quinta-feira, 11 de dezembro de 2025

Quatro prendas de Natal

 

                                                                               

                                                                           


1

 

Os discursos de ódio, com visíveis arroubos xenófobos, racistas e divisionistas, patentes em cartazes espalhados por este país, a fervilharem nas redes sociais de forma despudorada e imparável, a serem gritados nas televisões, a toda a hora e a todo o momento, sem que jornalistas e moderadores consigam pôr mão nos comportamentos inimagináveis de muitos ressabiados desta vida, servem apenas para confundir e dividir. Até os mais sensatos acabam, neste tsunami de acusações, por dar razão aos extremistas, aos que insultam, aos que pedem o aniquilar de seres humanos como eles, esquecendo, muitas vezes, as suas origens e o seu papel na sociedade, que devia primar pelo exemplo e não pela cobardia escondida nos berros que já ninguém consegue ouvir ou entender.

Quando ouço muitos dos imigrantes, eles próprios, estabelecidos entre nós há mais tempo, a dispararem em todas as direcções contra outros imigrantes que tentam, tal como eles, encontrar uma vida estável e segura no nosso país, sinto que há gente que não pensa, não discorre, não equaciona. Sinto que a mentalidade e o modus vivendi dos portugueses não estão a ser afectados pelos que cá chegam carregados de esperança. São muitos portugueses que, levados pelos discursos inflamados, e tantas vezes infundados, dos extremistas, acabam por querer levar o país numa direcção que não se coaduna com o bom senso, com o sentido democrático que deveria reger a sociedade e com a matriz cristã em que a maioria foi educada.

 

 

2

 

            O escorrer destas linhas está a acontecer ao ritmo da greve geral marcada, e efectivada, no dia 11 de Dezembro. Depois das palavras do primeiro-ministro de Portugal, condenando a greve e os seus motivos, num tom paternalista a fazer lembrar o deliciosamente conservador e fascista Diácono Remédios de Herman José, aquilo que se poderia esperar seria uma mobilização ainda maior e mais forte de todos os que, se for aprovado o novo código do trabalho, sentem os seus direitos e a suas garantias atiradas para os períodos mais obscuros do regime de um tristemente célebre António, que alguns querem, à viva força, fazer renascer das cinzas. O homem não é nenhuma fénix. Deixem-no estar como está.  

            E os membros do Governo que se lembrarem de vir dizer no fim do dia que a adesão à greve foi meramente residual estarão, decerto, a viver noutro país. Diz-se que há gente pouco aberta ao mundo e à realidade que a rodeia, que só consegue ver aquilo que quer. Ou aquilo que lhe convém. Montenegro e a sua bela equipa pertencem a este triste clube.

 

3

 

            Trump brinca com o estado anímico das nações, dos seus dirigentes e dos seus povos. Todos os dias, diz, desdiz, contradiz, num permanente desdém pelos direitos humanos, pela segurança, pela economia e pela estrutura interna de muitos países, sem se dignar a respeitar, nem os americanos, nem os jornalistas ou os imigrantes que pedem ajuda ao país autoproclamado mais poderoso do mundo. O presidente americano poderá ter algumas qualidades (ainda não lhe vislumbrei nenhuma de relevo) mas é a sua metade sombria que governa o país e os que dele dependem para alcançar a paz, agora em destaque, na Europa e no Médio Oriente. E é esta sua faceta, a mais doentia, a mais esquizofrénica, sociopata e quase psicótica que, apesar de fascinante para um escritor de literatura gótica, será facilmente analisável por especialistas, de modo a que esteja para breve a declaração de um impeachment que o leve à reforma definitiva, para ver se o mundo, cada vez mais global e globalizante, consegue encontrar o seu rumo.   

            (Se o jornal para o qual escrevo fosse americano, este seria por certo, o meu canto do cisne.)

 

 

4

 

Esta época do Natal tornou-se, há uns tempos a esta parte, um período de memórias e de desejo de voltar a um passado feliz.

Era na cozinha da minha mãe que tudo se passava, dias antes da consoada. O peru no forno, o lombo assado, as batatas com couve e bacalhau, a exposição dos brinquedos para os mais pequenos (para mim, também, na altura), a escolha da toalha para a mesa da Noite Santa e o pinheiro de Natal que o meu Pai trazia, já muito em cima da hora, de terra longínquas por onde andava a labutar. E o presépio, claro, montado com rigor no estrado da mesa da cozinha, com o verde do pinheiro mesmo ao lado para que, em conjunto, simbolizassem o nascer e o renascer de tudo o que era natural, e se transformassem no espírito que unia a família por causa de um miúdo nascido havia perto de 2000 anos. 

Na nossa casa, situada numa fileira de três no Bairro de São Pedro, o pequeno Menino Jesus, um refugiado inocente, tal como os seus santos pais, comprado, tal como as outras figuras, na loja do senhor Julinho e da Dona Carlota, só iria para a manjedoura no dia 24, às zero horas. Era uma regra de ouro, cumprida religiosamente sempre do mesmo modo e tendo por celebrante solene outro menino, que hoje preferia não ter crescido para ter sempre junto a si a cor da árvore verde com a sua neve em algodão, o aroma dos cozinhados espalhados pela casa e a pele morena e macia da sua Mãe.  


João Luís Nabo

In "O Montemorense", Dezembro de 2025

terça-feira, 11 de novembro de 2025

Quatro Curtas

 


1

 

No passado dia 2 de Novembro, tomaram posse os eleitos nestas autárquicas que vão gerir o concelho de Montemor-o-Novo: executivo camarário, presidentes de junta, membros das assembleias municipal e de juntas de freguesia. Um desfile de gente com a mesma intenção e vontade de concretizar projectos. Não me perguntem qual é o meu partido. Sou, naturalmente, por Montemor e por todos, velhos amigos, jovens amigos, colegas, ex-alunos e ex-alunas, que vão abraçar com garra a nossa terra e fazer cumprir os sonhos que (n)os movem. Estamos juntos.

