segunda-feira, 11 de novembro de 2024

Dois lamentos sem importância

 

                                                               

    



O despertar do Monstro

 

            Ficou adormecido durante mais de quatro décadas o maior dos monstros que tinha transformado o nosso país numa quinta, gerida durante 48 anos por um capataz de fala mansa e com mão de ferro. Eram as trevas o seu meio ambiente preferido, onde espalhava o seu hálito putrefacto e bafiento da ameaça, nos cantos mais recônditos de um Portugal cinzento e amedrontado, habitado por gente que tinha sempre por sobre a cabeça a perspectiva da prisão, da tortura, da perseguição, da censura, do exílio, das reuniões clandestinas, das separações, do degredo.

O Monstro, vivo e violento durante quase meio século, não foi destruído naquela madrugada desse dia “inicial inteiro e limpo”. Foi, afinal, posto a dormir com um golpe na nuca, não de uma arma, mas de um cravo, que se julgou, poeticamente, ser a solução mais eficaz.  Com o susto provocado pelos militares e pelo povo nas ruas, o Monstro não morreu, como se pensava, regressando antes às profundezas do abismo onde tinha sido gerado. E aí ficou, em hibernação, adormecido, aguardando pacientemente a chegada das condições ideais para, novamente, começar a espalhar a semente do Mal.

            A intolerância religiosa, racista e xenófoba, as invasões militares, os ataques, os insultos em plena campanha eleitoral, nos Estados Unidos, em Portugal e noutros países ditos civilizados, as infantilidades na nossa Assembleia da República, as chantagens políticas, as perseguições, as mortes, a impassividade dos ditos homens bons, o demérito da esquerda, são a face visível desse Monstro, cujos tentáculos abraçam  violentamente o planeta.

Governos de extrema-direita começam a surgir na Europa que nem cogumelos, novos hitlers espreitam e sorriem aos descontentes, aos que se esqueceram do sofrimento dos pais e dos avós, perseguidos e muitos deles mortos pela força e pelos métodos invasivos dos maquinistas do Estado Novo, que não deixavam ninguém pôr o pé em ramo verde. Tornadas definitivas a democracia e a liberdade, estes seres ressabiados, defendidos e privilegiados pelo regime adormecido, esconderam-se nos novos partidos políticos, usados como máscaras durante anos, até hoje.  E por lá ficaram, gritando vivas à liberdade, contaminando discretamente ministérios e secretarias de estado, câmaras municipais e juntas de freguesia, deixando descendência, física e ideológica, que, anos mais tarde, começaria a manifestar-se de forma estranhamente descontraída e nunca até então vista.

            Espaço livre, foi o que foi.

Começou a haver, primeiro, timidamente, depois a céu aberto, espaço livre, onde o Monstro se instalou comodamente, agradecendo aos defensores da democracia e da liberdade a sua ausência de estratégias para manter o país a navegar, louvando a sua falta de empenho em condenar os corruptos e os ladrões de colarinho branco, o seu receio de devolver a autoridade às forças de segurança, a sua inépcia em legislar de forma séria e adequada sobre questões sensíveis como a imigração, a eutanásia, a mudança de sexo, a carreira docente, a saúde, a segurança, a idade da reforma…  Cada falha de governação permitiu aos partidos de extrema-direita (e de extrema-esquerda) darem um passo em frente em direcção aos degraus que os poderão conduzir ao poder.

Este Monstro vai começar, mais dia menos dia, a ser tratado como uma necessidade a bem da Nação. Esse Monstro já começou a babar-se, sedento de sangue e de morte. Esse Monstro tem um nome: chama-se Fascismo e pode, em breve, começar a fazer as primeiras vítimas: tu e eu. Depois, como escreveu Brecht, será tarde demais.

               

 

“O que faço aqui? Quem me abandonou?”[1]

 

Parecem os versos do “E depois do adeus”, aquela canção que o Paulo de Carvalho levou ao Festival da Canção de 1974 e que serviria como uma das senhas para os militares de Abril. Pois parece. Mas não é.

Estas perguntas, entre outras, são as que passam pelas cabecinhas das duas senhoras que foram nomeadas ministras, sem saberem muito bem nem como nem porquê, e que agora têm sempre um batalhão de jornalistas, malandrecos e mal-intencionados, a fazer perguntas maçadoras, com outras a serem-lhes sopradas ao ouvido, sobre o estado da nação no que compete aos respectivos ministérios: o da Administração Interna e o da Saúde. É curiosa a forma como reagem às perguntas que lhes fazem sobre as crises, as contradições, as confusões que reinam nos seus pequenos condados: não respondem ao que é perguntado, aparentam não fazer a mínima ideia do que se está a falar e estão sempre, ambas, a hiperventilar e ansiosas que as deixem em paz. Outros ministros, de outros Governos, com outro tipo de atitude e com provas positivas dadas em actos governamentais, por muito menos pediram a demissão. Mas estas senhoras não o fazem nem que as obriguem… Não sei porquê, não sei para quê, só sei que estão a prolongar uma agonia que nos faz sentir, todos os dias, vergonha alheia. E, pior do que isso, os problemas não se vão resolver tão depressa. É caso para dizer, nem as ministras saem, nem a gente almoça…  E a fomeca começa a apertar.

O primeiro-ministro, sempre assertivo e fofinho, ainda não percebeu que os tiros nos pés, disparados com rigor e mestria pelas duas brilhantes senhoras em questão, podem, mais dia menos dia, fazer ricochete no Chega e atingi-lo em cheio na tola.

            Depois, como escreveu Brecht, será tarde demais.

João Luís Brejo Nabo

In "O Montemorense", Novembro de 2024


[1] Texto escrito a 11 de Novembro

Distraídos crónicos...


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