quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Não sou Charlie



Deixar passar em claro a oportunidade de escrever sobre o assunto mais comentado da actualidade é ignorar o óbvio e desiludir os meus 10 leitores. Portanto, aqui vai.
Condeno sem reservas o ataque obsceno à redacção da Charlie Hebdo, uma revista satírica francesa que fazia (e vai continuar a fazer) as delícias dos seus leitores, com caricaturas fortes, sobretudo de personalidades ou entidades ligadas à religião. Apesar deste meu propósito, não sou o tal Charlie. Assumindo esse facto, tal como milhões assumiram o contrário, escrevi numa rede social “Je ne suis pas Charlie”, contrariando o slogan com que o mundo acordou pouco depois do atentado. Escrevi e logo escreveram a seguir o que lhes ia na alma, tornando o meu Mural num verdadeiro atentado à minha própria liberdade de expressão.
Por aqui se vê que é profundamente difícil discutir esta temática sem tentar perceber primeiro até onde pode ir o limite do humor e da liberdade, qual a delimitação da fronteira em relação à caricatura mordaz e violenta, e até se é possível usar de bom senso antes de se publicar seja o que for. Pois é, dirão muitos, o bom senso é uma cerca mascarada contruída à volta do nosso cérebro e onde se fecha a cadeado a democracia, a liberdade de expressão e a criatividade. Proceder a uma auto-censura prévia em relação ao que publicar é aceitar, irrevogavelmente, a limitação da nossa própria existência como seres pensantes e cidadãos do mundo.
Mas quem pode ser melhor ou maior cidadão do mundo? Não é, tenho a certeza, quem carrega cartazes e frases nas camisolas e na testa a dizer “Je suis Charlie” até à exaustão e a roçar o vulgar. Também não será aquele que, no cantinho do seu sofá, este já moldado ao corpo pela habituação, ignora a ameaça gigante que se repetiu recentemente, a meia dúzia de quilómetros da nossa casa, e cuja primeira versão aconteceu em Nova Iorque, no dia 11 de Setembro de 2001. Deixar que os nossos pensamentos sejam controlados por radicais, seja de que religião ou partido for, é um passo para a criação de uma sociedade totalitária, de terror e em guerra permanente. E não há religiões algumas que possam afirmar-se inocentes nesta matéria. Recordemos que noutros tempos, de igual infeliz memória, também a Igreja de Roma agiu de forma brutal contra quem pensava de outro modo. Também, mais recentemente no friso temporal, as notícias sobre Salazar eram sempre dadas no pretérito perfeito, à luz de uma certa religiosidade absurda: “No dia 2 de Outubro, sua Ex.ª, o Presidente do Conselho, ESTEVE na zona onde nasceu. Visitou a prima e a antiga empregada da casa...” (Este é um dos motivos por que lhe chamavam o “Esteves”). É que assim, com jornalistas domesticados a rigor, evitavam-se males maiores, como atentados, slogans despropositados ou manifestações espontâneas de desagravo a sua Ex.ª. Agir sem medo mas com a inteligência necessária para não cair no extremo oposto será, provavelmente, a uma única atitude possível.
Os que escrevem ou desenham em jornais sabem como é penoso, e contra a nossa natureza, teclar apenas o que os editores pretendem, de acordo com orientações governamentais ou determinados princípios religiosos ou morais. Quando, há uns bons anos, comecei a escrever na “Folha de Montemor” ou aqui, nesta coluna, ninguém me perguntou a cor da minha religião nem os temas que iriam ser alvos das minhas análises-mais-ou-menos-populares. Para entender a democracia e a liberdade não preciso de ser Charlie, nem de defender os ideais de um deus ou de um líder político. E é por isso que, ainda hoje, continuo a escrever. Porque não sou Charlie. Tenho ideias próprias e não gosto, não quero, não preciso que me mandem ser seja quem ou o que for.
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Então, como é? Quinze dias depois daquelas mortes injustas, bárbaras e inesquecíveis, continuam a ser todos Charlie? Ou já estão mais calminhos? É que os caricaturistas continuam a trabalhar e os islamistas estão atentos. Estes e outros radicais... que podem surgir de onde menos se espera. Mas nós, os ocidentais, só estaremos atentos (caso sobrevivamos) depois de uma bomba cair na nossa sala de estar, ao lado da chaise longue, a partir da qual enviamos mensagens e comentários incendiários para as redes sociais, sem, muitas vezes, ousar pôr o pé na rua. Mas esse gesto, caros leitores, também pode ser uma forma, não menos violenta, de terrorismo. Mas nunca deixem de escrever e de desenhar! Façam-no sempre! Mas assumam que tudo o que se escreve e desenha, para além de poder alertar para os problemas do nosso tempo, é capaz também de conduzir a consequências graves, resultado de gestos criminosos impossíveis de controlar.

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Já repararam, decerto, que o autor destas pobres linhas continua firme e irredutível a utilizar a grafia correcta da língua portuguesa. E porquê? Porque o dito acordo ortográfico é uma perfeita estupidez inventada por um bando de terroristas idiotas. Grupo ao qual jamais pertencerei. Nem com uma kalashnikov apontada. Je ne suis pas idiot!

In "O Montemorense", Janeiro de 2015

Distraídos crónicos...


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