No dia 25 de Abril de 1974, na ingenuidade dos meus treze anos, logo que os tanques desceram a nossa avenida Gago Coutinho, vindos de Estremoz, em direcção a Lisboa para dar apoio ao Capitão Salgueiro Maia (ninguém fazia a menor ideia quem era), entendi que algo ia mudar. A professora de Matemática mandou-nos para casa nessa quinta-feira, ficando o teste escrito adiado sine die. Tão ou mais badalado do que o feriado foi o facto de a professora Jesuína nos ter dito: “Vão-se embora, meninos. Hoje não há mais aulas.” Teste de Matemática adiado? Então a coisa era mesmo séria.
E era.
Nessa tarde de folga, em conversa lá em casa, fiquei com a certeza de que os meus pais sabiam mais de política do que eu jamais tinha imaginado. E explicaram-me o que estava a acontecer. O governo de Marcello Caetano tinha sido derrubado, Américo Tomás, ou o corta-fitas como eu os ouvia chamar-lhe de vez em quando, também não tinha condições para continuar no cargo e o povo andava na rua, livremente, sem nada nem ninguém que o segurasse.
Tinha chegado a Liberdade.
As facturas que temos vindo, aos poucos, a pagar por ela, com essas ninguém fez conta, tal era o entusiasmo e a fartura de meio século de ditadura e do consequente silêncio, dos maus tratos e da censura, das prisões e das torturas, das mortes e dos exílios e da miséria em que vivia a maioria do povo deste país. Impressionado pelas narrativas de muitos presos políticos, quer na televisão, quer em livros e jornais, fiquei com um fascínio, sem aparente justificação, pelo Forte de Peniche que eu vira pela primeira vez, a preto e branco, na televisão, quando libertaram os presos, um ou dois dias depois da revolução. É de tal ordem esta atracção, que todos os anos faço uma peregrinação até à velha fortaleza. Já lhe conheço os cantos, mas ainda não cansei o olhar nem a vontade de me passear por entre aquelas paredes onde muitos morreram para que eu hoje pudesse escrever estas linhas. Estas e outras. E levo comigo os meus filhos e conto-lhes as histórias que sei sobre aquele local. Algumas delas que o João do Machado me contou, serenamente, quase sem mágoa, com a pureza dos verdadeiros resistentes, como se falasse de algo acontecido há muitos séculos, sem se aperceber que também, a ele, lhe devemos a liberdade. Fazem-me perguntas, os gaiatos. E eu respondo-lhes. Mas não escondo que nessa revolução de Abril também houve, como em todas as revoluções, pessoas boas e pessoas menos boas, portugueses puros e portugueses com menos pureza de intenções. E falo-lhes dos exageros, das injustiças, das zangas entre pessoas da mesma família, do corte de relações entre amigos. Por causa da política, dos partidos, da revolução. Em nome de um país que renascia das cinzas, sem rumo certo ainda. (“Não sei por onde vou, / não sei para onde vou, / sei que não vou por aí!”).
Está mais do que provado: se acontecem revoluções é porque o próprio estado das coisas exige mudança. Uma revolução é, mal comparada, como um assassinato – o eliminar de um passado que se quer definitivamente afastado: para tal tem de haver oportunidade, motivo, arma e executante. E havia tudo isto. Mas nem todas as situações foram acauteladas. Porque não se sabe, porque não se tem experiência de fazer revoluções, ou porque se confia demasiado nos revolucionários. Sobretudo, porque uma revolução não se agarra depois de solta.
Trinta e quatro anos depois, já sem palavras de ordem escritas nas paredes, sem as sedes de alguns partidos incendiadas, sem ataques bombistas legitimados pela palavra revolução, com o pó já a repousar nas estradas deste país, com os ânimos menos exaltados e algumas pazes já feitas entre moradores da mesma rua, e analisados os factos, mesmo por alto, sabemos (sentimos) que o saldo foi positivo. Hoje sabemos que a liberdade tem um preço e, embora haja feridas por sarar, longe vão os dias de medo e insegurança vividos no Alentejo e em Montemor, mesmo depois da madrugada revolucionária que entrou nas nossas vidas, impregnada de um romantismo que, aos poucos, se desfez.
A terminar este apontamento, recordo-me do ano em que Salazar morreu: 1970. O dia fui confirmá-lo há pouco: 27 de Julho. Consequência da histórica queda de uma cadeira, tombo que arrastaria consigo, aos poucos, o regime já meio apodrecido e em lenta implosão. Pois nesse dia, assim que o meu pai chegou a casa para almoçar, a minha mãe foi logo ter com ele e disse-lhe em voz baixa, parecendo aparentar um certo alívio: “Acabou de dar na Emissora. O homem já morreu.”. “Quem?”, perguntei eu do alto dos meus nove anos. Já não sei precisar a exactidão da resposta que a minha mãe me deu, mas lembro-me que se virou para mim e, com uns olhos que não admitiam desobediências, sentenciou mais ou menos assim: “Não se fala deste assunto com ninguém”.
Só anos mais tarde vim a perceber o porquê da preocupação estampada naquele olhar.
E era.
Nessa tarde de folga, em conversa lá em casa, fiquei com a certeza de que os meus pais sabiam mais de política do que eu jamais tinha imaginado. E explicaram-me o que estava a acontecer. O governo de Marcello Caetano tinha sido derrubado, Américo Tomás, ou o corta-fitas como eu os ouvia chamar-lhe de vez em quando, também não tinha condições para continuar no cargo e o povo andava na rua, livremente, sem nada nem ninguém que o segurasse.
Tinha chegado a Liberdade.
