As vizinhas
Todos temos memórias longínquas. E as mais doces poderão
ser, são quase sempre, as da infância. Tempos em que os bairros da vila se
pareciam muito com condomínios fechados, onde todos viviam as suas vidas, mas
sem deixarem de viver, no sentido mais positivo da palavra e da atitude, as
vidas dos vizinhos. Uma comunidade formada por gente diferente, mas igual.
Nós, os putos de então, éramos livres. Quase completamente
livres. Prendiam-nos apenas os livros da carrinha da Gulbenkian, todos os
meses, religiosamente, no Largo do Mercado; atava-nos o ar puro e de Sol
ardente dos dias que passávamos no Rio Almansor, no Pego do Poço, da Pintada ou
do Zangalhos, à pesca, a nadar, a conversar conversas de miúdos, descontraídas
e sem filtros, sem rendas de casa para pagar, sem impostos a serem liquidados em
prestações, sem empréstimos dos bancos, sem a obrigação de pôr o pão na mesa
todos os dias. Amarrava-nos de forma voluntária e consciente a escola onde
fizemos os nossos primeiros amigos sem serem os amigos do Bairro. Onde a voz e
o olhar da Dona Bia Mareco nos abria outros mundos de novidade.
Mas o Bairro era também um mundo. Um universo que nos
protegia, que nos educava, que nos acompanhava no crescimento dos corpos e das
mentes. Se é necessária uma aldeia inteira para educar uma criança, como reza o
conhecido provérbio africano, então foi preciso um bairro inteiro, o Bairro de
São Pedro, para nos educar, a mim, ao Toninho, ao Carlitos, ao João Paixão, ao Janita, ao
Zé Bibe, ao Marco, ao Nuno, ao Janeca… e às meninas que connosco brincavam… como se fossem meninos
como nós.
E como agentes dessa educação primavam, sobretudo, as
mulheres. As que, passando a maior parte do tempo a cuidar da casa, da horta,
do jardim, dos animais e dos filhos, educavam os delas e os dos outros, nós, os
membros desta misteriosa tribo que, só muitos anos mais tarde, veio a
revelar-se, a par da nossa família, um núcleo educativo fundamental para as
nossas vidas. As mulheres, as vizinhas, portanto, davam-nos a liberdade da
brincadeira, gritavam quando nos portávamos como uns parvos, riam-se das nossas
piadas inocentes, serviam-nos lanches copiosos, de sandes de fiambre e queijo,
sumos gelados, bebidos naqueles verões intermináveis, nas cozinhas
transformadas em salas de banquete real. As vizinhas, sobretudo as de outrora,
mulheres que passam despercebidas à maioria, foram também, a par dos nossos
pais, lei e norma, naquele Bairro icónico, que roubou o nome à ermida à
beira-rio e que nos vem à memória todos os dias, com os aromas das manhãs.
Ainda hoje, quando as encontro, 50 anos depois, as trato por vizinhas. Foi um
título, não académico nem profissional, que lhes ficou. É um nome que abarca em
si toda a nossa infância. E que lhes fica bem.
No Bairro de São Pedro havia dois tipos de vizinhas: as
que achavam sempre graça às intermináveis brincadeiras dos miúdos e as que, de
vez em quando, não achavam graça nenhuma. Mas todas povoam os nossos pensamentos. Recordo com saudade a Prima Maria
Gertrudes, a Prima Toneca, a vizinha Chica, a vizinha Maria Rosa, a vizinha Conceição,
a vizinha Alexandrina, a vizinha Vitalina, a vizinha Estrela, a vizinha Toda, a
vizinha Custodinha, a vizinha Agostinha, a vizinha Maria Custódia, a vizinha Deolinda,
a vizinha Deonilde, a vizinha Elisa, a vizinha Margarida, a vizinha Amália, a
vizinha Umbelina, a vizinha Vitalina, a vizinha Maria da Glória, a Zaia, a
vizinha Dina, a vizinha Joana, a vizinha Guida, a vizinha Ermelinda, a vizinha Cremelinda, a vizinha
Cecília, a vizinha Isabel, a vizinha Carminda, a vizinha Fortunata e a minha Mãe, a que todos tratavam por vizinha Rosa. Outras, porventura, vieram depois destas, mas não tiveram o peso ou a
influência que as primeiras tiveram nas nossas vidas.
Obrigado a todas!
O ódio e os odiosos
Para falar de violência, e da violência que tem vindo a
assolar o nosso pacato país, devíamos usar palavras duras, cortantes, pesadas
como uma pedra, perfurantes como uma bala, esmagadoras como as palavras de ódio
que se gritam por aí. Mas nós não somos adeptos da violência.
Grupos neonazis começam a assumir-se de vez como
representantes de uma facção da sociedade que, embora a crescer em número de
adeptos, se afasta completamente dos princípios da democracia, dos direitos
fundamentais, da tolerância e prática óbvia e natural da aceitação da
diferença.
Não julguemos os cidadãos de outras latitudes e cores que
vieram para o nosso país à procura de uma vida melhor. (Nós também temos o
mesmo impulso quando sentimos que o nosso país já nada tem para nos oferecer.) Não
condenemos os que, de outras línguas e religiões, querem ficar connosco de
forma definitiva. (Milhares de famílias portuguesas de segunda e terceira gerações
vivem espalhadas pelo globo sem deverem nada a ninguém). Não sacrifiquemos os
que pretendem, de forma legítima e legal, fazer de Portugal a sua nova pátria.
Os outros, os que atacam, os que insultam, os que maltratam, os que não toleram
os outros devido à cor da pele, ao Deus a quem rezam ou à língua que falam, os
que desprezam, os que vilipendiam, os que destilam ódio na via pública e nas
redes sociais, esses é que deviam levar o tratamento legal que merecem. E todos
sabemos qual é: julgados, condenados e isolados de uma sociedade onde não se
enquadram pelo radicalismo dos seus actos e pelo perigo que são, sem sombra de
dúvida ou e sem “alegadamente”, para a sociedade.
Um Martini servido
fora de horas
O Martini das Onze e Meia foi servido às 4 da tarde, no passado dia 7 de Junho. Presentes estiveram muitos
amigos, alguns deles com centenas de quilómetros a separar as suas casas da Biblioteca
Municipal, o santuário onde gosto de reunir toda a gente e onde toda a gente
gosta de reunir-se. Estivemos, portanto, todos juntos nesta tarde, com as
diferenças esbatidas e as semelhanças celebradas. Foram longos minutos de paz,
de risos e de lágrimas. Juntos.
É bom publicar livros. É muito melhor juntar os amigos. E
é absolutamente indiscritível quando podemos conjugar os dois mundos: o da
literatura e o da amizade e dos afectos.
A equipa que me acompanha nestas aventuras já tem aqui sido referida
mais do que uma vez. Assim como as Edições Colibri, que fazem questão de me
levar a concretizar estes devaneios sem nada pedir em troca. Obrigado a todos!