É muito maior e mais importante o que nos aproxima do que aquilo que nos separa. Bom mandato a todos!

 

 

2

 

A proliferação de candidatos à Presidência da República divide cada mais profundamente a sociedade portuguesa, quer em termos de apoios partidários, quer em termos de tendências e tomadas de decisão de cada cidadão isoladamente. Extrema-esquerda, esquerda, centro, direita e extrema-direita estão a fazer deste país não um lugar de debate em nome do progresso civilizacional e, sobretudo, de soluções para o bem-estar dos menos privilegiados, mas um espaço onde apenas vencem as ideias imbuídas de radicalismo, de ódio, de perseguição física e ideológica a grupos minoritários, cavalgando de forma insistente infindáveis ondas de populismo e demagogia.

A confusão está instalada e ninguém consegue retirar grandes conclusões ou aproveitar minimamente as ideias contraditórias que nos entram diariamente pela casa adentro. Uma coisa é certa: os tempos mudaram. Perseguem-se imigrantes, atacam-se minorias étnicas, cativam-se cidadãos com o que eles gostam de ouvir e propagam-se ideias de um radicalismo assustador com o tranquilo beneplácito do Governo e da Assembleia da República, que deixou chegar a Casa da Democracia a um baixo nível de educação e comportamental, nunca alcançado, nem nos dias de maiores convulsões pós-25. Tudo parece normal, e este normal começa cada vez mais a fazer jurisprudência noutros sectores e nos mais diversos espaços da nossa sociedade.

Houve sistemas totalitários que começaram com muito menos. Alguns até foram homologados com o voto do povo.

 

 

3

 

Os telemóveis não são nossos inimigos. Digo isto constantemente a alunos meus, reforçando a ideia e a absoluta necessidade de sermos nós, humanos racionais, a controlar a máquina, maravilhosa e irracional, e não se lhe dar margem para ser ela a controlar os nossos movimentos, pensamentos e desejos. Para isso, é importante uma educação séria dirigida, sobretudo, aos jovens, para que possam, na verdade, e sempre que a situação o exija, usar esta ferramenta, cada vez mais útil nos dias que correm, sempre que dela precisem e sem necessidade de proibições ou de recorrerem à clandestinidade para consultar os googles desta vida e as tão apetecíveis, como famigeradas, redes sociais.

Essa proibição, já em vigor em muitos estabelecimentos de ensino do nosso país, advém de um único facto: ainda não surgiu a melhor forma de educar os jovens no que se refere à sua utilização, o que significa que, quando o Estado se torna incapaz de criar condições para o uso dos telemóveis em determinados contextos, faz aquilo que lhe resta fazer, por não ter capacidade para mais e melhor: proibir a sua utilização. Como se a proibição resolvesse o problema de fundo.

Cá para nós, que ninguém nos ouve, também os adultos deveriam ser educados nesse convívio doentio. Também eles, quando estão em grupo, num café, numa sala de espera ou noutro local qualquer, se escondem atrás de um ecrã, ignorando tudo e todos os que estão à sua volta. E os seus filhos e netos (ou os seus alunos) acabam por ver ali um exemplo a seguir.

 

4

 

Quando assumimos o nosso final de carreira, há uma nostalgia que começa a pairar: quando preparamos as aulas, quando estamos com as turmas, em tudo o que nos liga a uma profissão que já vai (demasiado) longa. Começamos a sentir que não voltaremos a ensinar as matérias habituais e que a sala de aula vai deixar de existir para nós como espaço de troca de saberes e sempre tão útil para as conversas mais extraordinárias com os adolescentes que connosco coabitam a mesma sala, a mesma escola, durante meses, por vezes durante anos. E vai terminar para sempre o respirar o ambiente tão característico de uma escola, da nossa escola, cheia de gente em constante movimento.

Mas é assim que vai ser. O que vier a seguir, seja o que for, acabará por mitigar aos poucos esta saudade (já tão antecipada) e iremos sempre ver nos cidadãos com quem nos cruzaremos, na cidade e na vida, um pouco de nós, daquilo de que somos feitos, e do tempo útil em que vivemos juntos os melhores momentos das nossas vidas.

  João Luís Nabo

In "O Montemorense", Novembro de 2025

segunda-feira, 13 de outubro de 2025

Rescaldos

 

                         


                     

      O regresso a Gaza


            Finalmente, os palestinianos puderam regressar a casa. Resta saber quem deles tem ainda casa, depois de dois anos de destruição maciça e de verdadeiro genocídio por parte do Governo e das tropas de Israel. Não entendo, nunca entendi, de facto, o que leva um povo, ameaçado, há pouco mais de oito décadas, de extermínio nos terríficos campos de concentração do regime nazi de Adolfo Hitler, a atacar sem hesitação um povo governado pelo Hamas, mas que não pode ser considerado responsável pelos actos de guerra dos seus governantes contra os israelitas e, por isso, alvo do ódio de Netanyahu.  

            Trump meteu-se naquele diálogo de surdos e, com o seu estilo peculiar, que eu, particularmente, pouco aprecio, declarou o fim da guerra israelo-palestiniana. O Governo de Israel, até há dias a manter uma posição inamovível, aceitou, de um dia para o outro, este acordo de paz, que poderia ter sido apresentado e assinado há muito mais tempo.

Poderemos dizer que há, decerto, interesses por parte da administração americana nesta intermediação. No entanto, essa questão, comparada com a miséria, a fome, a doença e o horror dos últimos dois anos (se quisermos, por momentos, ignorar todos os anos anteriores) é de somenos importância.

            Quando vemos na televisão um país completamente em ruínas, ficamos cientes de que, só daqui a vários anos, poderá o estado palestiniano renascer das cinzas, deixando para trás este passado de duras realidades, mas que nunca lhe irá sair da memória: os bombardeamentos, as crianças mortas, a fome, o desespero. E estas feridas ficarão para sempre.

E a paz, agora garantida, poderá ser apenas uma breve brisa de Outono.

 

 

Autárquicas em Montemor: regresso ao passado?