As facturas que temos vindo, aos poucos, a pagar por ela, com essas ninguém fez conta, tal era o entusiasmo e a fartura de meio século de ditadura e do consequente silêncio, dos maus tratos e da censura, das prisões e das torturas, das mortes e dos exílios e da miséria em que vivia a maioria do povo deste país. Impressionado pelas narrativas de muitos presos políticos, quer na televisão, quer em livros e jornais, fiquei com um fascínio, sem aparente justificação, pelo Forte de Peniche que eu vira pela primeira vez, a preto e branco, na televisão, quando libertaram os presos, um ou dois dias depois da revolução. É de tal ordem esta atracção, que todos os anos faço uma peregrinação até à velha fortaleza. Já lhe conheço os cantos, mas ainda não cansei o olhar nem a vontade de me passear por entre aquelas paredes onde muitos morreram para que eu hoje pudesse escrever estas linhas. Estas e outras. E levo comigo os meus filhos e conto-lhes as histórias que sei sobre aquele local. Algumas delas que o João do Machado me contou, serenamente, quase sem mágoa, com a pureza dos verdadeiros resistentes, como se falasse de algo acontecido há muitos séculos, sem se aperceber que também, a ele, lhe devemos a liberdade. Fazem-me perguntas, os gaiatos. E eu respondo-lhes. Mas não escondo que nessa revolução de Abril também houve, como em todas as revoluções, pessoas boas e pessoas menos boas, portugueses puros e portugueses com menos pureza de intenções. E falo-lhes dos exageros, das injustiças, das zangas entre pessoas da mesma família, do corte de relações entre amigos. Por causa da política, dos partidos, da revolução. Em nome de um país que renascia das cinzas, sem rumo certo ainda. (“Não sei por onde vou, / não sei para onde vou, / sei que não vou por aí!”).
Está mais do que provado: se acontecem revoluções é porque o próprio estado das coisas exige mudança. Uma revolução é, mal comparada, como um assassinato – o eliminar de um passado que se quer definitivamente afastado: para tal tem de haver oportunidade, motivo, arma e executante. E havia tudo isto. Mas nem todas as situações foram acauteladas. Porque não se sabe, porque não se tem experiência de fazer revoluções, ou porque se confia demasiado nos revolucionários. Sobretudo, porque uma revolução não se agarra depois de solta.
Trinta e quatro anos depois, já sem palavras de ordem escritas nas paredes, sem as sedes de alguns partidos incendiadas, sem ataques bombistas legitimados pela palavra revolução, com o pó já a repousar nas estradas deste país, com os ânimos menos exaltados e algumas pazes já feitas entre moradores da mesma rua, e analisados os factos, mesmo por alto, sabemos (sentimos) que o saldo foi positivo. Hoje sabemos que a liberdade tem um preço e, embora haja feridas por sarar, longe vão os dias de medo e insegurança vividos no Alentejo e em Montemor, mesmo depois da madrugada revolucionária que entrou nas nossas vidas, impregnada de um romantismo que, aos poucos, se desfez.
A terminar este apontamento, recordo-me do ano em que Salazar morreu: 1970. O dia fui confirmá-lo há pouco: 27 de Julho. Consequência da histórica queda de uma cadeira, tombo que arrastaria consigo, aos poucos, o regime já meio apodrecido e em lenta implosão. Pois nesse dia, assim que o meu pai chegou a casa para almoçar, a minha mãe foi logo ter com ele e disse-lhe em voz baixa, parecendo aparentar um certo alívio: “Acabou de dar na Emissora. O homem já morreu.”. “Quem?”, perguntei eu do alto dos meus nove anos. Já não sei precisar a exactidão da resposta que a minha mãe me deu, mas lembro-me que se virou para mim e, com uns olhos que não admitiam desobediências, sentenciou mais ou menos assim: “Não se fala deste assunto com ninguém”.
Só anos mais tarde vim a perceber o porquê da preocupação estampada naquele olhar.
9 comentários:
Que belo texto, companheiro!
Amigo!
a emoção,na leitura desta sua narrativa, não me deixa escrever mais, a não ser o puder deixar-lhe aqui o meu imenso abraço solidário!
belíssimo texto!
vovó Maria
Abraço os dois e deixo um cravo para cada um.
teste
Fui a Grândola no 25 de Abril para tentar perceber coisas... Fiquei triste.
Com excepção da banda da SMFOG - com bons artistas - tudo o resto morto, muito morto.
Comi uma açorda assim-assim. Cheguei a casa e tive que ir fazer outra, para ficar sastfêto.
Cravos só na entrada do hotel Dom Jorge de Lencastre e na lapela da malta da SMFOG. Catitas ambos.
Se houvesse outro 25, e estamos precisados de um, onde é que se ia guardar o Sócrates? O Quartel do Carmo agora é um museu... E já não há chaimites...
Eu andava a correr, contentíssimo, para cima e para baixo, a comprar sandes nas tabernas da rotunda junto à estação do comboio, para os soldados que estavam deitados na berma da estrada à saída para Coruche, de G3 apontadas para fora, para os gaiatos curiosos - e para os maus se passassem -, estafetas de "sandes-do-que-houver". Por sorte os maus não andavam por ali, porque se aparecessem, estávamos nós entre eles e a soldadesca boca cheia de pão... Uma curtição que ainda continua. Camuflagem.
http://kalikera.blogspot.com/2008/04/tambm-sou-nspera.html
Memórias que parecem saídas de um livro qualquer sobre uma Revolução cheia de ideais e com crianças quase livres, a portarem-se bem uma vez na vida. Belo texto, Kalikas.
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