segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

Ler não mata*: Último Acto em Lisboa



Ler romances onde a acção se passa em locais conhecidos do leitor é, sem dúvida, fascinante. Nós lá andamos com as personagens, com o narrador, a subir e a descer as ruas, a frequentar os cafés e as esplanadas, a visitar este ou aquele espaço que o escritor achou por bem incluir como cenário da sua estória. Há escritores portugueses que assim fazem, o que é perfeitamente natural, o que nos leva a saborear o texto de uma forma mais… prática.
E se o leitor fizesse estas “viagens” dando cumprimento a um capricho de um escritor… britânico? Pois Robert Wilson escreveu um romance policial cuja acção se desenrola em diferentes épocas, em Berlim, em Lisboa e nas nossas Beiras. Apanhado no meio de uma arquitectura novelesca excepcional, o leitor é surpreendido a cada página não só com o desenrolar da acção, própria dos romances policiais, mas também com o rigor histórico e geográfico em que os acontecimentos se vão sucedendo página a página.
O Último Acto em Lisboa recria de forma admirável todo o envolvimento de Portugal salazarista na Segunda Guerra Mundial, com os fornecimentos de volfrâmio a Adolf Hitler, levando o leitor numa longa viagem pelos sentimentos dos protagonistas que, comprometidos politicamente com os diversos sistemas e regimes, acabam por sacrificar paixões e vontades, atitudes que conduzem a consequências imprevisíveis num Portugal do limiar do século XXI.
Alemanha e Portugal, Hitler e Oliveira Salazar, a II Guerra, o 25 de Abril, a Gestapo e a PIDE, os presos políticos, os métodos de tortura, os judeus e os comunistas, um general assassinado perto de Badajoz, todos desfilam a seu tempo mas perfeitamente encaixados na narrativa, neste magnífico trabalho de Robert Wilson, vencedor do prémio para o melhor romance policial de 1999.
A formidável reviravolta final, que deixa o leitor completamente rendido ao talento deste escritor, nascido em 1957 e que escreve os seus romances numa quinta isolada no nosso país, essa experiência vai você vivê-la. Entretanto, e enquanto não se decide pela obra integral, aqui fica um pequeno excerto:

“… As fachadas amarelas e o arco triunfal do Terreiro do Paço afastaram-nos do rio para o quadriculado da Baixa, entre as colinas do Castelo de S. Jorge e o Bairro Alto. A temperatura ia nos 30.º. Gordas e feias esculturas de bronze mandriavam na praça. O Morgan do advogado cortou pela Rua da Alfândega e virou à esquerda para a Rua da Madalena, que subia a pique antes de descer para a nova versão do Largo de Martim Moniz, com os seus quiosques de aço e vidro e as suas fontes em graça. Contornámos a praça, acelerámos pela ladeira da Rua de S. Lázaro, passámos o Hospital de S. José e entrámos no largo dominado pela fachada de pilares do Instituto de Medicina Legal. Deixámos o carro perto da estátua do Doutor Sousa Martins, em cujo plinto se amontoavam ex-votos de pedra, membros de cera e velas. O Dr. Oliveira já tinha arrumado o carro e descia a colina para o Instituto de Medicina Legal. Carlos tirou o casaco, revelando uma longa tira escura de camisa suada.(…)"


Wilson, Robert – Último Acto em Lisboa, Gradiva, 2000, 2.ª edição;
tradução de Maria Douglas


*Excepto se esse livro fizer parte do espólio da biblioteca de uma velha abadia, cenário de um dos mais famosos romances da segunda metade do séc. XX. Não posso deixar aqui o nome. Não seria justo para quem ainda não leu.

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Distraídos crónicos...


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