 

Olímpio Galvão despediu-se da presidência da câmara municipal, depois de quatro anos de mandato. Será ainda prematuro fazer uma avaliação objectiva e distante das tomadas de posição do seu executivo, mas o que fez fê-lo em prol dos montemorenses e do concelho, tendo eu a certeza de que grande parte das suas decisões foram em nome da democracia, do progresso, da transparência e da proximidade com os seus munícipes.

Após três mandatos cumpridos como presidente da câmara de Évora, Carlos Pinto de Sá regressou a Montemor, onde tinha exercido o mesmo cargo entre 1994 e 2012. Os factores que podem, para já, explicar este volte-face na opção de voto dos munícipes do concelho de Montemor, podem ser de vária ordem, sem que ainda seja possível apurar a verdadeira essência que reside nesta diferença de 419 votos que separam o candidato vencedor do candidato vencido. Há duas ideias que circulam por aí, nada originais e que, por isso mesmo, em nada nos esclarecem, por serem baseadas no óbvio: que, por um lado, Olímpio Galvão poderia ter feito mais pelo concelho e que, por outro, muitos teriam saudades das políticas levadas a cabo por Pinto de Sá, em tempos idos. Duas questões discutíveis, tal como muitas outras que se poderão levantar.

Não nos esqueçamos, porém, de que os tempos são outros agora. As infraestruturas de que o concelho necessitava há trinta anos já não serão as mesmas, as pessoas alteraram as suas rotinas, as famílias passaram a ter necessidades diferentes, há gente nova no concelho, a cidade passou a precisar de um olhar diferente a todos os níveis e há uma novidade absoluta que nos esmaga a todos: há uma pressão nas redes sociais que obriga cada autarca a estar milimetricamente atento ao que é necessário e ao que é supérfluo.

Em termos de governação, e de acordo com os resultados apurados, e com o Chega fora da corrida, a maioria CDU, com três elementos, terá de saber trabalhar com quatro autarcas da Oposição mas que, em conjunto com a Maioria, poderão continuar a fazer valer as suas ideias para o concelho. É fundamental a diplomacia, a lisura, a honestidade intelectual para aceitar o que é positivo, venha de onde vier a ideia. Seria assim o executivo ideal.

  "O povo é sábio e soberano" foi a frase que me enviou, recentemente, uma amiga. Sabemos que o povo nem sempre é sábio e que nem sempre é soberano. Basta olhar para trás, para a História recente de alguns países não muito distantes do nosso. Mas queremos acreditar que, neste caso concreto, não haverá motivos para duvidar de tal aforismo.  Montemor em primeiro lugar. Depois, as minudências do costume.

Daqui, destas humildes colunas, um abraço ao Presidente Carlos Pinto de Sá, com votos de um excelente mandato.

  

Por falar em minudências…


… são incalculáveis, nas redes sociais, as intervenções pós-eleições, quer da parte dos que perderam, quer da parte dos que ganharam. Como montemorense, e ainda que crítico em relação a algumas tomadas de decisão dos políticos da terra, não entendo como pessoas da mesma cidade, do mesmo concelho e, até, vivendo na mesma rua ou no mesmo bairro, têm o à-vontade de ofender de forma absolutamente gratuita e indescritível os que perderam ou os que ganharam as eleições. Pergunto-me, com alguma preocupação, se havia, ou há, alguns interesses mais para além de prestar, abnegadamente, um serviço desinteressado ao povo do concelho. Sei que, enquanto exerceram o poder, tanto comunistas, como socialistas ou sociais democratas/centristas, todos procuraram entender melhor as necessidades das populações e dar-lhes aquilo que era possível dar. O resto são minudências mesquinhas que não abonam em favor de quem as produz.


João Luís Nabo

In "O Montemorense", Outubro de 2025

quinta-feira, 11 de setembro de 2025

Duas... para começar

 




Autárquicas, outra vez

 

            Já se apresentaram, com algum atraso na minha opinião, os cabeças de lista e respectivos acompanhantes, candidatos à Câmara Municipal e aos restantes órgãos autárquicos cá da santa terrinha. Todos os candidatos (PS, CDU, PSD/CDS, Chega) apresentaram novas caras e nomes frescos a acompanharem os bosses: Olímpio Galvão, Carlos Pinto de Sá e António Xavier apostaram em novas caras para a sua equipa, ou por indisponibilidade dos primeiros contactados, ou porque queriam mesmo mostrar um elenco diferente, ou quase, para gerir os destinos dos montemorenses. Frederico Tropa, candidato do Chega, é cara desconhecida e pouco ou nada há ainda a dizer sobre alguém que não se conhece e que não tem qualquer trabalho apresentado.

O povo é soberano e na sua decisão irá pesar o trabalho feito pelo executivo em funções, liderado pelo socialista Olímpio Galvão, o dinamismo e a presença permanente de António Xavier nas decisões políticas, como vereador da oposição pela coligação PSD/CDS e, não direi a forma como a CDU exerceu a oposição, mas sim a memória do excelente trabalho de Carlos Pinto de Sá, presidente do município entre 1994 e 2012.

O público-alvo de cada força partidária já não será exactamente o mesmo, e o esforço dos candidatos vai no sentido de entender a tendência de voto de cada grupo social/etário e contrariar quem quer votar em partidos situados nos extremos do espectro, sobretudo, por vingança, ao acaso ou só mesmo para contrariar as tendências do passado recente. A desilusão será porventura o maior pretexto apresentado por muitos para mudarem o sentido de voto para os antípodas da sua real fé ideológica. Se fizermos um pequeno exercício de memória, concluiremos que esse sentimento de desilusão tem estado presente na nossa vida democrática desde as nossas primeiras eleições, no dia 25 de Abril de 1975, para a Assembleia Constituinte.

