São Domingos, há sempre um bocadinho delicioso para estudar uma nova melodia com a pequenada e ver as mãos do Gustavo, do Tiago, do Dinis e do Jaiminho, pequeninas mas cada vez mais soltas e ousadas.

                                                 

                                      Segredos de Vila Nova

 Este subtítulo deveria estar escrito entre aspas. Porque é o nome de uma colecção de história inimagináveis e com finais absolutamente inesperados que me foram passando pela cabeça no último ano. Algum dos meus oito leitores tem segredos? Daqueles contados por amigos do peito e a quem prometeram nunca revelar a ninguém? Pois, também o autor do livro entrou de posse de vinte e quatro segredos e acabou por transformá-los noutras tantas histórias que o leitor irá explorar, tentando descobrir qual é o segredo mais próximo do seu. O livrinho está neste momento em fase de revisões, a capa já está definida e trabalhada e, lá para Outubro ou Novembro, ficarão todos a saber quais são os “Segredos de Vila Nova”. Não se esqueça: um pode ser o seu. O prefácio foi escrito pelo meu amigo, jornalista e professor universitário, Pedro Coelho. Fica aqui a sinopse para aguçar o apetite aos meus leitores mais fervorosos:  

 Vila Nova tem segredos das mais variadas espécies e origens, que muitos dos seus habitantes conhecem sem, no entanto, sentirem coragem suficiente para os revelar. O receio das consequências deste seu acto de bravura confunde-se com o medo provocado pelo vidro de que são feitos os seus próprios telhados.

São histórias de épocas diferentes, nas quais desfilam largas dezenas de personagens que, aos poucos, conduzem o leitor ao conto derradeiro, o último e definitivo, onde um segredo de uma amplitude muito maior é, finalmente, revelado.

Vamos, então, ler sobre os vícios e as virtudes, as traições e as lealdades, a vida e a morte, os ódios e as paixões avassaladoras de quem vive numa terra como esta, nesta Vila Nova, tão bela à distância mas tão perversa quando dela nos aproximamos.”

 As Edições Colibri e o Fernando, meu editor, continuam, inexplicavelmente, a acreditar em mim.

Boas Férias.

Nota importante: Se estava à espera que eu fosse escrever sobre o Banquete Manuelino… enganou-se. Antes de férias, só consigo escrever sobre coisas descomplicadas... e fofinhas.


João Luís Nabo

In "O Montemorense", Julho de 2023

terça-feira, 13 de junho de 2023

Continuamos absurdamente à espera de Godot[1]


 

Este ano lectivo foi tão atípico como os anteriores, em que nos tivemos de fechar em casa e dar aulas à distância a alunos que, muitas vezes, estariam a fazer outras coisas em vez de aprenderem o pouco que tentávamos ensinar, ainda que contra todas as expectativas. Hoje, falamos sobretudo dos professores e das greves, repetidas, insistentes, incómodas, mas justas.

Os professores nunca foram devidamente respeitados pelos diferentes governos que se sucederam no pós-25 de Abril. Com a chegada de Manuela Ferreira Leite ao Ministério da Educação, em 1993, tudo se começou a desmoronar. Mais tarde, veio Maria de Lurdes Rodrigues lançar as sementes para uma guerra terrível entre professores titulares e não titulares, com colegas a avaliarem colegas, assumindo esse acto “oficial”, não raras vezes, uma acção de ajuste de contas pelos mais diversos, e quase sempre, comezinhos motivos. Os governos anteriores a este, que, pelos vistos, ainda respira, dividiram os professores, que se começaram a encarar uns aos outros como inimigos, rivais ou outra coisa qualquer, e não como colegas.

Pois temos de agradecer a Costa e aos ministros da educação dos seus governos o facto nobre e inegável de terem unido os professores que, com objectivos mais concretos e mais profundos do que as habituais exigências de aumento de salário (não menos legítimas e justas), decidiram que teriam, agora ou nunca, a oportunidade para reclamar o respeito, a importância e a autoridade que lhes foram tiradas. (Abro um parênteses para me declarar absolutamente contra aquela manifestaçãozinha contra o primeiro-ministro, no passado dia 10 de Junho, acção que me envergonhou por ver ali colegas meus numa atitude de desafio infantil e de absoluto desrespeito por um membro do Governo, com gritos e cartazes que só fizeram a opinião pública e os comentadores virarem-se contra nós. Como diria o outro, não havia necessidade.)

 E os alunos? Não, não me esqueci dos alunos. Eles continuam, apesar de tudo, a ser os principais responsáveis por esta paixão que ainda continua acesa, embora diminua de vez em quando, sem, contudo, se apagar ainda. Os alunos foram os principais prejudicados com as greves. E arrastaram as respectivas famílias, que se viram aflitas para solucionar as dinâmicas familiares com tantos “filhos” sem aulas. Costa lembrou-se dos serviços mínimos e com eles a obrigatoriedade de cumprirmos os nossos horários sem possibilidade de exercermos o nosso direito à greve. Nunca concordei com este tipo de recurso, a não ser quando se trate de questões de saúde ou de segurança pública ou nacional.

Mas, se analisarmos bem, estes serviços mínimos, lançados para cima dos professores, já tinham sido decretados, há vários anos, em relação aos próprios alunos. Não estão a perceber onde quero chegar? Eu explico: os alunos, hoje, nas nossas escolas, para passarem de ano, basta cumprirem os serviços mínimos. Podem chegar atrasados às aulas sem serem devidamente penalizados… porque o sistema não o permite; têm classificações negativas devido à sua falta de interesse pelas disciplinas ou à sua manifesta falta de vontade de estudar, mas é de todo conveniente não ficarem retidos, por motivos para cuja enumeração não há aqui espaço suficiente; os alunos  levam livros para a escola, muitos deles têm livros em casa ou nas bibliotecas, mas esquecem-se de que os livros têm folhas e palavras e imagens que estão lá para serem lidas e analisadas.

