terça-feira, 5 de outubro de 2010

A Troca

"(...) Foi só depois do nascer daquele dia terrível, ao sair para a rua a dar início a mais uma jornada de trabalho, que Baltazar Mendes olhou em direcção ao castelo e não viu o que costumava ver. Primeiro, não reparou na sua ausência, tal era a força com que a sua presença lhe estava entranhada. Mas depois, ao segundo olhar, percebeu que havia ali coisa que não era habitual.

Pois é esta a verdade que aqui lhes trago: Vila Nova acordou em grande sobressalto naquela manhã. Ninguém dera por nada. Não se ouvira qualquer estrondo nem barulho de motores ou de vozes. Nem o ar a deslocar-se, nem explosões, nem nada. Nada que fizesse despertar o bom povo do sono justo que o agarrou ao leito naquela noite, aparentemente santa. Aliás, como veio a dizer mais tarde Baltazar Mendes, já no Largo dos Paços do Concelho, tinha sido uma noite demasiado calma. Pois foi ele que deu o alarme.

Enquanto fechava a porta de casa, na Rua de Avis, para se dirigir para a loja de ferragens, onde trabalhava havia perto de trinta e cinco anos, olhou sem pensar, como sempre olhava, para aquele horizonte estreito entalado entre os prédios da sua rua e, lá mais à frente, pelas casas antigas da Rua das Pedras Negras. E, quando olhou, estranhou o que viu. Ou melhor, estranhou o que não viu. Primeiro não percebeu.

Depois semicerrou os olhos, não se tivesse entreposto alguma névoa entre a ponta do seu nariz e o fundo do céu. Foi aí que percebeu. Soltou um grito de aflição e impotência: a Torre do Relógio, que coroava a Rua do Quebra-Costas, esta a desaguar a custo na avenida principal do castelo, a torre que figurava no brasão de Vila Nova e nos emblemas da maioria das associações da vila, a Torre do Relógio de Vila Nova tinha desaparecido com as quinze toneladas de pedra que, durante séculos, lhe deram forma. Desaparecido?, perguntarão. Desaparecido, responderei. É que não há outro verbo no particípio passado que melhor descreva a sua ausência ou que satisfaça a maldade inata do perguntador mais perverso.(...)"

Excerto de "A Troca", in Outros Contos de Vila Nova (Editorial Tágide, Lisboa, 2010)



6 comentários:

Anónimo disse...

aonde há à venda este livro? Estou interessada nele.
Foi um alivio...Não conseguia ver o nosso castelo sem a Torre do Relógio.
Foi por uma boa causa...
Parabéns e muito êxito

Cloreto de Sódio disse...

Venda no dia do lançamento (30/10, 16 h, na Biblioteca Almeida Faria)
Obrigado pela mensagem e um abraço.

Anónimo disse...

... e esperar pelo resto, com água na boca :)...
beijocasssss
vovómaria

Alfredo disse...

Parabéns ao autor! JLN é daquelas pessoas que admiro por ser multifacetado e arranjar um tempinho para tudo, desde o trabalho com os seus alunos, o coral, a escrita na folha, o seu blog e agora como corolário, um livro de contos! Será que JLN só dorme 4 horas por noite como o Marcelo Rebelo de Sousa?
Também o admiro, por, e apesar de ser uma pessoa muito popular e estimada no concelho, nunca ter cedido à tentação de fazer uma perninha na politica, seja no partido A ou B ou C, e ainda bem!
Que seja o primeiro de muitos, e parabéns pela excelente campanha de marketing, a fazer lembrar a célebre "Guerra dos Mundos"!

Cloreto de Sódio disse...

Obrigado, Alfredo. De facto este é o terceiro livro de contos que a Editorial Tágide edita deste autor. Portanto, já sei que no dia do lançamento vai querer adquirir os outros dois também! Obrigado pelas suas palavras, sempre tão animadoras. Hoje, por diversos motivos, é mesmo um dia em que elas vieram a propósito.Um forte abraço e até ao dia do lançamento.

Antónia Ruivo disse...

Tinha que ser alentejano, e tinha que ser de Montemor, o autor de tal golpe publicitário, que o livro tenha o impacto merecido, e consiga manter acesa a chama, que o desaparecimento da torre despertou nos seus leitores, são os meus desejos,Parabéns.

Distraídos crónicos...


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