  

As últimas vontades de um tipo

no seu juízo perfeito


Avaliei ponderadamente todas as possibilidades e conclui que vou morrer, tal como qualquer um dos meus leitores que se encontra neste momento desse lado do texto. Cá em casa são todos muito tanatofóbicos e, por isso, ficam mais do que contrariados quando se fala da morte. Mas há que desfazer este tabu milenar. Falemos, então, não da minha morte, que virá quando vier, mas do que deve ser feito imediatamente a seguir ao momento da sua chegada, momento natural e esperado. Assim, escrevi meia-dúzia de ideias que enviei para o email da minha filha e que ela fará cumprir quando for a altura certa. Aqui vão elas, em texto corrido, agora tornadas públicas à revelia da Família:

 Muitos já me perguntaram se quero um sacerdote católico no funeral. Claro que sim. Um agnóstico, ainda que agnóstico, é um ser religioso, tal como o eram os homens das cavernas, antes de Deus ter assumido o comando desta máquina chamada Universo, de acordo com o que se diz… Depois, se fui baptizado, se fiz a primeira comunhão, com o saudoso Padre Simões, se fui casado por ele, se os meus três filhos foram baptizados (um pelo Padre Simões, outros pelo igualmente saudoso Padre Alberto), se encontro na Igreja momentos, pessoas, amigos, compositores e poetas inspiradores e de boa memória, é absolutamente natural que um padre católico me acompanhe nos meus últimos momentos sobre esta Terra.

O velório vai ser numa igreja e vai ser simples: as pessoas aparecem, dão os sentimentos à família, estão ali um bocadinho a olhar para o falecido e, depois, vão até lá fora onde estará montada uma banca com doces e salgados, vinho, cerveja, gin, chá, café, águas, para que os amigos possam petiscar, conviver, recordar e reforçar laços... à borla e à minha pala. Entretanto, podem emocionar os doces tímpanos com a minha obra favorita de todos os tempos e que irá servir de fundo aos momentos derradeiros da minha passagem por esta Terra: o Requiem, escrito na sua maior parte por Mozart e terminado por dois ou três (não se tem a certeza) dos seus discípulos, devido à morte prematura do Mestre.

No altar-mor da igreja, mesmo por cima da urna, vão poder ver, num ecrã, imagens dos grandes momentos vividos pelo falecido, com a família, os amigos, os colegas e, claro, o seu Coral de São Domingos. Em relação a este grupo de cantores extraordinários, não vou pedir que cantem The Long Day Closes, do Arthur Sullivan, porque não lhes quero dar mais trabalho do que aquele que lhes dei durante 50 anos (sim, o meu passamento ocorrerá depois de 2037). Mas, ainda assim, se fizerem muita questão… Contudo, não vou poder aplaudir, como facilmente se pode concluir.

No dia do funeral, tudo decorrerá com a normalidade desejada. Estará o sacerdote, que presidirá à cerimónia, com direito ao uso da palavra por parte de quem quiser fazê-lo, com três minutos de tempo de antena para cada interveniente. Encomendado o corpo e entregue a alma, e sem certa comunicação social por perto, partirei acompanhado dos amigos e familiares que me amaram em vida e que ficam, de facto, cheios de pena que me tenha apagado.

Depois de cremado no Cemitério Novo da cidade (até lá, a obra do crematório estará, decerto, pronta), vamos até à Torre do Relógio, junto da qual os meus filhos e a minha viúva espalharão as minhas cinzas.  

É verdade! Uma última informação: já está escrita a lista de pessoas que não poderão assistir ao meu funeral. Claro que é um documento em permanente actualização,  porque até esse momento, muito (?) rio há-de correr debaixo da ponte.

 Não, caro leitor amigo, por questões óbvias, a lista não pode ser publicada aqui. Mas descanse: a minha filha Joana vai afixá-la na porta da igreja, no momento em que tiverem início os procedimentos fúnebres. Por isso, antes de entrar… consulte a lista. Se o seu nome não constar, então… é bem-vindo!

 

João Luís Brejo Nabo

In "O Montemorense", Setembro de 2025

quarta-feira, 20 de agosto de 2025

Vasos Comunicantes

  




Não sei por que motivo exacto acontece esta “perseguição”. Talvez pela minha paixão absoluta e inviolável pelo extraordinário romance Rebecca, de Daphne Du Maurier, publicado em 1938, levado ao grande écran por Alfred Hitchcock, em 1940, e por  Ben Wheatley, em  2020.

As heranças que os escritores vão, consciente ou inconscientemente, recebendo de autores que os antecederam, e que “fundaram” uma determinada escola, estilo ou “estrutura” literária, vão surgindo passadas algumas décadas (e por vezes, séculos) nas mais diversas manifestações artísticas. Vi recentemente Entre Tierras, uma boa série espanhola da Netflix, baseada numa outra de origem italiana e que entra num delicioso e subtil diálogo com o romance que me persegue desde sempre.

Li, a conselho do meu filho mais velho, também ele consciente dos meus gostos e tendências literárias, Verity, um romance da aclamada Colleen Hoover, e que, espanto dos espantos, também entra em diálogo com a obra imortal de Du Maurier. Também neste romance de suspense psicológico, estão, igualmente de forma extraordinária, o ambiente gótico, o terror, a angústia, o mistério, os conflitos com o passado e, claro, disfarçados mas visíveis, Rebecca, Maxim de Winter e a pérfida e misteriosa Mrs. Danvers. Isto para não referir que o título de ambas as obras é, precisamente, o nome da protagonista de cada uma delas.

Foi Roland Barthes que escreveu: “Le texte est un tissu de citations, issues des mille foyers de la culture“ (La Mort de l’Auteur). De facto, se o texto literário é um entretecer de inúmeros textos, produto de uma sobreposição de culturas, Daphne Du Maurier, Coleen Hoover, Alfred Hitchcock ou Ben Wheatley, tal como qualquer outro autor, não poderão fugir a este princípio.

É um prazer (“le plaisir du texte”, como também cunhou Barthes?) navegar nestes canais da ficção tão cheios de vasos comunicantes, com o Mal, o Horror e a Perversidade como denominador comum de todas as épocas. 

