segunda-feira, 14 de outubro de 2024

Dois desabafos

 




Figurinhas fofas

 

Temos assistidos de boca aberta à representação teatral mais canastrona de que há memória, com dois actores que mais parecem figurinhas de presépio. Por que lhes chamo figurinhas de presépio, correndo o risco de continuar a causar alguns amuos a certos amigos meus? Porque Pedro Nuno e Luís Filipe, quais pastores, lavadeiras ou reis magos, fazem tudo o que fazem estas figuras de presépio que nós colocamos amorosamente sobre o musgo para gáudio dos mais pequenos: nada. Ou melhor: empatam, atrasam, procrastinam, à espera do dia de Reis para voltarem para dentro da caixa de sapatos.  

            O Orçamento vai ser debatido e votado na generalidade nos próximos dias 30 e 31 deste mês. Se for aprovado, com algumas das suas alíneas mais ou menos onerosas para os portugueses, será menos uma crise imediata que o nosso país tem de enfrentar.  Se não passar pelo crivo do Parlamento, vêm aí as temidas eleições antecipadas. E, claro, a gestão do país por duodécimos e outras tretas, todas elas prejudiciais para quem se levanta diariamente para ir trabalhar. Independentemente do resultado, não teriam sido necessárias tantas propostas, contra-propostas ou contra-contra-propostas.

            Admirado estou eu que Montenegro e os seus ministros e secretários de estado se tenham aguentado até aqui. O Governo é, desde o início, uma manta de retalhos, um Ser com várias peças que, tal como a Criatura de Victor Frankenstein[1], se vai revelando com uma capacidade absoluta de aniquilar o seu Criador. Se tal não aconteceu no célebre romance de Mary Shelley, poderá vir a acontecer nesta história real e lusa, com ou sem o Orçamento aprovado, e que, ao contrário das tragédias narradas no livro, mais parece o resultado de uma comédia de enganos. Agora, há que assumir as culpas. E é a maioria do povo que as deve assumir: o engano foi seu… quando o elegeu.

   

            Uma nota final para sublinhar a triste intervenção, no passado dia 8, de Luís Filipe sobre o Plano para os Media: quando um primeiro-ministro e um seu repetidor, chamado Pedro Duarte, ministro dos Assuntos Parlamentares, têm o desplante e a tenebrosa ousadia de dizer que “não gostam de jornalistas ofegantes” e que “não gostam de perceber que há jornalistas que se limitam a expressar o que lhes sopram ao ouvido”, algo começa a estar muito, mas muito podre, neste país a caminho de um abismo sem retorno. Ao longe, ouvi o falsete daquela voz vinda das trevas a proclamar “Tudo pela Nação, nada contra a Nação”[2]. Tratar os jornalistas como se fossem miúdos mal comportados era a última coisa que se esperava do primeiro-ministro do meu país. Há que estar alerta e preparados para dizer a um Montenegro com “olhos doces”, não sei por onde vou, mas “sei que não vou por aí”[3].

 

 

Transparências

 

Com a idade começamos a ficar mais transparentes. Já não temos paciência para ocultarmos os nossos sentimentos, os nossos gostos e desgostos. Os que não nos conhecem mostram desagrado se algum comentário nosso lhes faz dói-dói, os nossos amigos começam a esperar de nós, exactamente esses comentários, essas opiniões, que eles próprios, tantas vezes, subscrevem. Deixamos, finalmente, de ser uma espécie de instituição pública em que há uma lei que nos obriga a sermos iguais para toda a gente. Passamos a dar mais do nosso tempo a quem nos oferece o tempo que tem, e começamos a apreciar os pequenos momentos com algumas pessoas que, pela sua intensidade, são os melhores, os mais consoladores, os que preenchem os longos silêncios de quem, por circunstâncias da vida e da morte, se afastou fisicamente de nós. 

 

A acrescentar a estes pequenos caprichos, começamos com a tendência nunca antes vista de ficar mais tempo em casa, gozando cada momento e cada metro quadrado. E se nos apetecer uma escapadinha ao fim da tarde, então vamos até às Fontainhas e atiramos uma moeda para a taça como se, enlaçados com a nossa cara-metade, estivéssemos a sonhar junto à Fontana di Trevi. E, depois, quer tenhamos viajado até Itália, quer tenhamos apenas subido três ou quatro ruas da nossa cidade, regressamos a  casa, à nossa ilha, ao nosso reduto, ao nosso forte, à nossa sauna, nossa ou arrendada, maior ou mais pequena, mais luxuosa ou mais minimalista, mais rica ou menos rica. Porque também é aqui que regressamos, após um dia de desânimo, após uma tarefa não concluída ou um projecto falhado. É aqui, no nosso lar, na nossa casa, que sentimos a segurança e o conforto que não experimentamos em qualquer outro lugar. E o nosso lar é tudo: é a nossa mulher, o nosso marido, os nossos pais, a nossa namorada ou namorado, os nossos  filhos e netos, o nosso cão, gato ou periquito... ou nós próprios, apenas.   

 

E, quando tudo se proporciona, se na nossa casa podemos juntar alguns amigos, à volta de um livro ou à volta de coisa nenhuma, em almoços épicos, porque profundos e intermináveis, então, aí, chegamos ao verdadeiro Paraíso.

Isto não é um recado. É um desejo. Só não percebe quem não quiser.

 

 

João Luís Nabo


In "O Montemorense", Outubro 2024



[1] Victor Frankenstein é a personagem-título e protagonista do romance de 1818, de Mary Shelley, Frankenstein ou O Prometeu Moderno

[2] Um dos mais queridos lemas do ditador António de Oliveira Salazar (1889-1970).

[3] Alusão ao poema Cântico Negro, de José Régio.

terça-feira, 10 de setembro de 2024

Dois apontamentos na rentrée

 




As minhas férias

 

            As minhas férias foram absolutamente normais. Como as férias da maioria dos portugueses. Com um ou outro constrangimento, mas nada de maior importância.

A minha cidade fica sempre diferente nesta época do ano. Isto porque deixamos de encontrar com tanta frequência as mesmas pessoas, usamos roupas claras e leves, interrompendo por umas semanas o nosso visual de alentejanos que pouco se importam com a moda e, muito importante também, acabamos sempre por dar de caras com gentes de outras paragens (cada vez em maior quantidade, é verdade) que passam por aqui em turismo ou que assentaram residência temporária ou definitiva na nossa cidade ou no nosso concelho, por questões de trabalho.