Toda esta descontração em que o sistema escolar navega permite-lhes ir passando de ano sem a preparação necessária e suficiente para estruturarem a sua forma de pensar, de raciocinar, de discutir, de articular, de serem críticos perante a sociedade que os irá, em breve, selvaticamente engolir. Isto porque grande parte dos alunos de hoje não têm opiniões concretas sobre coisa nenhuma, não querem tê-las e não querem ouvir quem queira ensiná-los a pensar e a ver com todas as cores o mundo que os rodeia; eles não lêem, não vêem nem ouvem debates, não assistem a noticiários e perdem todos os dias a oportunidade de aprender a conhecer-se a si próprios, como seres pensantes e (re)activos. Depois, há as excepções (e, na escola onde trabalho, esse número é, felizmente, elevado) que, por isso mesmo, não têm lugar neste texto.

O que ainda é mais grave é que uma parte deles pensa que os pais vão viver para sempre e que nunca precisarão de trabalhar ou de chegar a horas ao emprego, ou de respeitar os colegas e os seus superiores hierárquicos. E tudo isto porquê? Porque o sistema o permite. O professor está limitado de tal forma nas suas acções que, se o aluno reprova, a culpa nunca será da criança. Isto, porque o docente não pode utilizar atitudes mais frontais para pôr no devido lugar os mais distraídos da vida. Esta situação leva muitos professores a reger a sua prática lectiva com base numa máxima simples e cuja eficácia deixa muito a desejar: “Se o sistema nos persegue e nos obriga a passar os alunos, então não cansemos o sistema e passêmo-los logo sem hesitar”. Isto, mesmo que o seu trabalho ao longo do ano lectivo tenha sido, quase exclusivamente, fazer directos, publicar fotos, pôr likes e corações fofinhos nas publicações dos amigos, exercitar os polegares no teclado do telemóvel, passar horas a idolatrar ídolos de pés de barro que, no Youtube, no Instagram ou no TikTok os provocam, os desafiam, os hipnotizam e enganam.

E o que faz a Escola Pública para resolver todas estas questões, cada vez mais prolongadas no tempo, relacionadas com a desmotivação de alunos e professores? Nada.

 Estou a caminhar a passos largos para o fim da minha carreira como professor. Depois de tantos anos de profissão, devo confessar que nunca me senti tão desiludido e triste como agora. Ainda assim, vou continuar a investir nos alunos que ainda terei à minha frente. Continuo apaixonado pela essência do processo e pela nobreza que ilumina o acto da transmissão de conhecimentos. E porque foi esse o meu compromisso há quase quatro décadas, vou levá-lo até ao fim.

 


[1] “À Espera de Godot”, peça de teatro metafísica de Samuel Beckett, obra-prima do absurdo, publicada em 1952. Em cena, há personagens que discutem o sentido da vida e o valor da sua própria existência, enquanto esperam um indivíduo chamado Godot, que acabará por não aparecer.

João Luís Nabo

In "O Montemorense", Junho de 2023

domingo, 14 de maio de 2023

As Mães

 



Maio é mês de Maria e o mês do Dia da Mãe, acontecimentos que merecem uma reflexão, antes de muitos de nós os esquecermos durante o resto do ano.

Maria será sempre envolta no seu próprio mistério, atraindo várias centenas de milhares de crentes à sua volta, na Cova de Iria, em busca de paz e numa peregrinação, sobretudo, interior, que lhes permite regressar a casa mais leves, mais felizes e com a sua fé reforçada. É admirável a força que a imagem de uma Mulher tão especial irradia à sua volta, independentemente da fé de cada um. Embora desligado espiritualmente de muitos dogmas da Igreja, as (raras) viagens que faço ao Santuário de Fátima são sempre psicologicamente reconfortantes. Não me pergunto porquê, porque não tenho resposta para tal. Sinto um certo magnetismo, uma vontade de acreditar e, mais do que isso, o respeito por quem acredita.

 

O Dia da Mãe é para muitos um momento de alegria e de partilha de algum tempo com quem nos pôs no Mundo. Para outros, é um dia em que as recordações vêm mais ao de cima, transportando-nos para o tempo em que estavam connosco, não só nesse dia, mas em todos os dias de todos os anos da nossa vida. A nossa Mãe, embora já no mundo de todos os possíveis, continua connosco nos dias de festa, mas, sobretudo, naqueles em que o colo, que ela nos dava em tempos, era o único gesto, nobre e desinteressado, de que estávamos agora a precisar. Restam-nos as recordações dos dias passados, principalmente quando, na nossa infância, era a sua voz o nosso principal guia, o seu olhar a nossa segurança, as suas mãos o nosso remo. 

Publiquei há uns anos um livrinho de contos, onde escrevi um que ofereci à minha Mãe. Deixo aqui um excerto, que fala sobre as minhas idas ao mercado com Ela, julgo que já transcrito outras vezes, porque é neste pedaço de texto que eu lhe mostro toda a minha adoração e, neste momento, toda a minha saudade:

 

“(…) Fervilhar.