João Luís Nabo, 20/08/2025

segunda-feira, 7 de julho de 2025

Três tristes trechos

 

 

                                       

   

Os humores

A marcha militar “A Portuguesa”, composta por Alfredo Keil em 1890, sobre um poema de Henrique Lopes de Mendonça, como reacção ao Ultimato Britânico que, por sua vez, reagia contra o celebremente estudado nas escolas Mapa Cor-de-Rosa (ide investigar, porque aqui não há tempo nem espaço para isso), passou a ser o Hino Nacional, com a implementação da República, em 1910. Segundo consta, procederam-se às necessárias actualizações ao texto original, para depois receber a necessária aprovação da Assembleia Nacional Constituinte, que o consagrou como símbolo nacional a 11 de Junho de 1911.

Pronto. Isto é fundamental que se diga, que se leia e que se entenda.  

 

Se a Bandeira é a cara da nação, o Hino será o outro lado da moeda e não poderão ser entendidos separadamente, por motivo algum. Quando se canta o Hino, estamos a prestar a nossa lealdade ao país e a reverenciar a bandeira que o representa. Não é uma qualquer música pimba que nos apeteça cantar quando nos dá na gana nem como nos dá na gana… E o que aconteceu naquele momento pouco inspirado dos dois rapazes, mais do que os problemas técnicos a que foram alheios, foi estes terem transformado aquela obra tão importante numa música pimba, popularucha e desrespeitadora da obra original.

 

Recordo um acontecimento que poderá já estar esquecido, mas que, agora, vem a talhe de foice recordar: Vera Guita, natural de Montemor-o-Novo, professora, mãe, minha amiga de há muitos anos, com bonitas estradas percorridas em comum, dona de uma voz excepcional e a viver na Suécia, recebeu, em 2013, um convite da Embaixada de Portugal naquele país para cantar a solo "A Portuguesa" no estádio de Solna, no dia 19 de Novembro, antes do jogo Suécia-Portugal, na segunda mão do play-off para o Campeonato do Mundo de 2014. Aceitou, preparou-se e, já no estádio, não foi autorizada pela Federação Portuguesa de Futebol a cantar o Hino Português, porque não era hábito aquele símbolo nacional ser cantado a solo e a cappella. Uma questão mais do que falsa. Há uma versão harmonizada para coro a quatro vozes sem acompanhamento instrumental que obedece religiosamente à lógica melódica e harmónica do original e que foi, pelo menos uma vez, interpretada por um coro numa cerimónia oficial na Assembleia da República de Portugal. Outras cantoras o fizeram, noutros espaços e em ocasiões diversas, interpretando a melodia, mas não desvirtuando a sua essência.

 

O caso que encheu televisões, jornais e redes sociais, e que me fez escrever as considerações anteriores, já se sabe qual é e tem a ver com duas espécie de humores: uma interpretação muitíssimo discutível do Hino Nacional, protagonizada pelos Anjos, que deixou muitos de nós de mau humor, e a transformação desse sentimento de “despertença” num momento de bom humor, que foi o que a humorista Joana Marques fez, com a inteligência e a verve a que já nos habituou há muito tempo, sem ter de dizer abertamente: “Vocês não têm noção!” ou, de uma forma mais prosaica: “Atirem-se ao pego, mas é!”

Ainda se ela os incentivasse a tal, não acredito que os moços cumprissem à letra esta metafórica sugestão.

 

Os Roedores

 

            O inabalável “não é não”, tanta vez repetido por Montenegro, numa permanente e já histórica recusa a acordos com Ventura, deu, como se esperava, lugar a um “não é… talvez”. Segundo a comunicação social, o líder do Chega chegou a um entendimento com o primeiro-ministro “sobre nacionalidade, imigração e IRS”. Tal como Ventura estava à espera, o Governo (ainda em funções) vai precisar da sua mãozinha para avançar com outras propostas, e essa mãozinha, útil e amiga, nada dará sem pedir alguma coisa em troca. E é essa “negociata” que nos deixa preocupados, porque não sabemos (ou saberemos?) o que Ventura vai exigir para continuar a ser, o que parecia há poucos meses, a muleta mais improvável de um Governo ainda sem rumo bem definido.

Já não restam dúvidas: será o menino André a conduzir o historicamente fragilizado Luís Filipe e a levá-lo, juntamente com o seu séquito social-democrata, em direcção a um firme e inabalável “não é sim”.

 

                                              

Nos bastidores

 

Montemor continua a ser uma cidade e um concelho onde se faz cultura quase todos os dias. Por vezes, a oferta é tanta, que se agendam concertos, exposições, arruadas, lançamentos de livros, bailado, sessões de teatro de rua, de teatro de palco, de teatro de marionetas, de encontros com música ao vivo, não raras vezes para o mesmo dia e para a mesma hora. Sabemos que cada evento é específico e até pode ser dirigido a uma determinada franja de público, mas há públicos que se revêem em muitas das apresentações ou performances e que gostariam de assistir a uma boa parte delas. É, pois, importante uma preparação prévia das actividades a levar a efeito em cada temporada para não haver sobreposições, de modo a que o público montemorense e os que nos visitam possam desfrutar da variedade de ofertas ao seu dispor.  

Quando uma determinada associação agenda as suas actividades à distância de mais de meio ano, até porque tem de enviar ao Município o seu Plano de Actividades para o ano que vai entrar, não é possível saber com exactidão se, porventura, há já iniciativas programadas por outros grupos para aquele dia. Esta questão ficaria minimizada se houvesse uma reunião por volta do mês de Outubro (ou, mesmo, Novembro), para que os agentes culturais, reunidos nos bastidores, trocassem pontos de vista e, sobretudo, clarificassem as datas e os eventos que têm em carteira. Fica a ideia, que valerá o que quiserem que valha.

Para já, é só isto.

Boas férias. Que elas vos sejam leves.