        Pois foram normais as minhas feriazinhas. Com passeios pela cidade, descarada ausência no ginásio, encontros com amigos, um ou outro petisco na Sede da Columbófila e, também lá, o meu Martini das onze e meia, dia sim, dia não, para além de umas sestas, umas leituras, umas escritas, enfim… o normal. Contudo, “para respirares outros ares que não só os da Torre do Relógio”, como diz o meu Grilo Falante, até estive uns dias na praia na companhia de gente boa e paciente (a minha mulher e a minha filha). Na praia. Leram bem. Eu faço tudo por elas. Ah, pois é! E como foram esses dias de veraneio, sem planos especiais e com muitas horas na mesma posição do Menino Jesus (nas palhinhas deitado, nas palhinhas estendido)?

            Se não tivessem sido os gritinhos irritantes das velhinhas, quando uma onda lhes subia pela pernoca; se não existissem os homens das bolas de Berlim, constantemente com aquele grito “Boliiiiiiiinhaaaaas!!!!”, mesmo junto ao nosso ouvido bom, alguns deles com uma campainha que retinia ao som dos seus passos pelo areal; se os Salvadores e os Santiagos, os Martins e os Afonsos tivessem ficado em casa com as mamãs, que ainda gritam mais do que eles; se os telemóveis tivessem sido proibidos à entrada da praia; se os cães e os donos dos cães tivessem ficado numa praia só para eles, a dez quilómetros da minha; se os malucos da salsa, da rumba e sei lá mais do quê tivessem ido dançar para a Floresta Amazónica e tivessem levado com eles aquela coluna de som que, de certeza, se ouvia em Pequim; se os guarda-sóis dos meus vizinhos, mal enterrados na areia (os guarda-sóis, não os vizinhos), não me tivessem acertado sete ou oito vezes em plena sesta, depois de um almocinho de dieta; se a água do mar pudesse ser aquecida rodando um botão, assim como num esquentador; se os jovens adolescentes não se armassem em parvos para as namoradas, fazendo surf e bobyboard e sei lá que mais, ao som dos gritos das suas hormonas saltitantes; se os Salvadores e os Santiagos, os Martins e os Afonsos, com pouco mais de três extraordinários e sonoros aninhos, dormissem o dia todo, a toque de ritalina e outras cenas que os pais lhes dão antes de irem para a escola, e não fizessem corridas nem jogos de raquetes a toda a hora, saltando por cima de mim e das minhas companheiras de férias como se estivessem a correr os 100 metros barreiras… Se eu tivesse ficado na minha sala, fresca e silenciosa e com uma televisão cheia de filmes e séries para desfrutar…

…Então, as minhas férias teriam sido o Paraíso, meus filhos[1]

 

Os novos montemorenses

 

Há um novo grupo, já com alguma dimensão (embora eu não possua dados concretos sobre isso), que veio para Montemor, como poderia ter desaguado noutra terra deste Alentejo. Os migrantes com quem nos cruzamos diariamente vieram à procura de paz e de trabalho. Não sei se a Autarquia já o fez e, se assim é, deixo aqui o meu aplauso, mas seria urgente a criação de um Gabinete de Apoio ao Migrante, constituído por uma equipa multidisciplinar que preste auxílio a quem chega a Montemor praticamente com a roupa que tem no corpo: ajuda com a língua, a documentação, a matrícula dos filhos nas escolas, a procura de casa e de trabalho digno. Somos, cada vez mais, uma cidade cosmopolita, com cidadãos de variados países do mundo que precisam de se sentir incluídos e felizes. Já basta a distância que os separa da família e dos amigos, das vivências culturais dos seus países de origem. Já basta o terem sido perseguidos e maltratados pelos seus próprios governos. Já basta terem fugido à guerra e à fome. Já basta tudo isso.

Nos anos sessenta e setenta, para escaparem à miséria, ao salazarismo que parecia eterno e à guerra no Ultramar, milhares de portugueses rumaram, sabe Deus em que condições, em direcção à França, à Alemanha, à Suíça, aos Estados Unidos… Refizeram as suas vidas, com muito trabalho e, quantas vezes, a viverem em condições desumanas, e deram um futuro aos filhos e netos. Ainda hoje continuamos a emigrar, noutras condições, é certo, mas sentimos sempre aquele desejo de vermos os portugueses como nós a serem respeitados nas suas capacidades e na sua dignidade como qualquer outro cidadão do mundo.

Montemor, tal como o nosso Alentejo, sabe receber as gentes que vêm de fora. E se somos calorosos, genuínos e magnânimos em momentos de festa, que o sejamos também nestes momentos de aflição. Nunca saberemos se, um dia, não somos nós a procurar uma vida melhor a milhares de quilómetros da nossa terra.

 



[1] Homenagem ao poeta britânico Rudyard Kipling (1865-1936) e ao seu poema “If”.


João Luís Nabo

In "O Montemorense" , Setembro de 2024

quinta-feira, 11 de julho de 2024

Três vivas!

 


Viva Portugal dos Pequenitos! Viva!

 

Ora, como dizia um célebre Professor na RTP, aos Domingos à tarde, nos anos 60, se bem me  lembro… há muito, muito tempo que Portugal não tinha tanta lama e tanta gente estranha a marinhar neste lago de gansos moribundos que nada acrescentam a um país a necessitar urgentemente de ver uma luz ao fundo do túnel. Se Vitorino Nemésio vivesse hoje, nenhum dos políticos ou dos pseudo-políticos que por aí andam a dar-nos música se safaria de uma observação sagaz, pertinente, certeira, corrosiva e inteligente. Como nenhum de nós, nem eu nem os meus 8 leitores, é o velho e saudoso Professor açoriano, contentamo-nos em, seguindo o seu provável raciocínio em relação a estas matérias, declarar morta e enterrada a confiança que devíamos depositar no sistema de justiça, a honestidade e transparência da maioria dos políticos, a esperança de sermos felizes neste país de ratazanas que querem é palco, mentir uns aos outros e aos portugueses que os elegeram e apresentar para governar este quintal ministros que não passam de figurinhas de presépio, e de líderes que, perante qualquer contrariedade, ameaçam de forma, quer velada, quer directa, com a sua demissão.

E Marcelo? Ah!!!! E Marcelo que tem sempre tanto para dizer, que fala quando lhe fazem perguntas e, quando não lhas fazem, fá-las ele para, a seguir, responder com um sorriso perdido mas feliz.

Não. Portugal não merece os filhos que tem. Nem a Pátria é ditosa. Nem ditosos são os filhos que ela pariu.

 

 

Viva o Euro (ou lá o que é)!