É o verbo que se passeia pela memória dos dias quando me olho, através do tempo, a atravessar o jardim com a minha mão esquerda, pequenina, embrulhada na da minha mãe. Cinco anos de quotidianos felizes a ansiar pelos sábados de manhã para agarrar no cesto e partir à descoberta neste templo onde as estações do ano comandam as modas e os paladares de quem lá entra. Fervilhar. É som que não é som. É um sentimento que começa ainda o dia não passa de duas, talvez três, pinceladas de madrugada. Primeiro, vozes soltas, meio sozinhas ainda, neste espaço vazio, gemendo, impando, dando ordens… Depois, mais vibrantes, frescas, timbres em contraponto dos vendedores que, num aumento gradual, ali misturam os duros dias ao sol, à chuva, ao frio, no campo, na lota, no matadouro, com as dores e os caprichos das donas de casa, as exigências das avós que vão à hortaliça para a sopa dos netos, os pedidos das criadas que não querem ouvir ralhar as patroas…

É um labirinto de cores, um caleidoscópio de caras. De novidades iguais e diferentes. De sorrisos, de esgares, da vida de todos os dias. Onde me perdia vezes sem conta, porque um quadrado confunde toda a gente, mesmo que se visite amiúde e se conheça cada erva que nasce por entre as lajes de granito pisado mil vezes. Estranho este labirinto, que não tem nem corredores, nem passagens secretas, espaço aberto onde todos sabem de todos, porque todos ouvem todos. Mas onde me perdia constantemente… Acabando por sair sempre pela porta por onde não entrara…

Talvez o lago, ao centro ― uma taça de mármore, com uma coluna ao meio a equilibrar uma bola fantástica a apontar para o azul, quando o há ―, fosse responsável por tal perda de referência. A perseguição aos peixes vermelhos, que se bandeavam nas águas claras e frias, era sempre o primeiro e único exercício físico possível naquele lugar. Depois de umas quantas voltas, ora para um lado, ora para o outro, para não entontecer, eis que acabava perdido, sem saber onde tinha pousado o cesto, sem saber da minha mãe, sempre atenta no olhar e nas palavras, entretida a falar com a D. Carlota do Julinho dos presépios, dos comboios eléctricos e dos balões coloridos, mal pairavam os primeiros acordes do Natal.

E, quando, a troco de um tostão, os vendedores me enchiam o pequeno cesto com duas ou três cenouras, três ou quatro vagens de feijão-verde, um molho de salsa e outro de hortelã, que deixavam um rasto de sabores adivinhados, eu sentia-me o petiz mais importante do planeta, talvez o mais feliz do universo.

Agarro com força estas memórias, como se fossem a mão da minha mãe, porque me sinto protegido, aconchegado, fascinado com o tal barulho das vozes que continuam a misturar-se em contracantos, salmodias e pregões. Sem nesse tempo perceber porquê, sentia que aquelas melodias iam fazer parte da minha vida e que se prolongariam muito mais do que durante aquela breve meia hora matinal. Só depois vim a entender o poder daquelas vozes, mais puras, mais belas, mais sinceras e convincentes do que muitas que mais tarde, por gosto ou missão, viria a escutar nas mais divulgadas oratórias, nas mais sublimes árias, em tantas óperas, densas e dramáticas, e no esplendor das cantatas de um tal senhor Bach.

A minha mãe continua fiel às orações da manhã:

― Quanto é este molho de espinafres?

― E o carapau do alto? – pergunta ainda, de banca em banca, porque a tradição vive naqueles olhos e naquela vontade sábia de continuar simples, a gostar das coisas simples. Sei que ainda me dá a mão, como se eu, homem feito, diminuísse de tamanho todos os dias, pegasse no cesto que ela me dera e, de moeda em punho, fosse eu o responsável pelas ervas de aroma que ainda hoje lhe enchem a casa de cheiros e de sonhos…”[1]

 João Luís Nabo

In "O Montemorense", Maio 2023



[1] Do Tempo e das Vozes, in  “Outros Contos de Vila  Nova”, Editorial  Tágide, Lisboa, 2010

 

quinta-feira, 13 de abril de 2023

3 reflexões (provavelmente, disparatadas)

 


Primeira

 

Comecemos pelos mais pequeninos. Exactamente, as criancinhas que começam a mandar nos pais, nos avós e nas educadoras, logo assim que começam a balbuciar as primeiras palavras.

Em tempos idos, e não quero dizer que dantes é que era bom, nada disso, não éramos nós, as criancinhas, que definíamos o dia-a-dia da família. Nós, os pequeninos, adaptávamos os nossos quereres às regras estabelecidas pelos nossos pais, pelos nossos padrinhos (uma figura extraordinariamente importante na nossa educação) ou pelos nossos avós, elementos incontornáveis na nossa vida.

Os compromissos familiares eram cumpridos como se algo de sagrado se tratasse e, independentemente da idade do infante, fazíamos o que as famílias costumavam fazer: almoçar ou jantar todos juntos em épocas festivas, passear, ir aos aniversários uns dos outros, passar férias, todos ao molho e com fé nos deuses. Enfim, não havia restrições, nem medos, nem complexos, nem ansiedades. Aliás, os nossos país tinham métodos eficazes para tratarem os nossos ataques de mau feitio, as nossas manias, os nossos chiliques e depressões.

Com a filharada cá de casa aconteceu o mesmo: as regras da família eram para ser cumpridas, às horas marcadas, com prazer e alegria. Claro que, hoje, já adultos, acabam por fazer a sua vida, mas a família continua a ser, acredito eu, o pilar, o pretexto para estarmos juntos, a discutir o que vier para cima da mesa, qualquer que seja o tema. Nada fica no prato a arrefecer, porque por aqui não há tabus: o que está enleado desenleia-se e nada fica por dizer.

Acho que os pais de hoje, jovens, alimentados pelas teorias das escolas do Dr. Google e preocupados com o futuro e segurança dos filhos (o que é natural e de aplaudir), se angustiam em demasia e esquecem que, um dia, os filhos, irão cair de borco num mundo-cão que não lhes perdoa caprichos ou birras de ocasião. Nem faltas de pontualidade.