 

             
            João Luís Nabo

In "O Montemorense", Julho de 2025

 
                                                         

 

sexta-feira, 13 de junho de 2025

A Trilogia do mês

 


As vizinhas

Todos temos memórias longínquas. E as mais doces poderão ser, são quase sempre, as da infância. Tempos em que os bairros da vila se pareciam muito com condomínios fechados, onde todos viviam as suas vidas, mas sem deixarem de viver, no sentido mais positivo da palavra e da atitude, as vidas dos vizinhos. Uma comunidade formada por gente diferente, mas igual.

Nós, os putos de então, éramos livres. Quase completamente livres. Prendiam-nos apenas os livros da carrinha da Gulbenkian, todos os meses, religiosamente, no Largo do Mercado; atava-nos o ar puro e de Sol ardente dos dias que passávamos no Rio Almansor, no Pego do Poço, da Pintada ou do Zangalhos, à pesca, a nadar, a conversar conversas de miúdos, descontraídas e sem filtros, sem rendas de casa para pagar, sem impostos a serem liquidados em prestações, sem empréstimos dos bancos, sem a obrigação de pôr o pão na mesa todos os dias. Amarrava-nos de forma voluntária e consciente a escola onde fizemos os nossos primeiros amigos sem serem os amigos do Bairro. Onde a voz e o olhar da Dona Bia Mareco nos abria outros mundos de novidade.

Mas o Bairro era também um mundo. Um universo que nos protegia, que nos educava, que nos acompanhava no crescimento dos corpos e das mentes. Se é necessária uma aldeia inteira para educar uma criança, como reza o conhecido provérbio africano, então foi preciso um bairro inteiro, o Bairro de São Pedro, para nos educar, a mim, ao Toninho, ao Carlitos, ao João Paixão, ao Janita, ao Zé Bibe, ao Marco, ao Nuno, ao Janeca… e às meninas que connosco brincavam… como se fossem meninos como nós.

E como agentes dessa educação primavam, sobretudo, as mulheres. As que, passando a maior parte do tempo a cuidar da casa, da horta, do jardim, dos animais e dos filhos, educavam os delas e os dos outros, nós, os membros desta misteriosa tribo que, só muitos anos mais tarde, veio a revelar-se, a par da nossa família, um núcleo educativo fundamental para as nossas vidas. As mulheres, as vizinhas, portanto, davam-nos a liberdade da brincadeira, gritavam quando nos portávamos como uns parvos, riam-se das nossas piadas inocentes, serviam-nos lanches copiosos, de sandes de fiambre e queijo, sumos gelados, bebidos naqueles verões intermináveis, nas cozinhas transformadas em salas de banquete real. As vizinhas, sobretudo as de outrora, mulheres que passam despercebidas à maioria, foram também, a par dos nossos pais, lei e norma, naquele Bairro icónico, que roubou o nome à ermida à beira-rio e que nos vem à memória todos os dias, com os aromas das manhãs. Ainda hoje, quando as encontro, 50 anos depois, as trato por vizinhas. Foi um título, não académico nem profissional, que lhes ficou. É um nome que abarca em si toda a nossa infância. E que lhes fica bem.   

No Bairro de São Pedro havia dois tipos de vizinhas: as que achavam sempre graça às intermináveis brincadeiras dos miúdos e as que, de vez em quando, não achavam graça nenhuma. Mas todas povoam os nossos pensamentos. Recordo com saudade a Prima Maria Gertrudes, a Prima Toneca, a vizinha Chica, a vizinha Maria Rosa, a vizinha Conceição, a vizinha Alexandrina, a vizinha Vitalina, a vizinha Estrela, a vizinha Toda, a vizinha Custodinha, a vizinha Agostinha, a vizinha Maria Custódia, a vizinha Deolinda, a vizinha Deonilde, a vizinha Elisa, a vizinha Margarida, a vizinha Amália, a vizinha Umbelina, a vizinha Vitalina, a vizinha Maria da Glória, a Zaia, a vizinha Dina, a vizinha Joana, a vizinha Guida, a vizinha Ermelinda, a vizinha Cremelinda, a vizinha Cecília, a vizinha Isabel, a vizinha Carminda, a vizinha Fortunata e a minha Mãe, a que todos tratavam por vizinha Rosa. Outras, porventura, vieram depois destas, mas não tiveram o peso ou a influência que as primeiras tiveram nas nossas vidas.

Obrigado a todas!

 

 

O ódio e os odiosos

 

Para falar de violência, e da violência que tem vindo a assolar o nosso pacato país, devíamos usar palavras duras, cortantes, pesadas como uma pedra, perfurantes como uma bala, esmagadoras como as palavras de ódio que se gritam por aí. Mas nós não somos adeptos da violência.

Grupos neonazis começam a assumir-se de vez como representantes de uma facção da sociedade que, embora a crescer em número de adeptos, se afasta completamente dos princípios da democracia, dos direitos fundamentais, da tolerância e prática óbvia e natural da aceitação da diferença.

Não julguemos os cidadãos de outras latitudes e cores que vieram para o nosso país à procura de uma vida melhor. (Nós também temos o mesmo impulso quando sentimos que o nosso país já nada tem para nos oferecer.) Não condenemos os que, de outras línguas e religiões, querem ficar connosco de forma definitiva. (Milhares de famílias portuguesas de segunda e terceira gerações vivem espalhadas pelo globo sem deverem nada a ninguém). Não sacrifiquemos os que pretendem, de forma legítima e legal, fazer de Portugal a sua nova pátria. Os outros, os que atacam, os que insultam, os que maltratam, os que não toleram os outros devido à cor da pele, ao Deus a quem rezam ou à língua que falam, os que desprezam, os que vilipendiam, os que destilam ódio na via pública e nas redes sociais, esses é que deviam levar o tratamento legal que merecem. E todos sabemos qual é: julgados, condenados e isolados de uma sociedade onde não se enquadram pelo radicalismo dos seus actos e pelo perigo que são, sem sombra de dúvida ou e sem “alegadamente”, para a sociedade.