 

Tanta fé, tanta fé, tanta vela na Senhora da Visitação, tantas promessas à Senhora da Carvalha, tantas orações a Zeus Cristiano e, afinal, nada deu certo. Mas vivam os que fizeram desta participação de Portugal uma grande festa antes do desastre final e da morte da Esperança, a tal tia que foi a última a morrer… Mas já se sabia qual a grande consequência de tudo isto: atacaram o Ronaldo por causa da idade e má-na-sê-quê, anunciando as grandes e doutoradas vozes do meio que ele e o Pepe já deram o que tinham a dar.

Não sei se é assim. O futebol não é a minha praia. Mas se Portugal se aguentou até aos quartos de final, foi porque teve valor e teve jogadores à altura. Achei muito curioso destruírem o Diogo Costa no jogo contra a França, depois de o terem transformado em semi-deus e herói lusitano, digno da epopeia camoniana, no desafio contra a Eslovénia. Na verdade, a criatura humana é de atitudes absolutamente interesseiras, contraditórias e… estúpidas.  

Para terminar este pedaço de “análise futebolística” (se não pusesse a expressão entre aspas, já estava a receber telefonemas de amigos menos tolerantes e que acham que metem muita graça com as suas críticas à minha falta de conhecimentos nesta área), gostava de perguntar por que se aplaudem equipas que não conseguiram cumprir o seu objectivo, que era, naturalmente, saírem vencedoras na Final? São aplausos de consolação. Aceito.

O que não aceito é milhões e milhões de portugueses mostrarem a sua solidariedade e o seu amor incondicional a jogadores que nunca os conheceram ou conhecerão e que assobiam para o lado quando as crises do país se esbatem sobre as suas cabeças, sem que os Governos sucessivos do Pê Esse e do Pê Esse Dê lhes resolvam os graves problemas de salários, habitação, emprego, educação, saúde e outras cenas que todos conhecem e que só agora, passada a euforia do Euro, lhes recomeçam a bater forte. Porque não podemos esquecer que há outro Euro muito mais importante que o do futebol: o Euro que nos põe o pão na mesa e a que nem todos os portugueses têm devido acesso.

Faleceu a Dra. Joana Marques Vidal, a primeira procuradora-geral a mandar prender um ex-primeiro-ministro. Que a Dra. Lucília Gago se mantenha firme para que possa mandar prender quem deve. O problema é que este pessoal de colarinho branco é todo desviado para Évora, e a prisão da nossa capital de distrito, tal como o Euro com que nos governamos, não estica.

 


Viva o Curvo Semedo! Viva!

 

Fui ao espectáculo da Escola de Ballet do Município. Foi uma bela festa, com as pequeninas a darem o seu melhor e com as crescidas a criarem grandes momentos estéticos de dança e expressão corporal. Admirável, direi mesmo. Indissociável desta bela obra com 45 anos de vida está a Professora Amélia Mendonza, a quem ofereço, de pé, o meu prolongado aplauso.

Mas nem só de palco vivem os grandes teatros, como é o Cineteatro Curvo Semedo. A ausência de obras atempadas faz com que, por exemplo, em noites de concerto, as poltronas da plateia deixem os espectadores escorregar até ao colo dos primeiros violinos, permite que as casas de banhos dos Senhores e das Senhoras estejam completamente degradadas e sem quaisquer condições de higiene para serem utilizadas devidamente, admite nos corredores do teatro sofás que já viram dias (muito) melhores e os quais ninguém quer usar para descanso.

Sei que está prevista uma obra de remodelação para todo o edifício. Sei também que há, desde o Governo de Durão Barroso (2002), um projecto para as alterações ansiadas. Sei que continuou depois a haver mais umas promessas e tal, mas também sei que nada aconteceu. Se a situação está prestes a ser resolvida, isso devolve-me uma certa esperança de começar a ver uma luz ao fundo do túnel.

Só espero que não seja o comboio.


João Luís Nabo


In "O Montemorense", Julho de 2024

terça-feira, 11 de junho de 2024

Três cenários

 


 

Cenário I – o Centro Histórico

 

            Se algum forasteiro se atreve a desenhar a nossa cidade com traços críticos, de mau gosto, apenas porque sim, ou para cumprir a sua missão como “detestador” de serviço, nós, os de cá, levantamos logo a mão (a direita ou a esquerda, tanto faz) e dizemos sem hesitação: “Alto e para o baile!” E porquê? Porque para dizer mal, criticar e apontar defeitos à nossa cidade estamos cá nós, os que gostamos dela, os que cá vivemos e que temos as suas ruas e os seus largos como cenários naturais da nossa vida diária.

Sabemos que o nosso Centro Histórico continua, pelo menos aparentemente, sem uma solução à vista. Já por aqui passaram, noutra altura, esses desabafos e alertas. Sabe-se que nem tudo depende da autarquia e que os proprietários das casas quase em ruínas precisariam de apoios substanciais para poderem restaurar/reconstruir os imóveis que são, muitos deles, a imagem do Centro Histórico, mas que estão na iminência de cair. Não se referem aqui as evidências, porque elas são, de facto, demasiado visíveis, e estas linhas são apenas o resumo das muitas preocupações que munícipes e órgãos autárquicos vêm manifestando ao longo de vários anos. No entanto, ainda nada se fez. No entanto, esses imóveis continuam lentamente a mover-se em direcção ao solo.

Um dia, o Largo General Humberto Delgado, o Largo da Matriz e outros espaços emblemáticos da cidade podem transformar-se em feridas angustiantes e dolorosamente difíceis para o olhar de quem passa.  

 

            

Cenário II – O Rio

 

            Também o Rio parece condenado a desaparecer. O Rio onde aprendemos a nadar, onde passámos verões inteiros à pesca, onde nós éramos parte daquelas águas e personagens desenhadas naquele quadro com as torres do castelo lá em cima, no monte mais alto. As margens foram, há muito, conquistadas pelas silvas e por outras plantas selvagens, os peixes perderam há anos o seu habitat natural, as águas, um fio de luz naquele restolho sem fim, já quase não se avistam ao longo daquele triste barranco… Lembro-me de o Rio ter sido, em tempos, um dos elementos que viria a ser estudado pelos socialistas, quando estes começassem a gerir a autarquia. Na verdade, pouco ou nada se tem ouvido falar sobre o assunto.