 

Segunda

 

Falei há pouco com um amigo que me disse que tinha deixado a escola cedo demais, porque não era feliz na sala de aula. A conversa era leve e apareceu no meio de outras que costumamos ter. Mas aquela frase deixou-me a pensar: e hoje, os alunos sentem-se felizes numa sala de aula? Não terão possibilidade de aprender tudo o que necessitam por outros meios? Acreditem, caros leitores, que não sei responder a estas perguntas.

O conhecimento, essencial para o nosso desenvolvimento como seres sociais e úteis à comunidade onde vivemos, pode ser adquirido de muitas formas, e hoje, com a Internet, tudo se pode estudar, analisar e aprender. Há, contudo, um problema que inviabiliza a legitimidade dessa aprendizagem. A aquisição de conhecimentos deve ser feita de forma organizada, lógica, de acordo com a faixa etária do aluno e, talvez o mais importante, ser legitimada por alguém que se preparou durante anos para isso: o professor.

Por isso, porque, muitas vezes, o que o professor explica já não é novidade para muitos deles, a infelicidade de alguns alunos numa sala de aula não deve jamais ser desvalorizada. Urge adaptar as práticas pedagógicas, as matérias e os programas às novas gerações de estudantes  que, mais do que demasiada teoria, necessitam (e o mundo fora da escola também) saber qual a aplicação prática do que aprendem dentro do recinto escolar. Está na hora de se repensar os currículos de todas as disciplinas e, sobretudo, de direccionar os alunos para as áreas de conhecimento onde se sentem realizados nas respectivas aprendizagens e nas descobertas que elas lhes proporcionam.

As gerações de velhos professores, que falavam de cima da cátedra para quem quisesse ou fosse capaz de aprender, já quase terminou, felizmente. A sala de aula é hoje um espaço de debate e de inclusão, onde todos podem e devem participar. Para isso, é fundamental a motivação, o interesse, a curiosidade, a vontade de aprender e a consciência da utilidade dessas mesmas aprendizagens.

A questão é continuarmos a viver o velho problema de não se oferecer aos alunos as áreas adequadas ao seu perfil, aos seus gostos e às suas capacidades. Se isso fosse possível (bastava haver vontade política), revolucionava-se a escola e o país. E talvez se acabasse com essa infelicidade de muitos deles. E talvez esse meu amigo tivesse acabado a sua escolaridade.    

 

 

Terceira

 

Fico incomodado quando percebo que vivemos, todos nós, a maior parte da nossa vida com medo. E que tem sido esse medo que os políticos, todos, antes e depois de Abril de 74, têm usado para controlar os nossos dias.  

Antes da Revolução, os nossos pais e avós, tios e tias sentiam uma enorme angústia, permanente e desgastante, porque o sistema político vigente, e que se aguentou 48 anos, não lhes permitia ser felizes. Havia o medo de falar, o medo de escrever, o medo de pensar, o medo de agir. Tempos de terror inimaginável para os muitos portugueses, e montemorenses, que foram levados pelos esbirros de Salazar e trancados no Aljube, em Caxias, em Peniche ou degredados para o Tarrafal. Torturas, sevícias de todo o género, humilhações, sofrimento, morte – tudo passaram estas mulheres e estes homens, em nome da liberdade e em luta pelos direitos de todos os portugueses.

Hoje, quase meio-século após a revolução, continuamos a viver com medo. Medo de um retorno ao passado, com os partidos de direita a conquistarem espaço no espectro político-partidário, medo de não termos rendimentos suficientes para pagar as mensalidades da casa ao banco, medo de que comece a faltar alguma comida em cima da mesa, medo de uma doença que nos leve ou que afaste de nós, para sempre, familiares e amigos, medo de não vivermos o suficiente para criarmos os nossos filhos e ajudarmos a criar os nossos netos. Medo de termos uma avaria no carro, no esquentador ou na máquina de lavar roupa. Medo de faltar dinheiro para pagar os seguros, o IMI e o IUC ou as propinas dos filhos, a estudarem na universidade.  

Enfim, pelas evidências que nos chegam todos os dias a casa através da televisão, temos a certeza de que esta permanente sensação de insegurança e angústia se vai prolongar pelos meses que aí vêm.

E o Governo de Costa, com cada vez mais “casos e casinhos”, a rir-se de nós todos.  Como se fôssemos todos parvos.   

 

João Luís Nabo

In "O Montemorense", Abril de 2023


quinta-feira, 16 de março de 2023

Capítulo uno e indivisível

 


Capítulo uno e indivisível


De mês para mês, que é o mesmo que dizer de Cloreto para Cloreto, o país afunda-se cada vez mais em escândalos, que mostram o tecido de que somos feitos desde a fundação deste nosso belo reino, e que atrasam, sem apelo nem agravo, a discussão e a resolução de problemas graves que vão minando a sociedade e o espírito dos portugueses.

Enumerar os escândalos torna-se já redundante e fastidioso e corro o risco de os meus dez leitores abandonarem já, sem qualquer hesitação, a leitura desta breve crónica. E faziam muito bem, porque eu faria o mesmo. Há muitas séries na Netflix para ver.

Por isso, hoje nada de TAP, de Alexandra Reis, de Christine Ourmières-Widener, de Marcelo ou de Costa. Esqueçamos os professores e o pessoal não docente, a serem gozados todos os dias pelo ministro e companhia, estando como eles os médicos e os enfermeiros, os maquinistas da CP, os trabalhadores dos portos, do sector aéreo, da justiça, toda esta gente em greve e a prejudicar profundamente os sectores onde trabalham e os utilizadores que deles dependem (mas é para isto que as greves servem, tenham paciência!).

Coloquemos também em repouso os escândalos que têm assolado a Igreja e que parecem não ter uma solução concertada entre os seus responsáveis. Podíamos igualmente discutir aquela bonita política de Marcelo “Nem mais um sem-abrigo nas ruas em 2023”, podíamos até dizer que a figura do nosso Presidente da República já deu o que tinha a dar e que, cada vez que fala, há um tsunami que nos atinge a todos, porque somos nós que pagamos as quantas barbaridades que ele já disse por aí.