 

 

Um Martini servido fora de horas

 

O Martini das Onze e Meia foi servido às 4 da tarde, no passado dia 7 de Junho. Presentes estiveram muitos amigos, alguns deles com centenas de quilómetros a separar as suas casas da Biblioteca Municipal, o santuário onde gosto de reunir toda a gente e onde toda a gente gosta de reunir-se. Estivemos, portanto, todos juntos nesta tarde, com as diferenças esbatidas e as semelhanças celebradas. Foram longos minutos de paz, de risos e de lágrimas. Juntos.  

É bom publicar livros. É muito melhor juntar os amigos. E é absolutamente indiscritível quando podemos conjugar os dois mundos: o da literatura e o da amizade e dos afectos.  A equipa que me acompanha nestas aventuras já tem aqui sido referida mais do que uma vez. Assim como as Edições Colibri, que fazem questão de me levar a concretizar estes devaneios sem nada pedir em troca. Obrigado a todos!

 

terça-feira, 10 de junho de 2025

Pedro Coelho n' "O Martini das Onze e Meia"

 

Intervenção de PEDRO COELHO (vídeo) na apresentação oficial do livro

O Martini das Onze e Meia

07/06/2025







 Eis-nos, de novo, num dos grandes acontecimentos de todos os anos.

Há autores que publicam todos os anos porque a pressão do mercado lhes impõe essa regularidade. Poucos são os que escrevem livremente, publicando livremente, apenas pressionados pelo prazer da escrita.

Para o João Luís, escrever é degustar. E degustar é muito mais do que gostar. É saborear um prazer prolongado, como o devotado ao Martini das 11 e meia. O prazer de, como ele próprio reclama, “cair voluntariamente nas armadilhas” das palavras, “sofrer com cada adjetivo, saborear cada advérbio, multiplicar cada verbo por mil, porque o verbo é o motor do texto”. 

Como apareço muitas vezes nestes acontecimentos literários correria o risco de me repetir, não fora o destinatário destas homenagens um multifacetado homem de letras que nos dá, ano após ano, alimento que baste para saciar o nosso apetite e apimentar o nosso paladar.

Obrigado, João Luís, por fazeres questão de publicitar - e regar - a nossa velha amizade de quase meio século. Tirando a minha mãe, que resiste, e a minha tia que, sem querer, se fechou noutro universo, tu és, dos muito, muito próximos, a minha relação mais duradoura.

Sempre que me chamas para ocupar espaço nos lançamentos dos teus livros – e até agora só não estive no palco de um deles – tenho optado por centrar o tom dos meus comentários em ti, naquilo que és, no que construíste, no que representas para a comunidade, na tua família, que também, em parte, me pertence... Desta vez, decidi assumir o risco da inovação. Também porque a extraordinária matéria das croniquetas me dá pretexto para isso.

É o Vítor Guita que, no prefácio, usa a palavra “desassombro” para destacar a coragem de revelares os teus ideais e os teus valores. No mundo polarizado em que vivemos, distribuíres críticas tão duras a figuras políticas que, para muitos dos teus leitores, são ídolos, revela esse desassombro. Quantos, por muito, muito menos, são cancelados. O feito é ainda de maior monta porque te diriges a uma comunidade pequena - onde todos nos conhecemos - calcando feridas abertas pelo ódio, pela insensatez, pela estupidez, pela preguiça, pelo conformismo, pela idolatria (desculpa-me tantos adjetivos, sei que sofres com os adjetivos; aqui são necessários por serem muitas as faces do mal) .... Prossigo... toda essa carga negativa de adjetivos onde calcas revela o tal desassombro e a extraordinária coragem. Porque, se sofres com as palavras, sabes – melhor do que todos nós – o que elas significam. Admito que os apertados cérebros de alguns dos leitores das croniquetas – refiro-me, desde logo, aos cultores do ódio - já te tenham cancelado, mas, como não têm a coragem que tu tens, e porque tu estás muito acima do ódio, dar-te-ão, às claras, cínicas palmadinhas no ombro.  Nas profundezas das suas almas maculadas, certamente te odiarão.

Porque, quando escreves sobre política, esse cada vez mais exíguo lugar de acantonamentos e trincheiras, tu disparas, com tiros certeiros, em todas as direções. Assaltas o coração de todas as trincheiras.

Vou citar-te, recuando às eleições legislativas de 2024:

Sobre Pedro Nuno Santos primeiro e sobre Luís Montenegro depois – os tais dois a que chamas “as duas figuras do presépio que empatam e atrasam à espera do dia de Reis para voltarem para dentro da caixa de sapatos”. Primeiro vou ler-vos o que escreves sobre estes dois, depois o que escreves sobre aquele a que chamas o “infantil” Ventura que, em 2024, conquistou, como escreves, mais de um “milhão de adeptos”.

 

Seguem, então, os teus tiros certeiros:

 

Como pode um partido, que perdeu a credibilidade perante os seus eleitores e perante os portugueses em geral, depois da sua queda vergonhosa por motivos ainda mais vergonhosos, apresentar um candidato que foi ministro, e ministro demitido por decisões mal explicadas?”

“O PNS perdeu por uma nesga, mas perdeu. Ganhou o parente (não muito) afastado de Ventura que conseguiu pôr o país em suspenso com o seu “Não é não!”. Veremos se vai manter o que disse ou se, com o apoio do terceiro maior partido, vai contribuir para mudanças profundas na gestão do país e dos portugueses, algumas delas regressadas de outros tempos, em que o queridíssimo líder, com palavras mansas e cristãs, sussurradas aos ouvidos dos descontentes e guardadas e feitas cumprir por uma competente guarda pretoriana, punha e dispunha do tempo, da mente e da vontade dos liderados”. 

 

Fim de citação.

 

Socialistas, social-democratas e cheganos recebem, pois, dose igual. E já nem falo do que nas croniquetas se lê sobre, cito, o “sistema de amiguismo” de António Costa ou sobre Marcelo Rebelo de Sousa que, como escreves, “cada vez que fala há um tsunami que nos atinge a todos”.