Enquanto esperamos que outros dias possam trazer uma enchente de boa vontade (e de dinheiro) para devolver ao Rio a sua dignidade, aqui fica, sem qualquer presunção, um excerto do conto “O Milagre”[1], com dois retratos profundamente diferentes do Rio Almansor, mas porque era assim que, em tempos idos, ele se manifestava. No Verão era um, no Inverno era outro, como qualquer ser vivo em constante mutação. Agora… é sempre igual. É um cadáver à espera do próprio enterro:

 

FAZIA um calor de morte. Agosto ia a meio e Vila Nova transpirava por todos os poros. Nas ruas e nos largos quase não se via vivalma. Apenas a luz do Sol a vibrar nas pedras da calçada e a fazer escorrer suor pelos rostos, muito poucos, dos mais ousados. O rio que passava lá em baixo, no sopé da colina coroada com as torres do Castelo, era um fio de dor que deixava a descoberto troncos velhos, secos, de braços retorcidos apontados ao céu, que destapava rochas, lapas, labirintos escavados no fundo do leito por peixes de toda a ordem, por cágados e cobras de água, bicharada que ia convivendo, que se ia apertando, conforme o tamanho e o feitio, nos pequenos pegos, pobres poças de água quase pútrida, onde tentariam sobreviver até à chegada das próximas chuvas “(…)”.

“(…)” No dia seguinte, choveu, glória à Virgem e a Deus, aleluia! (…) Por cima do Castelo, nuvens negras vomitavam raios e trovões, lançando uma cascata, pesada e interminável, que era um entorneiro por aquela encosta e por todas as encostas ali à volta, desaguando no rio que, no fundo do vale, já tapava os arcos da ponte romana. As águas, imparáveis e impiedosas, saltavam as margens e arrastavam sem compaixão porcos e ovelhas, galinhas e patos, que chegavam já inchados ao Pego do Moinho do Virtuoso “(…)”.

 Cenário III - Férias (o velho cliché de sempre?)

Vamos lá então descansar os ossos para um sítio longe daqui, para desanuviar, dizem uns, para mudar de ares, para lavar a vista… Praia, montanha, lá fora, cá dentro, com a família, com amigos ou sozinho. Cada um fará como melhor lhe aprouver ou conforme o deixarem. Muitos saem porque estão fartos das mesmas ruas, das mesmas pessoas nos mesmos locais. Mas não querem ficar em hotéis de luxo, ou em apartamentos confortáveis com vista para o mar ou para a montanha. Nada disso. Aventuram-se para o Algarve, à boleia, com uma mochila às costas, para a Comporta, de bicicleta, ou mesmo para um parque de campismo meio perdido, junto a uma pequena aldeia do Norte. Outros atravessam desertos, de moto ou em camelos, descem a costa alentejana de caravana ou num Opel Corsa de 1992 (ah, a Velha Senhora, sempre pronta para as curvas!) ou fazem trails de loucos em serras inóspitas, onde um passo em falso pode ditar uma verdade assustadora. O objectivo não é o repouso, sob um sol convidativo, à beira da piscina do Altis ou no relvado de um jardim exótico. Não são as sunset parties nos bares da praia ou os jantares à beira-mar, onde tudo é preto e prata, branco e alaranjado. O propósito é a superação, é o aliviar do espírito, o querer, o ser, o estar, o afirmar-se, mais uma vez e sempre, como seres humanos que levam ao limite o seu talento de sobreviventes, e ser capaz, no fim, de lavar o sangue, o suor e todas as lágrimas. Como faz o Pedro Ferreira, nesta sua permanente atracção pelo abismo.

Um dia, que se deseja tarde, serão esses os primeiros a salvar-se.


João Luís Nabo

In "O Montemorense", Junho de 2024

 



[1] João Luís Nabo, in “Segredos de Vila Nova” (Edições Colibri, Lisboa, 2023)

segunda-feira, 13 de maio de 2024

Três (ou mais) cenas tristes

 


 

            Escrever sobre a actualidade que nos assalta diariamente nas televisões e nas maravilhosamente malditas redes sociais é mesmo um sacrifício, porque não conseguimos retirar das informações uma gota de bom senso que possamos aqui transformar num rio de ideias, propostas ou conselhos para quem precise deles.

Portugal está a colapsar após 50 anos de Governos socialistas e sociais-democratas/centristas. Depois das sequentes e angustiantes quedas dos governos provisórios nos primeiros meses pós-revolução (até parecia que tínhamos regressado à Primeira República), sucederam-se verdadeiras equipas de extermínio que nos conduziram ao lugar degradante e, aparentemente, sem futuro onde nos encontramos há já tanto tempo. Há tanto tempo, que até já nos habituámos… à boa e tristinha maneira portuguesa do “Cá vai a gente indo…”

Houve momentos de clarividência, pois que os houve: o fim da guerra em África, a libertação dos presos políticos, o fim da censura, a criação do Sistema Nacional de Saúde, a conquista do direito à greve, o multipartidarismo, as eleições livres, o direito à educação, o direito à justiça, de forma isenta e igual para todos, o lento caminho em direcção à igualdade de género, os meios de comunicação rodoviária a unir quase todo o país…

Mas ficámos por aqui. Os lobbies, os amiguismos, os interesses e a corrupção tomaram conta do quintal, e o país, por muitos milhões de euros que viessem da Comunidade Europeia, nunca conseguiu equilibrar as contas, sobrando sempre para os que, eternamente agarrados à rocha, levam com todas as tempestades levantadas pela ladroagem que por aí tem andado e tarda em acabar, porque a Justiça branda nada consegue, ou quer, fazer.

 

 Cena Triste I

Nas  escolas, e apesar de alguns professores ainda acreditarem e praticarem os valores da velha escola (não a velha, onde a violência abundava, mas a velha, onde o professor transmitia conhecimentos, sem receio de que esses conhecimentos fossem postos em causa ou desprezados), estão ansiosos pela chegada do dia da aposentação, para poderem afastar-se de um sistema cada vez mais burocrático e no qual têm mais valor as actividades extra-curriculares do que o que se diz, pensa e ensina em frente ao quadro de uma sala de aula. Se queres ser comunitariamente incluído e aplaudido… dá poucas aulas e passeia muito.