Isto para não falar nos lares de idosos, que maltratam os utentes de uma forma que não julgaríamos possível nos tempos que correm. E, ainda por cima, alguns deles pertencem a instituições religiosas, estas que deveriam ser as primeiras a dar o exemplo. Também neste campo devíamos recordar alguns familiares que, muito escandalizados, se confessam às câmara de televisão. Apetece-nos perguntar: “Só agora é que deu pelos maus-tratos ao seu pai ou à sua mãe? Há quanto tempo não os ia visitar?”

E no preço dos alimentos? Vamos falar nisso? Nem pensar. E quando nas caixas dos supermercados pagamos por um produto um preço muito mais alto do que aquele que estava na prateleira? Também não vamos por aí. E os preços das rendas dos apartamentos e as exigências dos bancos para conceder empréstimos, obrigando os jovens adultos a viverem com os pais até lá para os sessenta anos?…

Mas há milhões de milhares de euros para empresas, para bancos, para administradores, para ajudar gente aflita lá fora, com guerras e terramotos, e sei lá mais para quem, porque ainda não se sabe tudo. O cristal vai-se quebrando aos poucos e aos poucos as verdades começam a ver a luz do dia. Mas, depois, vem aí o futebol, o treze de Maio, as Jornadas Mundiais da Juventude, que, não discutindo a sua importância e utilidade, são outras distracções muito convenientes ao nosso querido Governo. Enquanto uns rezam, convivem, gritam nomes ao árbitro, outros roubam até mais não, lançam novos impostos até mais não, retiram-nos regalias até mais não, apaparicam os amigos até mais não.

Por falar em amigos… E os amigos dos políticos que entram para a engrenagem governamental sem qualquer experiência e, tantas vezes, sem as qualificações necessárias? São ministros, secretários de estado, assessores, assessores de assessores, secretários de assessores, enfim, um chorrilho de pessoal que tem tachinho garantido enquanto aquela cor se mantiver à tona de água. Quando a coisa mudar, vão outros, pelos mesmos motivos… afectivos. E os afectos, meus caros leitores, contam tanto!!

 

E os portugueses, apesar de estarem tesos que nem um carapau, ainda que muitos de nós continuem precários nos seus empregos, e embora a maioria ganhe um ordenado que não dê para nada, apesar de, ultimamente, termos posto as garras de fora mostrando o nosso desagrado por tudo o que nos está a acontecer, continuamos um povo manso e confiante no “Há-de-ser-o-que-Deus-quiser”, uma expressão sinistra vinda lá dos anos quarenta, quando um senhor muito sério, de fato e voz de falsete, governava este quintal sempre tão mal frequentado, acrescentando a este lema o tal de “Deus, Pátria, Família”, que alguns, hoje, querem ressuscitar.

Pois, meus amigos, isto não pode continuar a ser “o que Deus quiser”. Isto não vai lá com greves, cartazes e palavras de ordem. Isto não vai lá com esperas ao primeiro-ministro e aos ministros para lhes perguntarmos cara a cara o que andam a fazer ao nosso país e ao dinheiro que tanto nos custa a ganhar. Isto não vai lá assim.

E muito menos quero deixar aqui a ideia de que Portugal está a ficar um terreno absolutamente disponível e cultivável para que os semeadores do Chega comecem a lançar as sementes à terra. (Se não começaram já). E elas dão frutos, meus amigos. Elas dão frutos… que crescem rapidamente.

Portanto, perante todas estas misérias e estes perigos eminentes, isto só se resolve de uma maneira: com uma Revolução. Ou, no caso de não ser possível, que haja coragem por parte de quem de direito e que se dissolva o Parlamento e se convoque eleições antecipadas. Piores não ficaremos.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023

Um cafezinho com o Papa

 

            


I         

Um cafezinho com o Papa

 Se Sua Santidade, o Papa Francisco, aceitasse tomar um cafezinho com o autor destas breves linhas, aqui em Montemor, no Alkimia, por exemplo, ou noutro lado qualquer, tenho a certeza de que iria, na sua forma humilde com que conquistou o mundo católico e não católico, querer saber sempre a verdade das coisas sobre o tão célebre palco-altar que vão construir para a sua grande missa campal e para a reunião daqueles milhares de jovens que ali se vão juntar, mesmo à beira-Tejo, nas Jornadas Mundiais da Juventude.

Podia safar-me a essas perguntas embaraçosas e dizer-lhe para interrogar o Moedas, o Medina, o Sá Fernandes, o Costa ou mesmo o Marcelo, que parece saber mais do assunto do que aqueles todos juntos... Contudo, sei que eles não lhe iriam contar a verdade toda.

Beberricando o néctar escurecido e aromático, observando o pessoal que por ali passava, Francisco iria ficar a saber, dito por mim, que sou português há uma data de anos, que aquela triste cena do altar-palco foi tão somente o resultado da nossa forma de sermos… portugueses: vaidosos, exibicionistas, com complexos do velho império, que, tal como muitos que conhecemos, preferem dar pão com manteiga aos filhos o mês inteiro, mas garantir a sua presença em todos os jogos do clube do seu coração.

Cinco milhões de euros para receber Sua Santidade naquele espaço, mas com muitas centenas de sem-abrigo a dormirem nas estações do metro de Lisboa e do Porto, com milhares de famílias sem rendimentos suficientes para porem comida na mesa e terem uma casa devidamente habitável, com milhares de desempregados, com centenas de migrantes, explorados aqui, no Alentejo, mesmo ao lado das nossas terras, com crianças com necessidades especiais a precisarem de meios adequados para viverem uma existência digna, com dezenas de instituições de solidariedade sem dinheiro para pagarem aos seus trabalhadores e para poderem proporcionar uns dias menos tristes aos seus utentes. Não faria sentido...

