segunda-feira, 17 de maio de 2021

Moralidades

                                                     

                                                            Foto: Ricardo Feijão

 “Cada coisa a seu tempo tem seu tempo”, refere num belíssimo poema Pessoa vestido de Ricardo Reis. Nós, longe da genial capacidade reflexiva do poeta, nunca pensamos nisso. Talvez por não termos tempo para parar e pensar. Queremos chegar ao fim da jornada o mais depressa possível, esquecendo-nos, bastas vezes, de viver cada momento com a intensidade com que, e com quem, deve ou merece ser vivido. Os milhares de filósofos de fim-de-semana que povoam o Facebook e outras redes sociais do género publicam diariamente “pensamentos” em modo de conselho para quem anda distraído com a vida. Eles são os primeiros a viver nessa distracção, porque em vez de publicarem essas “moralidades” deviam era estar a vivê-las.

 O pessoal pensa que estamos a ficar livres do vírus só porque a vacinação vai avançando a um ritmo aceitável. Claro que não é bem assim. Os adeptos do Sporting esqueceram-se completamente de que estamos a viver ainda uma grave pandemia e juntaram-se em festa, a comemorar o título, como se não houvesse amanhã. Agora está um país inteiro à espera para ver se os infectados com o vírus, se os houver, começam a dar sinal nos gráficos da DGS. Espero sinceramente que não. Se achei aquela loucura verde normal? Claro que sim. Normal… mas insensata. Seria assim a mesma loucura se fosse encarnada ou azul. A razão não chega para explicar o que a psicologia nos mostra em três penadas. Como não podia deixar de ser, os líderes desses clubes já fizeram as suas críticas e traçaram as suas moralidades, escondendo, digo eu, que os seus sócios e adeptos fariam exactamente o mesmo se ganhassem o campeonato, quer houvesse ou não Covid-19. Mas o futebol em muito se assemelha à política e isso também não é novidade para ninguém. “Se fosse comigo, tudo seria diferente”, dizem. E nós sabemos que não é assim. E eles também.

Quanto à actuação das autoridades…? Bom, elas ainda não acabaram de discutir de quem foi a culpa para as medidas de contenção não terem funcionado. Mas eu digo o que todos já sabem: a culpa foi da falta de visão de quem manda. Ou então da falta de força para mandar. Não se façam agora de virgens ofendidas, se faz favor.

 Quem nunca, no calor de uma acesa discussão, no auge de um ataque de fúria incontrolável, depois de ter martelado um dedo ou dado uma topada no pé de um móvel, disse uma palavra daquelas mais pesadas que tanto nos envergonham como nos libertam? O soltar de um palavrão, em tempos considerado quase um acto criminoso (e junto de senhoras era motivo de condenação eterna), é hoje tão normal como beber um copo de água. Jovens, eles e elas, e adultos, eles e elas, não se coíbem que utilizar o que há de mais vernáculo na nossa língua para manifestar sentimentos, estados de alma, alívio ou preocupação. Todas as situações são as ideais para soltar o que, há muito, só em circunstâncias muito restritas, nos atrevíamos a soltar.

Nas escolas, os professores fazem ouvidos moucos à linguagem dos alunos e das alunas (mandá-los refrear o palavreado seria considerado censura, não é?), na televisão, um meio ainda com uma fortíssima influência em todos nós, em programas transmitidos em horário nobre, o palavrão é cada vez mais uma constante e é utilizado quase como uma coroa de glória.

Não estou a armar-me em moralista. Estou a constatar um facto que já me começou a preocupar, sobretudo se são figuras públicas a protagonizar esses momentos de pouca elevação linguística. Se eu digo palavões? Claro que digo. Com precisão, classe e extraordinário sentido de oportunidade. Nem sempre sou compreendido, porém.

 Ainda um pouco a medo. Ainda com passos curtos. Curtos mas certos. Os artistas e as associações culturais estão agora a reiniciar a sua vida. Começam a ser anunciados concertos e outros tipos de espectáculos. A longa travessia do deserto parece estar com um fim à vista. Os técnicos de palco, os artistas, os seus agentes e patrocinadores preparam-se agora para o grande desafio que é trabalhar em segurança e fazer com que os espectadores regressem às salas. A retoma parece-me possível. A arte pode ser feita em segurança. Em Montemor, por exemplo, já começamos a “ver mexer” quem há muito estava parado. Que perdure este tempo de esperança.

             Às vezes, somos um povo muito engraçado. Falo de Montemor e de nós, os montemorenses. Estão em curso as obras de remodelação do Largo de São João de Deus, também conhecido como Largo da Matriz. Pelo que nos foi dado a ver, o espaço vai ficar diferente. Acredito que com mais vantagens para a circulação de carros e peões. Também sei que irei ter dificuldade em habituar-me ao novo visual daquele micro-espaço tão icónico da minha cidade. Mas não terei outra alternativa. Pois circulava nas redes sociais (outra vez as redes sociais) a ideia de que o Largo já não iria receber a icónica estátua do padroeiro da cidade, São João Deus, nascido a poucos metros daquele local. Tal ideia, posta a circular por aí, é um verdadeiro insulto à equipa que esteve envolvida no projecto e um insulto ainda maior à autarquia. Nem por um momento duvidei da insensatez e do veneno que destilava tal desinformação. Por isso é que eu acho que, às vezes, somos um povo muito engraçado. Nós, os montemorenses.

 

João Luís Nabo          

               In "O Montemorense", Maio de 2021 

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Distraídos crónicos...


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