 

Cena Triste II

 

Nos hospitais públicos, os doentes, mesmo os que necessitam de cuidados de maior urgência, esperam eternamente até serem vistos pelos médicos e enfermeiros, aguardam longas horas, em sofrimento, até que haja um bloco operatório livre para que o seu caso seja tratado, aguardam meses por consultas da especialidade até ao dia em que morrem e já não vão precisar delas. São horas, dias desesperantes de espera: velhos, novos, crianças, todos são tratados da mesma maneira: mal e de forma negligente. Mas não culpemos os médicos. Culpemos o sistema, o Estado que gere o sistema e que nada faz para inverter a desordem em que isto ficou. Há profissionais de saúde, tal como há professores, que ainda acreditam em tempos melhores. Que se vão mudando os Governos até a coisa afinar…

 

Cena Triste III

 

Na Justiça temos o que vemos e lemos todos os dias: procuradores sob o foco da opinião pública por fraca prestação no exercício das suas funções, juízes a serem julgados por suspeitas de corrupção e, cereja no topo do bolo, a decisão da procuradora Lucília Gago, que fez incluir um parágrafo no comunicado a propósito da Operação Influencer que acabaria por derrubar um Governo inteirinho. Este parágrafo foi, digamos assim, a cadeira de António… Costa. Como consequência, recebemos de presente um outro executivo, com ministros e secretários de estado que, qual figurinhas de presépio, ali estão apenas para decorar o musgo debaixo da árvore de Natal. De política nada percebem. Nem de contas. Nem de gestão. Nem de nada.

 

 

Última Cena Triste

 

“Temos tudo para sermos bons”, desabafava um amigo, recentemente, numa das esplanadas da cidade, após um copioso lanche de produtos de dieta alentejanos. “E temos”, respondi, do alto da minha provecta idade, beberricando um branco fresco, frutado e da região.

Mas o sistema não nos deixa ser “bons”. Se passarmos as várias linhas vermelhas que os políticos nos estendem à frente, linhas que definem bem a sua vontade de um poder absoluto, acabamos por ter problemas, ou com a justiça ou com a comunidade profissional em que nos inserimos. Neste país, os “bons” são obrigados a sair para ver reconhecido o seu verdadeiro valor. Temos cientistas, médicos, enfermeiros, professores, pensadores, escritores, actores, jornalistas topo de gama. Muitos não estão cá, porque este país madrasto os chutou daqui para fora. Outros profissionais nas mais diversas áreas partiram também, deixando vagas para centenas de imigrantes que vêm de várias partes do Mundo à procura da felicidade (Como estão enganados!...) 

E, depois, last but not least, temos ainda o fenómeno Marcelo, cavalheiro que nunca entendeu a diferença entre as funções de um comentador político e as de um Presidente da República. Marcelo perdeu por completo o sentido de Estado e de responsabilidade perante um Governo e um país (triste, mas um país), quando comenta de forma aleatória e um bocado alucinada tudo o que se passa à sua volta. Faz-me lembrar outros políticos que, sem qualquer maturidade e preparação, assumem cargos para os quais não foram talhados, acabando por, em momentos de maior pressão, revelar a sua fraqueza e incapacidade de gerir contrariedades. O Governo está cheio deles. 

Muitos ainda hão-de vir. A raça está difícil de acabar.

João Luís Nabo

In "O Montemorense", Maio de 2024


domingo, 14 de abril de 2024

Para mais um dia inicial inteiro e limpo*

 

                                                                                

                                                                                        * Sophia de Mello Breyner

 I

 Quando começamos a ler textos em número maior que o habitual sobre os direitos e o papel da mulher na sociedade, algo começa a estar mal. “Identidade e Família”, um livro escrito a várias mãos, entre as quais as de Bagão Félix, César das Neves, Ribeiro e Castro, Paulo Otero ou Jaime Nogueira Pinto, foi recentemente apresentado por Passos Coelho na Livraria Buchholz, em Lisboa.  

Os temas abordados nestes vinte e dois ensaios acabaram por gerar a polémica esperada por quem os escreveu. Caso contrário, não os teria escrito. Quando se começa a defender a família tradicional com todos os valores que lhe estão inerentes, as novas famílias que foram sendo estruturadas ao longo das décadas mais recentes, nas quais os elementos deixaram de ser um pai, uma mãe e um(a) ou mais filho(s), sentem-se naturalmente excluídas, porque são apontadas como incapazes de proporcionar à sociedade, ou à comunidade onde se inserem, princípios e valores aparentemente tão válidos ou alegadamente tão sérios como os apregoados pelos ideólogos mais conservadores.

A mulher e o seu papel na sociedade, uma das reflexões a merecer o foco na obra e, consequentemente, nos subsequentes comentários a favor e contra ela, e centro das atenções desde o Livro do Génesis, continuará, decerto, o seu percurso. Como exemplo de luta e de vitórias e como elemento fundamental para a existência de todo este planeta onde vivemos. Como elemento da família, tradicional ou não, e cuja importância nunca deveria ter sido questionada desde os tempos mais remotos até a este mês de Abril de 2024, num país que deverá, para seu próprio bem, manter-se, todos os dias, vinte e quatro sobre vinte e quatro, em estado alucinante de alerta.

 

Com toda a polémica que causou, “Identidade e Família” veio tornar claros os desejos de alguns dos seus autores, impossíveis de conter mais, de um regresso ao passado, a uma sociedade patriarcal e masculinizada, onde a mulher voltaria a ser o que foi durante décadas: uma figura sorridente e decorativa. Então, se os defensores desse regresso se manifestaram de forma aberta e descomplexada, que não haja da nossa parte quaisquer complexos em combater, agora com o alvo à vista, ideias, conceitos e ideologias que têm em comum e por trás uma tentativa cada vez mais consciente, por parte de uma franja da sociedade, num regresso a um passado que não queremos de volta. 

 

Nada é por acaso na política e na religião. Todas as palavras e todos os actos têm um objectivo, à partida fáceis de identificar: convencer, manipular, criar ídolos. Passos Coelho foi convidado para a apresentação deste livro. Não entrou ali por acaso, não tomou a palavra porque calhou, não defendeu os textos e seus autores por bonomia de carácter, e acredito que  a tenha. Passos esteve presente para dar uma aula de política a Montenegro, com quem mantém agora uma relação de civilizada proximidade. Todos perceberam pelas suas palavras, e utilizando a obra e as suas temáticas como pretexto, que havia ali um subtexto que Ventura captou como raposa que é: “Montenegro, meu amigo, não sejas teimoso e dá um beijinho ao André.”

 

II

 

Estamos em Abril novamente. Cumprem-se 50 anos da Revolução que nos permitiu ser livres. Falar sem medo, pensar sem medo, dormir sem medo, passaram a ser acções… antes impossíveis. Este meio século sobre o grito de Salgueiro Maia e dos seus homens no Terreiro do Paço, em Lisboa, merece ser comemorado, mas sem aquele estranho sentimento que muitos já querem fazer vingar de que vamos aproveitar porque não sabemos se, para o ano, tal comemoração será possível. Claro que vai ser possível.