Até aqui, Sua Santidade, pela bondade que lhe conhecemos, nada teria dito ainda, para não me interromper, porque é bom ouvinte e porque me queria escutar até ao fim. Falava-lhe depois na TAP (teria de ser) e na vergonhosa indemnização que recebeu uma tal Xana que, segundo parece, vai mesmo ficar com a massinha. E naquela outra, que fala francês e inglês do Pólo Norte, mas que se está marimbando para os sotaques, porque irá ficar milionária para o restinho da sua inútil vidinha.

Então, Sua Santidade, fazendo sinal ao Luís para lhe trazer outro cafezinho, olharia para mim e diria, na sua simplicidade que todo o clero deveria assumir, na sua singeleza que todos os seus seguidores deveriam imitar: “Meu filho, se eu soubesse desta vergonha, talvez não tivesse vindo”. “Vinha, sim, Sua Santidade!”, respondia-lhe eu, sempre do lado da solução. “Eu tenho uma varanda que dá para uma das ruas mais movimentadas da minha cidade e, daí, Sua Santidade poderia dizer umas palavras a todos nós, aos meus vizinhos, gente simples, de trabalho, alguns de oração (não é bem o meu caso, desculpe), e depois, se houvesse tempo, iríamos bater um petisco ao cafezinho da Isabel Abelha que faz umas iscas de borrego de comer e chorar por mais.

“Poupavam-se uns milhares, Juanito!”, diria ele, colando a palma da sua mão alva  e santa na minha. “É verdade, Santidade! É a mais pura das verdades!” 

Quando me levantasse para pagar os cafés, o representante de Cristo diria: “Não, hoje... pago eu! Quando fores ao Vaticano… pagas tu! E, se não te importas, vais levar-me as tais iscazinhas da Isabel! Acho que vou gostar! Ah! E leva o teu Balú!! É o cão mais espectacular que conheci!! Vai adorar correr por aqueles corredores sem fim!

  

II

Os professores e os alunos


A pouco tempo de deixar o ensino, saio preocupado com o que lá vou deixar. Ensinar nos dias de hoje nada tem a ver com aquilo que era feito quando, em 1983, com vinte e dois anos, comecei a trabalhar com a juventude dentro de uma sala de aula. “Faltam-lhe ao respeito?”, perguntarão. “São arrogantes?” “Armam confusão nas suas aulas?”. A resposta é não a todas as três perguntas que, porventura, me terão feito. Eu também não lhes falto ao respeito, também não sou arrogante e também não armo confusão. Estamos bem uns para os outros. No entanto, sinto que a vontade de aprender daquela malta nova já não é a mesma da de antigamente, o que nos obriga a criar novas estratégias, novos “truques” para que os programas do ministério fiquem, minimamente, na cabeça da criançada. 

Mas estamos num momento em que há necessidade de mudança. Não só em termos das exigências da classe dos professores e dos auxiliares de educação, mas em termos das matérias que os alunos devem saber para a vida. Cá em casa, vive-se intensamente o ensino, os jovens, os seus problemas escolares e familiares, a procura de soluções para minimizar todas essas problemáticas, que acabam por arrastar outras questões atrás de si. O problema é que parte das matérias que o ministério tem nos programas que lhes temos de leccionar nada tem a ver com a vida real, nada ajudam a enfrentar o mundo do trabalho e não preparam, muitas vezes, nem para a vida académica, nem para a vida profissional de cada um deles. Continuamos, porque somos obrigados a isso, a levar os alunos a estudar o que pouco vai interessar para os seus cursos universitários ou para poderem ser bons profissionais numa caixa de supermercado.

Os bom profissionais, como eu espalho tantas vezes nas cabecinhas daqueles inocentes,  são como a boa música. Não interessa o género. Interessa é a qualidade.

 

III

Vêm aí os “Segredos de Vila Nova”


Sim, parece que vem aí um livrinho que vai divertir (e perturbar) os leitores. “Segredos de Vila Nova” é o título das vinte e quatro histórias, todas elas passadas neste lugar do Alentejo e que já têm a equipa pronta a entrar em cena: revisor, fotógrafo, designer, prefaciador e, claro, as Edições Colibri, do meu amigo Fernando Mão de Ferro, a editora que me dá toda a liberdade de que a minha mente, tantas vezes em desassossego, vai precisando. E não posso contar mais nada. Vão ter de ler para ficar a conhecer esta Vila Nova que tanto amamos, mas que tanto criticamos por dá cá aquela palha. No entanto, para satisfazer a curiosidade e saber se alguns dos vossos segredos, caros leitores, vão ser ali revelados… vão ter de esperar ainda uns bons mesitos.

            João Luís Nabo

In "O Montemorense", Fevereiro de 2023

segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

Três notas de Ano Novo

 




I         

O soneto e a sua estúpida emenda

Nós, que ainda temos alguns pudores como arma contra as banalidades deste país, nem sabemos como começar a aflorar este tema, que de frágil já nada tem. Os ecos repetem-se em todo o território e, já se sabe, na Europa e no Mundo, que isto do orgulhosamente sós foi chão que já deu uvas.

Corrupção, compadrios, combinações, esquemas, compras, vendas, cedências, terrenos, construções, a troco de um bom punhado de dólares, já de tudo se fala à descarada, de boca aberta e a gritar em todos os meios de comunicação social. O Primeiro-ministro António Costa está diariamente debaixo de fogo, deitadinho numa cama que ele próprio fez.  Não foi inteligente no recrutamento do seu pessoal de elite para o Governo e agora está a pagar esta “pequena falta de atenção” com um palmo de língua de fora. Foram treze os ministros e secretários de Estado que se demitiram ou que foram demitidos por não haver condições para continuarem a governar, sobretudo para continuarem a governar-se à nossa custa.

