quarta-feira, 9 de abril de 2025

Reconquistas

 




Reconquistemos Abril

 

Os cravos parecem começar a murchar. Os que os regavam diariamente vão desaparecendo aos poucos. Ou porque partem para outra dimensão, obrigados a isso pela lei da vida e da morte, ou porque tais flores, símbolo dos novos tempos que vieram depois das trevas, não atraem os que  nunca viveram o tempo da ditadura, das prisões, das torturas, do terror e da morte.

Não é necessário escrever muito mais. Partidos que nasceram num espectro que de  democrático nada têm começam, de forma absolutamente descarada, a conquistar um espaço que deveria continuar a ser preenchido por gente boa, com sentido democrático, defensores e praticantes activos da justiça e da tolerância, e criadores de um mundo onde não se instale o medo e a desconfiança permanentes.

A Revolução de Abril trouxe-nos algumas incertezas, mas acabou com a guerra colonial e com os presos políticos, para além de, definitivamente, nos permitir falar, escrever e pensar sem medo. É neste patamar que pretendemos permanecer até ao fim.

Foi disto que falámos com os meus alunos Catarina Neves e Santiago Batista e o Professor Vítor Guita, nas gravações para o programa infanto-juvenil Radar XS, da RTP. Para que a memória permaneça e o passado nunca regresse.

 

Para reforçar essa ideia, fica aqui este excerto de uma obra de ficção, embora baseada em factos reais, um modesto contributo para que a História nunca seja falsificada e para inspirar todos, sobretudo os jovens, para que a luta permaneça, de modo a que Portugal seja sempre um país liberto de todas as amarras e sem ameaças vindas de um passado que tem rosto e que não queremos de regresso: “Sem perder tempo, o outro pide deu-me um pontapé no estômago que me fez dobrar em dois e cair. Fiquei deitado, de costas para o Simplício que me aplicou dois pontapés no peito. Senti os ossos a quebrarem. Comecei a deitar sangue pela boca (…) Não o vou maçar com esta narrativa sobre as horas que passámos os dois, na mesma cela, juntos, dois homens feitos, um a transformar-se aos poucos num farrapo, após dezenas de horas sem dormir (Sertório foi substituído a meio da noite) e outro a usar o seu poder para dar liberdade às suas fantasias mais sórdidas. Fui ‘ferrado’ várias vezes ao longo da noite, por vezes esmurrado e, até, sovado com um cavalo marinho.”[1]

           

Almansor Reconquistado

 

Há dois anos, a 30 de Maio, encerrou o Almansor que conhecíamos. O Café que recebeu o nome do Rio e que, depois, deu nome ao Largo, e que albergou, durante décadas, dezenas de histórias de bons e maus tempos, dependendo da perspectiva de quem os viveu. Dias de poder e dias de indiferença. Dias de equilíbrio e de reajustes, que a Revolução, a partir daquele dia “inicial e limpo”, veio repor.

Fui cliente do histórico Café desde a minha tenra adolescência. Ali começámos a beber chá de limão e meias de leite, de início, para depois passarmos, descontraída,  ousada e corajosamente, a erguer à frente do nariz uma imperial gelada ou um licor, cuja marca não me paga para fazer publicidade, enquanto se puxavam as primeiras baforadas de um cigarro, fumado ali, longe da vista dos pais. Foi ali que criei amizades, reforcei relações, me aborreci com amigos e com eles fiz as pazes, sempre à volta dos petiscos extraordinários que saiam daquela cozinha mágica. Fui lá, nesse dia 30 de Maio, despedir--me. Deixei ficar dois exemplares do meu romance “Sertório”, história em que o José Maria e o Evaristo têm uma breve participação, logo no segundo capítulo.

 

No início de Abril, regressei ao velho Almansor, agora renovado. Aos icónicos proprietários, a gerir o espaço durante décadas, sucedeu a Joana Pires e a sua jovem equipa, que, numa cozinha aberta e “laboratorial”, começam já a deixar a sua marca em todos os nossos sentidos. O espaço mudou de cor, mas não mudou de aroma. Da cozinha continuam a nascer os vapores da comida caseira, que degustamos lentamente e a matar saudades. Da Joana escorrem em catadupas a sua simpatia e a vontade permanente, com resultados visíveis, de que todos se sintam em casa.

A ementa é simples, sem que o cliente/amigo perca muito tempo com indecisões. E depois sabemos que o que pedimos está imbuído de qualidade e, ao mesmo tempo, de um pouco de exotismo. Comemos um “Bacalhau à Avó Guida”, porque as avós deixam sempre aos netos coisas boas, com sabor a infância, como se prolongassem através da sua comida o mimo que lhes dão e que fica a pairar-nos no pensamento como uma carícia permanente. Foi essa sensação de conforto que nos invadiu a alma e nos fez prolongar o serão um pouco mais. Aquele prato de Bacalhau remeteu-nos à nossa infância, quando a família da Joana e a nossa, ainda unidas por elementos comuns, nos ensinaram que o simples e o genuíno são a base única e fundamental para criarmos o belo, o singular, unindo passado e presente através de uma ponte fortalecida com a genuinidade, a amizade e o apoio incondicional da família.

Encontrámos todos estes ingredientes naquele “Bacalhau à Avó Guida”, no serviço impecável de cozinha, na nova decoração do espaço, na face resplandecente de felicidade da Joana e no prazer desta visita ao velho Almansor… reconquistado.


João Luís Nabo

In "O Montemorense", Abril de 2025

[1] In Sertório, uma história de Vila Nova, Edições Colibri, 2021.

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Distraídos crónicos...


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