Sabemos que uma grande parte dos jovens do nosso país tem apenas uma ideia meio esbatida sobre a Revolução, as suas causas e consequências. Os temas que lhes interessam são de outra índole, e os pais e os professores nem sempre tornam possível essa passagem de testemunho, essencial para a sua estrutura e consciência como seres humanos e portugueses, cujos avós e bisavós viveram numa ditadura abjecta e cruel que deixou Portugal em sofrimento e “orgulhosamente só” durante cinco décadas. Afinal, somos todos herdeiros da nossa História, dos crimes cometidos em nome de Deus e da Pátria, dos feitos dos heróis, dos bons e dos maus momentos. Para podermos recusar uma ditadura, uma ditadura de qualquer tipo, há que conhecer de forma séria e aprofundada os tempos de escuridão que milhões de portugueses viveram, na esperança de um 25 de luz que lhes iluminasse o futuro.

Se tenho medo dos movimentos político-partidários, todos com a chancela da direita ou da extrema-direita? Claro que não. Quanto mais visíveis se tornam, mais facilmente serão combatidos.

Não se fala muito de opções partidárias cá em casa. Fala-se sobretudo da política que é preciso fazer vingar em nome do futuro e do progresso. Porque é preciso manter acesa a chama da Liberdade.

 


João Luís Nabo

In "O Montemorense"  Abril 2024

segunda-feira, 18 de março de 2024

Stabat Mater (a todas a Mães)

Nota prévia: em Abril de 2019, escrevi este texto alusivo ao tempo da Páscoa. Aqui fica ele, mais uma vez, para recordar o Cristo e homenagear todas as Mães.

 


Pintura: "Deposição de Cristo da Cruz" (1575-1577)
Autor: Jacopo Bassano

            A cruz pesava-lhe no ombro, mas já não tanto como no início. O corpo coberto de pústulas de sangue e suor misturadas com o pó seco do caminho, dando origem a uma espessa camada de lama avermelhada, começava a estar dormente, afastado do seu pensamento.

O sangue quente e vivo escorria-lhe da cabeça, e a coroa de espinhos continuava fortemente enterrada no crânio, parecendo ter nascido ali, com origem nos cabelos suados, castanhos e lodosos. O Sol a pino cegava-o e ele quase não conseguia ver para onde atirava os pés doridos, que as sandálias já não conseguiam proteger. O caminho era íngreme, pedregoso, difícil. Como difícil tinha sido a sua vida e a sua luta pela fé.

Jerusalém estava cheia de gente por altura da Páscoa. Muitos tinham vindo de longe só para verem, com os próprios olhos, a condenação e a morte de um homem que diziam ser o rei dos Judeus. A multidão cercava-o selvaticamente, gritando, urrando, fugindo às investidas dos soldados e dos cavalos, acicatando alguns cães que se misturavam com a turba em êxtase. Ele ouvia todo aquele barulho ensurdecedor, mas não conseguia distinguir as vozes. Esforçava-se, desesperadamente, por escutar, de entre a confusão de palavras, a voz gentil de Maria, sua mãe, que estivera sempre consigo, que o amava incondicionalmente, que sempre respeitara a sua vontade e as suas opções, que queria morrer por ele, se a deixassem. E Maria de Magdala, com o seu conforto e os seus olhos de avelã, doces e tristes, e João, o seu melhor amigo, o seu irmão, a sua paz. Mas o peso da cruz tirava-lhe a concentração, e desistiu. Sabia que estariam ali, a acompanhar o seu caminho derradeiro até ao Gólgota.

Sentiu que as forças lhe fugiam. Caiu mais uma vez. Mais uma vez os soldados romanos o levantaram a toque de lanças e de palavras sujas. Ergueu-se, as pernas a tremer e a garganta seca, seca, como as dunas do deserto. Dobrou-se para abraçar a cruz e pô-la de novo sobre os ombros, já em carne viva. Não foi capaz. O corpo não obedecia ao cérebro cansado. O estômago ardia-lhe e o coração parecia querer sair-lhe do peito. Apercebeu-se de que alguém lhe punha a mão na face. Por entre o sangue quase em crosta e o suor enlameado, abriu mais os olhos para ver quem era. Não era a mãe. Não era João. Nem Maria de Magdala.

“Chamo-me Simão. Vou ajudar-te”. E empurrado pelos soldados, após um brusco aceno de cabeça do centurião, o homem, já idoso, natural de Cirene, carregou a cruz durante uns bons metros. Os suficientes para aliviar um pouco o condenado. Este aproveitou para semicerrar os olhos e tentar ver, pela centésima vez, onde estavam os amigos. Escondidos, decerto. Amedrontados, como seria de esperar. A protegerem a própria vida.

Quando, com um esgar de sofrimento, se preparava para aceitar a cruz de volta, das mãos do Cireneu, viu uns olhos muito azuis, muito abertos, rasos de lágrimas, incrustados num rosto claro de tanta luz e triste de tanta dor. Era a mãe. Era a sua mãe que lhe estendia a mão frágil, como se com aquele gesto pudesse carregar também aquela cruz ensanguentada. Inspirado pelo olhar incomparável daquela mãe, incomparável como o de todas as mães, o condenado mostrou-se mais vigoroso, mais preparado para o resto do caminho em direcção ao monte.

 Agarrou na cruz, e nem as dores dos espinhos, nem os golpes das vergastadas lhe ardiam. Nada o segurou ou impediu de cumprir o fim da mais difícil oração da sua vida. Muito menos as memórias do que tinha sofrido havia poucas horas. Pelo seu olhar perpassou o manto cor de púrpura e os risos dos que, no Sinédrio, gozavam com ele, a cana a servir de ceptro, o seu rosto cansado, cuspido pelos soldados, as injúrias e os impropérios, a libertação de Barrabás, os gritos do povo enlouquecido, “Crucifica-o, crucifica-o!”, as mãos de Pilatos mergulhadas na bacia e, depois, pingando para o chão a água da indiferença…

            Olhou em frente e viu o monte. O Gólgota. O Monte da Caveira. Onde eram crucificados os que punham em causa o que não podia ser posto em causa. Seria ali, dentro de poucas horas, o lugar da sua morte. E ele sabia-o. Desde o tempo dos profetas que tudo isto se sabia. Nada era novidade para ele. Então, nada havia a fazer para contrariar a vontade dos homens que o tinham condenado, o desinteresse dos homens que não o defenderam e a frieza do Pai, que iria aparentemente abandoná-lo no momento mais extraordinariamente difícil da sua vida. E também sabia que as suas roupas iriam ser jogadas à sorte entre os soldados e que lhe iria ser dado vinho e fel, pelos mesmos que lhe iriam perfurar o lado para se certificarem da sua morte. Todas estas provações seriam muito mais difíceis de aceitar se a mãe não estivesse com ele, quando tudo terminasse. Essa era a sua grande certeza: a mãe iria recebê-lo nos braços, junto ao coração, num aperto derradeiro, único e doloroso. E lá estaria também a irmã dela. E João. E Maria de Magdala.

