Intervenção
de PEDRO COELHO (vídeo) na apresentação oficial do livro
O
Martini das Onze e Meia
07/06/2025
Há autores que publicam todos os anos porque a pressão do mercado lhes
impõe essa regularidade. Poucos são os que escrevem livremente, publicando
livremente, apenas pressionados pelo prazer da escrita.
Para o João Luís, escrever é degustar. E degustar é muito mais do que
gostar. É saborear um prazer prolongado, como o devotado ao Martini das 11 e
meia. O prazer de, como ele próprio reclama, “cair voluntariamente nas
armadilhas” das palavras, “sofrer com cada adjetivo, saborear cada advérbio,
multiplicar cada verbo por mil, porque o verbo é o motor do texto”.
Como apareço muitas vezes nestes acontecimentos literários correria o
risco de me repetir, não fora o destinatário destas homenagens um multifacetado
homem de letras que nos dá, ano após ano, alimento que baste para saciar o
nosso apetite e apimentar o nosso paladar.
Obrigado, João Luís, por fazeres questão de publicitar - e regar - a
nossa velha amizade de quase meio século. Tirando a minha mãe, que resiste, e a
minha tia que, sem querer, se fechou noutro universo, tu és, dos muito, muito
próximos, a minha relação mais duradoura.
Sempre que me chamas para ocupar espaço nos lançamentos dos teus livros –
e até agora só não estive no palco de um deles – tenho optado por centrar o tom
dos meus comentários em ti, naquilo que és, no que construíste, no que
representas para a comunidade, na tua família, que também, em parte, me
pertence... Desta vez, decidi assumir o risco da inovação. Também porque a
extraordinária matéria das croniquetas me dá pretexto para isso.
É o Vítor Guita que, no prefácio, usa a palavra “desassombro” para
destacar a coragem de revelares os teus ideais e os teus valores. No mundo
polarizado em que vivemos, distribuíres críticas tão duras a figuras políticas
que, para muitos dos teus leitores, são ídolos, revela esse desassombro.
Quantos, por muito, muito menos, são cancelados. O feito é ainda de maior monta
porque te diriges a uma comunidade pequena - onde todos nos conhecemos -
calcando feridas abertas pelo ódio, pela insensatez, pela estupidez, pela
preguiça, pelo conformismo, pela idolatria (desculpa-me tantos adjetivos, sei
que sofres com os adjetivos; aqui são necessários por serem muitas as faces do
mal) .... Prossigo... toda essa carga negativa de adjetivos onde calcas revela o
tal desassombro e a extraordinária coragem. Porque, se sofres com as palavras,
sabes – melhor do que todos nós – o que elas significam. Admito que os
apertados cérebros de alguns dos leitores das croniquetas – refiro-me, desde
logo, aos cultores do ódio - já te tenham cancelado, mas, como não têm a
coragem que tu tens, e porque tu estás muito acima do ódio, dar-te-ão, às
claras, cínicas palmadinhas no ombro. Nas
profundezas das suas almas maculadas, certamente te odiarão.
Porque, quando escreves sobre política, esse cada vez mais exíguo lugar
de acantonamentos e trincheiras, tu disparas, com tiros certeiros, em todas as
direções. Assaltas o coração de todas as trincheiras.
Vou citar-te, recuando às eleições legislativas de 2024:
Sobre Pedro Nuno Santos primeiro e sobre Luís Montenegro depois – os tais
dois a que chamas “as duas figuras do presépio que empatam e atrasam à espera
do dia de Reis para voltarem para dentro da caixa de sapatos”. Primeiro vou
ler-vos o que escreves sobre estes dois, depois o que escreves sobre aquele a
que chamas o “infantil” Ventura que, em 2024, conquistou, como escreves, mais
de um “milhão de adeptos”.
Seguem, então, os teus tiros certeiros:
“Como
pode um partido, que perdeu a credibilidade perante os seus eleitores e perante
os portugueses em geral, depois da sua queda vergonhosa por motivos ainda mais
vergonhosos, apresentar um candidato que foi ministro, e ministro demitido por
decisões mal explicadas?”
“O PNS perdeu por uma nesga, mas perdeu. Ganhou o parente (não muito)
afastado de Ventura que conseguiu pôr o país em suspenso com o seu “Não é
não!”. Veremos se vai manter o que disse ou se, com o apoio do terceiro maior
partido, vai contribuir para mudanças profundas na gestão do país e dos
portugueses, algumas delas regressadas de outros tempos, em que o queridíssimo
líder, com palavras mansas e cristãs, sussurradas aos ouvidos dos descontentes
e guardadas e feitas cumprir por uma competente guarda pretoriana, punha e
dispunha do tempo, da mente e da vontade dos liderados”.
Fim de citação.
Socialistas, social-democratas e cheganos recebem, pois, dose igual. E já
nem falo do que nas croniquetas se lê sobre, cito, o “sistema de amiguismo” de
António Costa ou sobre Marcelo Rebelo de Sousa que, como escreves, “cada vez
que fala há um tsunami que nos atinge a todos”.
Poderiam os teus
oito leitores dizer: ‘Bem, escapa-se o PCP... Ele deve ser do PCP’. Esqueçam,
porque, nas croniquetas, o João Luís esclarece: “Sempre abominei ditaduras
venham elas dos partidos e regimes admirados pelo Chega, surjam elas dos
partidos e regimes idolatrados pelo PCP”.
Não acredito que pensem que és do Bloco de Esquerda porque, pelos vistos,
já quase ninguém é do Bloco de Esquerda.
Eu, que sou teu amigo há quase 50 anos, nunca me preocupei com o partido
onde votas, porque o teu partido, provam-no também as tuas croniquetas, é o
partido do humanismo, da solidariedade com os mais fracos, da doutrina social
da Igreja, mesmo que não andes, como revelaste ao papa Francisco na conversa
que tiveram no Alkimia, a bater com a mão no peito e a correr de oração em
oração.
Aliás, muitos dos que fazem questão de apregoar juras eternas a Deus e à
Igreja do papa Francisco, esses que se julgam portugueses de bem, são, apenas,
infelizes filhos da Pátria, porque – como bem escreves – “Portugal não merece
os filhos que tem. Nem a Pátria é ditosa. Nem ditosos são os filhos que ela
pariu”.
Sobressai,
nestas croniquetas, a tua memória. A que moldaste durante os teus 14 anos de
antigo regime, o que ouviste contar à tua mãe e ao teu sábio pai que, no dia
mais longo das nossas Primaveras, ainda te deixou escapar: “vamos ter calma,
porque isto ainda pode voltar atrás”.
Comungo desse teu receio. E com o teu receio, em forma de alerta,
instalo-me na intolerância das trincheiras e despeço-me com esta tua frase:
“Esse Monstro já começou a babar-se, sedento de sangue e de
morte. Esse Monstro tem um nome: chama-se Fascismo e pode, em breve, começar a
fazer as primeiras vítimas: tu e eu. Depois, como escreveu Brecht, será tarde
demais... primeiro levaram os negros, mas não me importei com isso. Eu não era
negro”...
De facto, meu amigo, os negros do poema somos todos os que
recusamos entrincheirar-nos no ódio.
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