E o que decide fazer o inefável Costa como pai de uma família de malucos, no seio da qual já ninguém se entende? Decidiu dar um murro na mesa… elaborando um questionário. Exactamente. Um questionário, assim tipo quiz das revistas cor-de-rosa, que nos obriga a responder a perguntas para sabermos se somos simpáticos, amigos do ambiente, solidários, sexys, enfim, para descobrirmos sobre nós as coisas mais importantes deste mundo e sem as quais seríamos uns seres absolutamente incompletos. Pois este questionário é para o Primeiro-ministro saber se os convidados para o Governo são ou não honestos. Claro que a esta fantochada de perguntas só se pode responder com uma fantochada de respostas. Ninguém irá considerar-se ladrão, desonesto ou em fuga aos impostos. Ninguém admitirá receber indemnizações de milhares e só um tolo assumirá com um sim ter fugido ao fisco em tempos idos. Portanto, pior que os políticos gatunos que Costa convidou para o seu belo Governo, será este questionário para validar, com base numas cruzes manhosas, o carácter de quem vai estar no poder. Pelo célebre questionário já podemos nós validar o completo desnorte de quem o inventou.

Já agora, a tal moça que esteve na TAP, empresa alimentada por todos nós, já devolveu o nosso meio milhãozinho à procedência? Haja vergonha. E tribunais, também.

 

II

Os professores e o estúpido do sistema 

Os professores nunca estiveram tão unidos como agora. Greves, manifestações, gritos de revolta têm preenchido os ecrãs das televisões, apesar dos que, em pleno horário nobre, insistem em classificar as greves como ilegais, em minimizar o papel dos sindicatos e em gozar, não tenho outro termo, com a cara dos que, empunhando cartazes e lançando palavras de ordem, dão provas do cansaço a que todos os professores chegaram, sem terem mais forças nem paciência para a desconsideração, o desrespeito, o desprezo que o Estado, o Ministério da Educação e alguns sectores da sociedade têm demonstrado nos últimos anos em relação à sua classe. Se, um dia, todos os professores deste país decidissem não trabalhar mais, enquanto não fossem ouvidas e aceites as suas reivindicações, a vida parava e Portugal entrava num beco sem saída. A sorte (ou não) de todos é que os professores não ganham o suficiente para poderem estar vários dias sem trabalhar. E o Ministério sabe disto. E Costa também. Porque se isso fosse possível, outro galo cantaria.

Sou professor há 39 anos. Estou no topo da carreira. Mas estou absolutamente ao lado dos que, muito provavelmente, pelo sistema de progressão em que estamos enleados, já não poderão concretizar esse direito. Não queria terminar de forma pessimista, acreditando nos novos tempos que aí vêm, graças a todas estas movimentações a favor dos nossos alunos e da escola pública, mas pelo que tenho testemunhado e vivido, e se o ministro João Costa não der ouvidos a quem se queixa, acredito que a Educação neste país poderá estar por um fio. Os professores vieram até aqui. Já não há um voltar atrás.

Caro leitor: se conseguiu ler este texto até aqui, foi porque teve um professor na sua vida. Um ou vários. Vamos ver se os nossos netos poderão dizer o mesmo.

 

III

36 anos de Coral de São Domingos

O Coral de São Domingos completou 36 anos de existência e de trabalho ininterrupto, no passado dia 7 de Janeiro. Foi nesse dia, a meio da tarde, que fez o primeiro ensaio nos claustros do Convento de São Domingos, sede do Grupo dos Amigos de Montemor, associação que o acolheu durante os primeiros dois anos. Depois, legalizado como associação sem fins lucrativos e, mais tarde, declarado pelo então primeiro-ministro António Guterres como Entidade de Utilidade Pública, o grupo percorreu dezenas de lugares, em Portugal e um pouco por toda a Europa, cantando e “espalhando por toda a parte”, o nome de Montemor-o-Novo.

Hoje, são trinta os cantores que continuam a dar voz ao grupo e que, depois de dois anos de pandemia, regressaram ainda com mais energia e talento. Foram, como calculam, dezenas de amigos que passaram pelo Coral, ao longo destas quase quatro décadas, deixando nele a sua marca, definida pela sua paixão e pelo seu empenho sem limites.

Participaram em programas de televisão e de rádio, têm quatro trabalhos discográficos editados, interpretaram centenas de obras de compositores dos quatro cantos do mundo, fizeram perto de 600 concertos, estão ligados a grande parte das instituições da cidade, recebem apoio de várias entidades da cidade e do concelho e acreditam que vão durar até aos 1000 anos.

Estou com eles desde o dia 7 de Janeiro de 1987. Vou estar sempre com eles, até ao meu último dia.


João Luís Nabo

In "O Montemorense", Janeiro de 2023

quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

Chover no molhado e outra questão de igual importância

 


                                                             
   (foto: Agência Lusa)


                                                         Chover no molhado
                                                                                              

Escrever sobre as cheias que têm mantido o país em polvorosa é mesmo chover no molhado, peço desculpa pela metáfora (e redundância) tão mal escolhida, tendo em conta as circunstâncias. No entanto, só de ver os tipos do Governo Costa, tapadinhos por um guarda-chuva, a correrem de um lado para o outro quem nem uns totós, deu-me pena, vontade de rir, ao mesmo tempo, e obrigou-me a escrever estas poucas linhas, porque de umas linhas mal alinhavadas é que eles não se livram.