            Assim se cumpriu.

Depois da hora nona, as trevas invadiram a Terra. O condenado, à beira do fim (ou do princípio?), invocou o nome do Pai e, em paz, depois de tudo estar consumado, entregou o espírito.

O Sol eclipsou-se, o véu do templo rasgou-se em dois e a Terra tremeu, tal como tinha sido narrado pelos profetas.

                                                                …………………………..

          Aos pés da Cruz, o regaço de Maria recebeu, finalmente, este Menino de Sua Mãe, exangue, coberto de chagas, retalhado, sujo, semi-nu, abandonado, morto, mas vivo para toda a eternidade.    

terça-feira, 12 de março de 2024

O desespero da Rosa e outras estórias sem interesse

 


O desespero da Rosa

 

O descaramento socialista, pontuado por um certo desespero, tornou-se o rosto visível de um candidato com um histórico cheio de nódoas, atirado aos bichos no último congresso do PS pelos próprios camaradas e que, na noite das eleições, perante um país em suspenso, se mostrou ansioso por regressar a casa e fugir daquele cenário desastroso, criado por ele próprio e pelo Governo a que pertenceu e do qual foi despedido.

Como pode um partido, que perdeu a credibilidade perante os seus eleitores e perante os portugueses em geral, depois da sua queda vergonhosa por motivos ainda mais vergonhosos, apresentar um candidato que foi ministro, e ministro demitido por decisões mal explicadas?

Como é possível António Costa, no decorrer da campanha eleitoral, vir a terreiro defender o seu ex-ministro, por si demitido, como o candidato certo a primeiro-ministro de Portugal se ele nem um bom ministro foi?

Como se pratica o apoio a um falso delfim que, em debates televisivos após a sua demissão, rasgou o Governo socialista e o seu líder de alto a baixo?

A última pergunta que se impõe é ainda mais simples: o Partido da Rosa não tinha outro candidato, mais clean, menos polémico, para eleger como secretário-geral? Pedro Nuno Santos era mesmo o melhorzinho de todos? Pois… parece que não.

 

 O que o meu PS não fez, vou eu fazer agora…

              … poderia ter sido o lema de campanha do candidato socialista, já que foi um ver se te avias nas mudanças operadas no pensamento de Pedro Nuno Santos quando se viu na incumbência de ganhar as eleições. Por exemplo, tudo o que o Partido Socialista se recusou a fazer em relação às justas exigências dos professores, em pé de guerra com o ministério da tutela e com João Costa quase durante um ano lectivo inteiro, com Pedro Nuno tudo será agora diferente: os professores poderão vir a recuperar o tempo de serviço que lhes foi roubado. Serve esta atitude eleitoralista para medir o cinismo e a teimosia hipócrita do ministro da Educação, do ministro das Finanças e do primeiro-ministro, que afirmaram sempre não haver dinheiro para tal despesa repentina e incomportável. Agora, com PNS, o dinheiro deixou de ser problema.

PNS perdeu por uma nesga, mas perdeu. Ganhou o parente (não muito) afastado de Ventura que conseguiu pôr o país em suspenso com o seu “Não é não!”. Veremos se vai manter o que disse ou se, com o apoio do terceiro maior partido, vai contribuir para mudanças profundas na gestão do país e dos portugueses, algumas delas regressadas de outros tempos, em que o queridíssimo líder, com palavras mansas e cristãs, sussurradas aos ouvidos dos descontentes e guardadas e feitas cumprir por uma competente guarda pretoriana, punha e dispunha do tempo, da mente e da vontade dos liderados. 

  

O Povo é… o Povo (por enquanto) 

Não defendo partidos extremistas, nem de esquerda, nem de direita. E porque os extremos se tocam, a História já nos mostrou os resultados terríveis e os atentados aos direitos fundamentais dos cidadãos que regimes nazis/fascistas e regimes comunistas tiveram a oportunidade de exercer ao longo de décadas, sobretudo numa boa parte dos países da Europa, incluindo no nosso, durante 48 anos.  

Quando, ao longo do seu percurso de ascensão, um partido se revela uma alternativa, mas contra as pedras basilares do sistema democrático, esmagando aos poucos os direitos dos cidadãos, a primeira reacção, quase instintiva, é refutá-lo, mais do que isso, é ignorá-lo. Ainda assim, ignorar um partido com as características do partido de André Ventura só poderia ter dado este resultado: uma subida estrondosa no número de votos e uma conquista legítima e democrática de quase um quarto dos assentos parlamentares.

Inúmeras tempestades irão abrir-se sobre as nossas cabeças, acompanhadas de tsunamis e terramotos da mais diversa índole. Mas não nos podemos admirar. Foi o Povo que escolheu, e o Povo é soberano. Ninguém poderá contrariar a vontade do povo, e André Ventura tem isso do seu lado. Isso e as asneiras em catadupa perpetradas por Costa e seus delfins, de tal modo que tiveram de deixar cair um Governo de maioria que, por falta de inteligência, de sentido de Estado e com um sistema de amiguismo bem implementado, abriram um espaço preenchido por quem, à imagem de outros políticos tristemente célebres, souberam aproveitar o demérito da esquerda e o transformaram em mérito próprio para se auto-proclamarem salvadores de uma nação em agonia. Outros já o fizeram, vindos da esquerda e da direita, com os resultados desastrosos, assustadores e macabros que todos conhecemos e abominamos.

Há, porém, uma questão que Ventura, no meio da sua quase infantil euforia, ainda não ponderou. A subida vertiginosa do seu partido em termos de votantes, recebendo no boletim mais de um milhão e cem mil cruzinhas, não tem a ver com o seu programa eleitoral ou com as soluções que ele vai apresentando como se já fosse primeiro-ministro. Tem a ver com o descontentamento, com a desilusão, com o vazio que sentimos em relação à forma como temos sido governados. Ventura e o seu partido não têm JÁ um milhão de adeptos, têm APENAS um milhão de adeptos. Os outros seis milhões andam espalhados pelo espectro, desnorteados, à espera de melhor rumo.

O acto de desespero dos eleitores, até de vingançazinha, contra as duas maiores cores do espectro partidário, desvalorizando o peso desse gesto, pode resultar num caldinho ainda menos apetecível, onde seremos, cheios de estúpida felicidade, postos a cozer em fogo lento. Os próximos dias serão, pois, decisivos para as nossas vidas. Mas há sempre forma de voltar atrás.