Poderiam os teus oito leitores dizer: ‘Bem, escapa-se o PCP... Ele deve ser do PCP’. Esqueçam, porque, nas croniquetas, o João Luís esclarece: “Sempre abominei ditaduras venham elas dos partidos e regimes admirados pelo Chega, surjam elas dos partidos e regimes idolatrados pelo PCP”.

Não acredito que pensem que és do Bloco de Esquerda porque, pelos vistos, já quase ninguém é do Bloco de Esquerda.

Eu, que sou teu amigo há quase 50 anos, nunca me preocupei com o partido onde votas, porque o teu partido, provam-no também as tuas croniquetas, é o partido do humanismo, da solidariedade com os mais fracos, da doutrina social da Igreja, mesmo que não andes, como revelaste ao papa Francisco na conversa que tiveram no Alkimia, a bater com a mão no peito e a correr de oração em oração.

Aliás, muitos dos que fazem questão de apregoar juras eternas a Deus e à Igreja do papa Francisco, esses que se julgam portugueses de bem, são, apenas, infelizes filhos da Pátria, porque – como bem escreves – “Portugal não merece os filhos que tem. Nem a Pátria é ditosa. Nem ditosos são os filhos que ela pariu”.

Sobressai, nestas croniquetas, a tua memória. A que moldaste durante os teus 14 anos de antigo regime, o que ouviste contar à tua mãe e ao teu sábio pai que, no dia mais longo das nossas Primaveras, ainda te deixou escapar: “vamos ter calma, porque isto ainda pode voltar atrás”.

Comungo desse teu receio. E com o teu receio, em forma de alerta, instalo-me na intolerância das trincheiras e despeço-me com esta tua frase:

Esse Monstro já começou a babar-se, sedento de sangue e de morte. Esse Monstro tem um nome: chama-se Fascismo e pode, em breve, começar a fazer as primeiras vítimas: tu e eu. Depois, como escreveu Brecht, será tarde demais... primeiro levaram os negros, mas não me importei com isso. Eu não era negro”...

De facto, meu amigo, os negros do poema somos todos os que recusamos entrincheirar-nos no ódio.

 

domingo, 18 de maio de 2025

O despertar do Monstro

 



 

 Ficou adormecido durante mais de quatro décadas o maior dos monstros que tinha transformado o nosso país numa quinta, gerida durante 48 anos por um capataz de fala mansa e com mão de ferro. Eram as trevas o seu meio ambiente preferido, onde espalhava o seu hálito putrefacto e bafiento da ameaça, nos cantos mais recônditos de um Portugal cinzento e amedrontado, habitado por gente que tinha sempre por sobre a cabeça a perspectiva da prisão, da tortura, da perseguição, da censura, do exílio, das reuniões clandestinas, das separações, do degredo.

 O Monstro, vivo e violento durante quase meio século, não foi destruído naquela madrugada desse dia “inicial inteiro e limpo”. Foi, afinal, posto a dormir com um golpe na nuca, não de uma arma, mas de um cravo, que se julgou, poeticamente, ser a solução mais eficaz. Com o susto provocado pelos militares e pelo povo nas ruas, o Monstro não morreu, como se pensava, regressando antes às profundezas do abismo onde tinha sido gerado. E aí ficou, em hibernação, adormecido, aguardando pacientemente a chegada das condições ideais para, novamente, começar a espalhar a semente do Mal.

 A intolerância religiosa, racista e xenófoba, as invasões militares, os ataques, os insultos em plena campanha eleitoral, nos Estados Unidos, em Portugal e noutros países ditos civilizados, as infantilidades na nossa Assembleia da República, as chantagens políticas, as perseguições, as mortes, a impassividade dos ditos homens bons, o demérito da esquerda, são a face visível desse Monstro, cujos tentáculos abraçam  violentamente o planeta.

 Governos de extrema-direita começam a surgir na Europa que nem cogumelos, novos hitlers espreitam e sorriem aos descontentes, aos que se esqueceram do sofrimento dos pais e dos avós, perseguidos e muitos deles mortos pela força e pelos métodos invasivos dos maquinistas do Estado Novo, que não deixavam ninguém pôr o pé em ramo verde. Tornadas definitivas a democracia e a liberdade, estes seres ressabiados, defendidos e privilegiados pelo regime adormecido, esconderam-se nos novos partidos políticos, usados como máscaras durante anos, até hoje.  E por lá ficaram, gritando vivas à liberdade, contaminando discretamente ministérios e secretarias de estado, câmaras municipais e juntas de freguesia, deixando descendência, física e ideológica, que, anos mais tarde, começaria a manifestar-se de forma estranhamente descontraída e nunca até então vista.

Espaço livre, foi o que foi.

Começou a haver, primeiro, timidamente, depois a céu aberto, espaço livre, onde o Monstro se instalou comodamente, agradecendo aos defensores da democracia e da liberdade a sua ausência de estratégias para manter o país a navegar, louvando a sua falta de empenho em condenar os corruptos e os ladrões de colarinho branco, o seu receio de devolver a autoridade às forças de segurança, a sua inépcia em legislar de forma séria e adequada sobre questões sensíveis como a imigração, a eutanásia, a mudança de sexo, a carreira docente, a saúde, a segurança, a idade da reforma…  Cada falha de governação permitiu aos partidos de extrema-direita (e de extrema-esquerda) darem um passo em frente em direcção aos degraus que os poderão conduzir ao Poder.

  Este Monstro vai começar, mais dia menos dia, a ser tratado como uma necessidade a bem da Nação. Esse Monstro já começou a babar-se, sedento de sangue e de morte. Esse Monstro tem um nome: chama-se Fascismo e pode, em breve, começar a fazer as primeiras vítimas: tu e eu. Depois, como escreveu Brecht, será tarde demais. [1]

 



[1] Referência ao poema de Brecht (baseado num outro de Martin Niemöller) que começa assim: “Primeiro levaram os negros/Mas não me importei com isso/Eu não era negro (…).”

João Luís Nabo

In "O Martini das Onze e Meia", Edições Colibri, Maio de 2025

Distraídos crónicos...


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