Reconquistemos Abril
Os cravos parecem começar a murchar. Os que os regavam
diariamente vão desaparecendo aos poucos. Ou porque partem para outra dimensão,
obrigados a isso pela lei da vida e da morte, ou porque tais flores, símbolo
dos novos tempos que vieram depois das trevas, não atraem os que nunca viveram o tempo da ditadura, das
prisões, das torturas, do terror e da morte.
Não é necessário escrever muito mais. Partidos que
nasceram num espectro que de democrático
nada têm começam, de forma absolutamente descarada, a conquistar um espaço que
deveria continuar a ser preenchido por gente boa, com sentido democrático,
defensores e praticantes activos da justiça e da tolerância, e criadores de um
mundo onde não se instale o medo e a desconfiança permanentes.
A Revolução de Abril trouxe-nos algumas incertezas, mas
acabou com a guerra colonial e com os presos políticos, para além de,
definitivamente, nos permitir falar, escrever e pensar sem medo. É neste
patamar que pretendemos permanecer até ao fim.
Foi disto que falámos com os meus alunos Catarina Neves e
Santiago Batista e o Professor Vítor Guita, nas gravações para o programa
infanto-juvenil Radar XS, da RTP. Para que a memória permaneça e o passado
nunca regresse.
Para reforçar essa
ideia, fica aqui este excerto de uma obra de ficção, embora baseada em factos
reais, um modesto contributo para que a História nunca seja falsificada e para
inspirar todos, sobretudo os jovens, para que a luta permaneça, de modo a que
Portugal seja sempre um país liberto de todas as amarras e sem ameaças vindas
de um passado que tem rosto e que não queremos de regresso: “Sem perder
tempo, o outro pide deu-me um pontapé no estômago que me fez dobrar em dois e
cair. Fiquei deitado, de costas para o Simplício que me aplicou dois pontapés
no peito. Senti os ossos a quebrarem. Comecei a deitar sangue pela boca (…) Não
o vou maçar com esta narrativa sobre as horas
que passámos os dois, na mesma cela, juntos, dois homens feitos, um a
transformar-se aos poucos num farrapo, após dezenas
de horas sem dormir (Sertório
foi substituído a meio da
noite) e outro a usar o seu poder para
dar liberdade às suas fantasias mais sórdidas. Fui ‘ferrado’ várias vezes ao longo da noite, por vezes esmurrado e,
até, sovado com um cavalo marinho.”[1]
Almansor
Reconquistado
Há dois anos, a 30 de Maio, encerrou o Almansor que
conhecíamos. O Café que recebeu o nome do Rio e que, depois, deu nome ao Largo,
e que albergou, durante décadas, dezenas de histórias de bons e maus tempos,
dependendo da perspectiva de quem os viveu. Dias de poder e dias de
indiferença. Dias de equilíbrio e de reajustes, que a Revolução, a partir daquele
dia “inicial e limpo”, veio repor.
Fui cliente do histórico Café desde a minha tenra
adolescência. Ali começámos a beber chá de limão e meias de leite, de início,
para depois passarmos, descontraída,
ousada e corajosamente, a erguer à frente do nariz uma imperial gelada
ou um licor, cuja marca não me paga para fazer publicidade, enquanto se puxavam
as primeiras baforadas de um cigarro, fumado ali, longe da vista dos pais. Foi
ali que criei amizades, reforcei relações, me aborreci com amigos e com eles
fiz as pazes, sempre à volta dos petiscos extraordinários que saiam daquela
cozinha mágica. Fui lá, nesse dia 30 de Maio, despedir--me. Deixei ficar dois
exemplares do meu romance “Sertório”, história em que o José Maria e o Evaristo
têm uma breve participação, logo no segundo capítulo.
No início de Abril, regressei ao velho Almansor, agora
renovado. Aos icónicos proprietários, a gerir o espaço durante décadas, sucedeu
a Joana Pires e a sua jovem equipa, que, numa cozinha aberta e “laboratorial”,
começam já a deixar a sua marca em todos os nossos sentidos. O espaço mudou de
cor, mas não mudou de aroma. Da cozinha continuam a nascer os vapores da comida
caseira, que degustamos lentamente e a matar saudades. Da Joana escorrem em
catadupas a sua simpatia e a vontade permanente, com resultados visíveis, de
que todos se sintam em casa.
A ementa é simples, sem que o cliente/amigo perca muito
tempo com indecisões. E depois sabemos que o que pedimos está imbuído de
qualidade e, ao mesmo tempo, de um pouco de exotismo. Comemos um “Bacalhau à
Avó Guida”, porque as avós deixam sempre aos netos coisas boas, com sabor a
infância, como se prolongassem através da sua comida o mimo que lhes dão e que
fica a pairar-nos no pensamento como uma carícia permanente. Foi essa sensação
de conforto que nos invadiu a alma e nos fez prolongar o serão um pouco mais. Aquele
prato de Bacalhau remeteu-nos à nossa infância, quando a família da Joana e a
nossa, ainda unidas por elementos comuns, nos ensinaram que o simples e o
genuíno são a base única e fundamental para criarmos o belo, o singular, unindo
passado e presente através de uma ponte fortalecida com a genuinidade, a
amizade e o apoio incondicional da família.
Encontrámos todos estes ingredientes naquele “Bacalhau à
Avó Guida”, no serviço impecável de cozinha, na nova decoração do espaço, na
face resplandecente de felicidade da Joana e no prazer desta visita ao velho
Almansor… reconquistado.
[1] In Sertório, uma história de Vila Nova, Edições Colibri, 2021.
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