É verdade! Alguém diga ao Presidente da República que, para já, guarde silêncio e deixe a democracia funcionar sozinha.

João Luís Nabo

In "O Montemorense", Março de 2024

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

Três textos de ficção

 



I


Não é novidade a forma completamente inadequada como decorrem os debates entres os candidatos a primeiro-ministro, nos diversos canais de televisão. Acusações, destruição de carácter, tiros certeiros à honra, desrespeito desbragado pelas ideias do adversário, lançamento de petardos, em qualquer direcção, servindo de manobras de diversão, escavações fundas mas, muitas vezes, inócuas, no histórico político e pessoal de cada um, roçando o ignóbil e o insultuoso, é o que nos tem sido servido durante os últimos dias.

Se alguns dos pugilistas conseguem, apesar de tudo, manter alguma dignidade, sabe-se lá com que esforço, há outros que deveriam ir para casa, em vez de se sentarem no estúdio, de mangas arregaçadas e esgares ameaçadores, frente ao adversário. Se um prémio houvesse para o que está continuamente a pisar a linha vermelha, esse seria para André Ventura, que continua a pensar que é o único que irá livrar o país dos corruptos, dos criminosos e dos oportunistas. Outros houve, e a História é, infelizmente, farta em exemplos, que, não há muitos anos, foram eleitos porque o povo, farto do estado de uma Europa falida e a ressuscitar conflitos antigos, queria um mundo novo e justo. Pouco tempo passou até às perseguições, às prisões, às deportações em massa, ao genocídio, à destruição e ao envolvimento da Europa, dos Estados Unidos e da ex-União Soviética numa guerra profundamente destruidora como é qualquer guerra. Das ruínas nasceram outros oportunistas que acabaram por dividir a Europa em duas e manter um cenário de medo e insegurança durante várias décadas.

Ventura não é um fenómeno único na Europa (e no Mundo). Trump, Putin, duas personalidades ideologicamente dominadoras, os partidos de extrema-direita que lideram os governos da Itália, da Polónia e da Hungria, a França, com a candidata Marine Le Pen, a ganhar cada vez mais espaço no espectro político do seu país, são as máquinas que, aos poucos, vão minando a democracia, cada vez mais ameaçada. Daqui a algumas gerações, não muitas decerto, a Europa desse tempo não terá, politicamente, qualquer semelhança com a Europa do início deste século.

Para já, Ventura consegue manipular os debates, insurgir-se contra os moderadores, dominar as discussões, gerir o seu tempo e o tempo dos outros. Conhecedor da máxima “Não há publicidade má”, consegue aquilo que pretende: ser falado, comentado, amado ou odiado. Jamais ignorado. E ignorá-lo é completamente impossível. E pouco aconselhável.

O Balú, cão atento e sábio, diz-me bastas vezes que não vale a pena preocupar-me tanto. Que, mais ano menos ano, esquerda e direita irão tocar-se definitivamente e que ambas acabarão por esquecer o bem do povo, porque será para elas mais importante o “Bem da Nação”.

 

II

 

As novas tecnologias ainda não são bem a minha onda, muito menos a minha praia. Vamos aos poucos aprendendo, sobretudo com os filhos e os amigos mais novos que, entre um ou outro sorriso paternalista, nos conduzem ao estranho mundo dos logaritmos e dos megabytes. E, assim, seguimos mais confiantes, procurando tirar cada vez melhor partido das ferramentas que temos à nossa disposição online. A Internet, por sua vez, tornou-se um dos nossos maiores aliados quando nos fornece tudo o que solicitamos para novas leituras, consultas, pesquisa, publicações. O acesso a todos os locais, espaços e informações tornou-nos também mais vulneráveis, tal como os instrumentos que usamos ou os espaços onde vivemos. Temos cada vez menos desculpa para ignorarmos o que se passa à nossa volta e só não dominamos todos os temas do universo apenas porque não teremos dez ou mais vidas como esta, o tempo necessário para podermos abarcar uma parte (não a totalidade) de todo o conhecimento que nos é oferecido através de um “simples” computador. Acredito que, se Saramago vivesse fisicamente nestes tempos, teria, decerto, já escrito uma boa história sob a premissa “No Dia Seguinte Não Houve Internet”. Quem sabe até se este novo romance não poderia ser escrito pelo ChatGPT, tal como o foi a terceira parte desta bela crónica?

 

III

 

Enviei a seguinte mensagem ao ChatGTP:Olá! Imagina que amanhã não há Internet. Escreve uma pequena ficção sobre isso!” Cinco segundos depois, recebi o seguinte texto, que tomei a liberdade de resumir por conveniência de espaço[1]:

 

“Era uma manhã como outra qualquer, até que o sol nascente foi ofuscado por nuvens densas que pairavam no céu. As pessoas acordaram, como de costume, pegando nos seus dispositivos eletrónicos, mas algo estava diferente. A conexão com a Internet havia sido perdida. Em poucas horas, a notícia espalhou-se como um rasto de pólvora. Governos, empresas, famílias inteiras estavam desligadas do mundo digital, sem redes sociais, sem e-mails e sem acesso à informação instantânea.

As ruas, que costumavam ser preenchidas pelo zumbido das actividades online, agora estavam estranhamente silenciosas. As lojas que dependiam da Internet para processar transacções estavam fechadas. As pessoas juntavam-se em praças e nos parques, tentando encontrar conforto na companhia umas das outras. Enquanto isso, nos bastidores, cientistas e especialistas trabalhavam freneticamente para entender o que havia acontecido. Surgiram teorias da conspiração mas sem respostas concretas.

Com o passar dos dias, as comunidades começaram a adaptar-se à nova realidade. Apesar dos desafios, algumas coisas positivas emergiram dessa crise. As famílias passaram mais tempo juntas, redescobrindo a arte da conversa cara a cara, as crianças começaram a brincar ao ar livre, longe dos ecrãs brilhantes que antes as hipnotizavam.

Então, lentamente, a Internet começou a voltar. Os sistemas foram restaurados, os cabos foram consertados e a vida online retomou seu curso. As pessoas jamais iriam esquecer os dias em que o mundo ficou desconectado, lembrando-se de como a ausência da Internet as aproximou umas das outras de maneiras que nunca teriam imaginado possíveis.”

 

 João Luís Nabo (e ChatGPT)

 In "O Montemorense", Fevereiro de 2024

 

 

 



[1] Nota: O texto foi ligeiramente alterado na forma mas não no conteúdo.

Distraídos crónicos...


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