Figurinhas fofas
Temos assistidos de boca aberta à representação teatral
mais canastrona de que há memória, com dois actores que mais parecem figurinhas
de presépio. Por que lhes chamo figurinhas de presépio, correndo o risco de
continuar a causar alguns amuos a certos amigos meus? Porque Pedro Nuno e Luís
Filipe, quais pastores, lavadeiras ou reis magos, fazem tudo o que fazem estas figuras
de presépio que nós colocamos amorosamente sobre o musgo para gáudio dos mais
pequenos: nada. Ou melhor: empatam, atrasam, procrastinam, à espera do dia de
Reis para voltarem para dentro da caixa de sapatos.
O Orçamento vai ser debatido e votado na generalidade nos
próximos dias 30 e 31 deste mês. Se for aprovado, com algumas das suas alíneas
mais ou menos onerosas para os portugueses, será menos uma crise imediata que o
nosso país tem de enfrentar. Se não passar
pelo crivo do Parlamento, vêm aí as temidas eleições antecipadas. E, claro, a
gestão do país por duodécimos e outras tretas, todas elas prejudiciais para
quem se levanta diariamente para ir trabalhar. Independentemente do
resultado, não teriam sido necessárias tantas propostas, contra-propostas ou
contra-contra-propostas.
Admirado
estou eu que Montenegro e os seus ministros e secretários de estado se tenham
aguentado até aqui. O Governo é, desde o início, uma manta de retalhos, um Ser com
várias peças que, tal como a Criatura de Victor Frankenstein[1],
se vai revelando com uma capacidade absoluta de aniquilar o seu Criador. Se tal
não aconteceu no célebre romance de Mary Shelley, poderá vir a acontecer nesta
história real e lusa, com ou sem o Orçamento aprovado, e que, ao contrário das tragédias
narradas no livro, mais parece o resultado de uma comédia de enganos. Agora, há
que assumir as culpas. E é a maioria do povo que as deve assumir: o engano foi seu…
quando o elegeu.
Uma nota
final para sublinhar a triste intervenção, no passado dia 8, de Luís Filipe
sobre o Plano para os Media: quando um primeiro-ministro e um seu repetidor,
chamado Pedro Duarte, ministro dos Assuntos Parlamentares, têm o desplante e a
tenebrosa ousadia de dizer que “não gostam de jornalistas ofegantes” e que “não
gostam de perceber que há jornalistas que se limitam a expressar o que lhes
sopram ao ouvido”, algo começa a estar muito, mas muito podre, neste país a
caminho de um abismo sem retorno. Ao longe, ouvi o falsete daquela voz vinda
das trevas a proclamar “Tudo pela Nação, nada contra a Nação”[2].
Tratar os jornalistas como se fossem miúdos mal comportados era a última coisa
que se esperava do primeiro-ministro do meu país. Há que estar alerta e preparados
para dizer a um Montenegro com “olhos doces”, não sei por onde vou, mas “sei que
não vou por aí”[3].
Transparências
Com a idade começamos a ficar mais transparentes. Já não
temos paciência para ocultarmos os nossos sentimentos, os nossos gostos e
desgostos. Os que não nos conhecem mostram desagrado se algum comentário nosso lhes
faz dói-dói, os nossos amigos começam a esperar de nós, exactamente esses
comentários, essas opiniões, que eles próprios, tantas vezes, subscrevem. Deixamos,
finalmente, de ser uma espécie de instituição pública em que há uma lei que nos
obriga a sermos iguais para toda a gente. Passamos a dar mais do nosso tempo a
quem nos oferece o tempo que tem, e começamos a apreciar os pequenos momentos com
algumas pessoas que, pela sua intensidade, são os melhores, os mais
consoladores, os que preenchem os longos silêncios de quem, por circunstâncias
da vida e da morte, se afastou fisicamente de nós.
A acrescentar a estes pequenos caprichos, começamos com a
tendência nunca antes vista de ficar mais tempo em casa, gozando cada momento e
cada metro quadrado. E se nos apetecer uma escapadinha ao fim da tarde, então
vamos até às Fontainhas e atiramos uma moeda para a taça como se, enlaçados com
a nossa cara-metade, estivéssemos a sonhar junto à Fontana di Trevi. E, depois,
quer tenhamos viajado até Itália, quer tenhamos apenas subido três ou quatro
ruas da nossa cidade, regressamos a
casa, à nossa ilha, ao nosso reduto, ao nosso forte, à nossa sauna,
nossa ou arrendada, maior ou mais pequena, mais luxuosa ou mais minimalista,
mais rica ou menos rica. Porque também é aqui que regressamos, após um dia de
desânimo, após uma tarefa não concluída ou um projecto falhado. É aqui, no
nosso lar, na nossa casa, que sentimos a segurança e o conforto que não
experimentamos em qualquer outro lugar. E o nosso lar é tudo: é a nossa mulher,
o nosso marido, os nossos pais, a nossa namorada ou namorado, os nossos filhos e netos, o nosso cão, gato ou
periquito... ou nós próprios, apenas.
E, quando tudo se proporciona, se na nossa casa podemos
juntar alguns amigos, à volta de um livro ou à volta de coisa nenhuma, em
almoços épicos, porque profundos e intermináveis, então, aí, chegamos ao
verdadeiro Paraíso.
Isto não é um recado. É um desejo. Só não percebe quem não
quiser.