Portugal continua igual a si próprio. Até me parece mentira que nós, em tempos (muito) idos, tenhamos dado mundos ao Mundo, com vícios e virtudes, usando a espada e a bíblia da melhor forma de que éramos capazes. Como foi possível criar um império daquelas dimensões, contrariando ventos e marés, quando hoje, em pleno início deste novo e grandioso milénio (que só nos tem trazido problemas), não conseguimos resolver o grave problema das inundações em Lisboa, no nosso queridíssimo Alentejo e noutros pontos do nosso belo e turístico país?

Passámos meses, longos meses, anos, longos anos, sem praticamente cair uma gota de água do céu, valha-nos Cristo e Nossa Senhora, para, quando a temos a cair em força nas nossas cabeças, não sabermos o que fazer com ela. É por estas e por outras que ficamos conscientes de que o país está podre e incapaz de enfrentar desafios sérios como o das alterações climáticas, associado à má gestão urbanística, à falta de limpeza das sarjetas e escoadouros, uma coisa tão simples e, ao mesmo tempo, tão difícil de concretizar. Depois, e é isso que me deixa estupefacto, é vê-los mandar desentupir os esgotos, como se não houvesse amanhã. E é ver centenas de bombeiros, sem dormir, exaustos, a procurar por todos os meios acudir aos aflitos.

As crises deste género têm a ver com essas questões tão em voga e tão verdadeiras das alterações das condições do clima. Já todos reparámos que, em vez das quatro estações do ano, ficámos só com duas e que, qualquer dia, quando tudo for de pantanas, ficamos sem nenhuma, que era o que nós merecíamos, por sermos descuidados e imprudentes. Estas crises também são provocadas pela incúria dos homens, e sobretudo dos homens e mulheres que se sentam, e bem sentadinhos, nos lugares de poder. Quando vejo o Costa, o Moedas, a Vieira da Silva, o Marcelo e outros fofinhos que tais a darem abracinhos nos que viram toda a sua vida ser levada por uma enxurrada de água e lama, dá-me vontade de fazer uma coisa que não vou aqui escrever, até porque é contra as normas da decência e da moral.

Os donos dos cafés, dos supermercados, das lojas, das casas, das garagens, dos armazéns, dos campos, não querem um ombro amigo para chorarem as suas mágoas bem reais e que passam pela sua própria sobrevivência. Os que perderam carros, mobílias, animais, hortas, pessoas de família não querem palavras amiguinhas vindas do coração (até porque os políticos não têm coração), nem selfies, nem televisões a quererem filmar a dor, a raiva e a revolta. O que todos eles querem, e nós também, é que os políticos se deixem de caridade bacoca, de consolos que não sabem a coisa nenhuma, e reajam, finalmente, como políticos verdadeiramente sérios, que querem, de facto, resolver as questões que, ao longo dos tempos têm, repetidamente, prejudicado, e de que maneira, cidadãos de trabalho, pagadores de impostos e eleitores livres. Quando colocamos conscientemente o nosso voto na urna, não será para alargarmos o nosso círculo de amizades e irmos, mais dia menos dia, beber um copo com os nossos candidatos preferidos. O voto é para que eles cuidem de nós, nos protejam e não dediquem o seu tempo a assobiar para o lado em processos gravíssimos de roubo, peculato, abuso de poder, transferências financeiras indevidas que, no nosso país já dariam para uma série da Netflix com mais de 30 temporadas.

Portugal está a ser mal tratado por quem o governa? Ainda têm dúvidas? Portugal, que foi rei e senhor de metade do planeta, sendo (muito) discutível a forma como o conseguiu, não devia estar a afundar-se, só porque os políticos estão mais preocupados em salvar alguns bancos e alguns banqueiros, apresentando uma mão cheia de nada e outra de coisa nenhuma a quem, de facto, merece apoio e solidariedade nos momentos mais complicados das suas vidas.

 

 Sim, Cristiano, gostava de tomar um café contigo

 O outro assunto que, para mim, está esgotado, é o do Cristiano. A comunicação social faz e desfaz pessoas, cria e destrói, glorifica e demoniza quem está sob a luz ofuscante dos seus holofotes. Achei absolutamente inacreditável que, enquanto decorria o Mundial do Qatar, os jornais e as televisões tentassem, por todos os meios, expor o Cristiano, como se não soubessem que tudo o que se dissesse ou pensasse sobre ele acabaria por condicionar a equipa da qual ele era capitão. A nossa equipa. A equipa das quinas. A equipa dos “heróis do mar”. Provavelmente, também ele deveria ter escolhido outra oportunidade para a malfadada entrevista a uma cadeia de televisão britânica. Aceito.

Quem não percebesse bem o que se estava a passar depois dessa entrevista, pensaria que a comunicação social portuguesa e mundial queria mesmo era que o Cristiano se tramasse e tramasse a selecção. O Campeão manteve-se sereno, calmo, ignorando as ogivas que lhe mandavam, até que foi o próprio seleccionador que lhe deu o tiro de misericórdia: Cristiano para o banco, porque tu, o que mereces, é estar no banco.

No íntimo do melhor do mundo, esta decisão acabou por ser arrasadora, levando a autoestima de Cristiano a descer ao nível dos infernos. Coloquei-me no lugar dele e descobri que não conseguiria ter a classe que ele teve: se o Santos insistisse em manter-me no banco, eu teria ido até ao centro do relvado, despido a camisola das quinas e regressado a casa, nesse mesmo dia, para os braços da minha Georgina.

Esse tal seleccionador não merece continuar.

 

Quanto ao Cristiano, um dia que ele passe pela nossa santa terrinha, não me importava nada de tomar um café com ele, antes de termos uma conversa séria sobre lealdade e confiança. Mas isto sou eu a dizer. Eu… que nada percebo de futebol.

 

Distraídos crónicos...


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