sábado, 19 de junho de 2010

Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara (Livro dos Conselhos)


Escrevi uma pequena crónica para a “Folha de Montemor” de Abril de 1989, quando José Saramago veio a Montemor para um encontro com os seus leitores na Biblioteca Municipal. Aqui fica um excerto desse texto, numa homenagem derradeira ao escritor, ao Nobel, ao polémico e ao desassombrado. Resquiat in Pacem.


José Saramago - 
a maturidade
dos escritos

O visitante sentara-se ao centro, que é o sítio de honra e, de cotovelo fincado e a mão a apoiar a cara descansada, ouvia de olhos pequenos atrás das lentes grossas as palavras que eram dele e que por ser escritor a outros pertencem, que isto de filhos já se sabe que pertencem ao mundo depois de feitos. E ali estava ele. Atento às paisagens e aos factos, às pessoas soltas que ele tinha outrora inventado. Entendeu-se como se pela primeira vez as ouvisse ler. E aqui o escritor não se sente mais que leitor talvez pela milésima vez renovada porque as letras fizeram-se para isso mesmo, e ele usou-as sem lhes retirar o sabor, trazendo sons novos que só atrás da alma que Deus nos deu se tornam noutros, consoante aquilo que se aprende da vida. E ele lá estava, com a manga da camisa a roçar-lhe a orelha que muito ouviu e que depois deu lugar à brancura das palavras.
Muito falou aquele ribatejano duma figa que até podia ser Mau-Tempo em vez de Saramago ou até Gusmão Passarola porque não sonhou menos que esse padre alucinante. E, quando falou, a sala perdeu a pompa da maioria dos colóquios e ficou mais simples e toda a gente gostou porque ele era o tal homem que tinha posto em livro [no Levantado do Chão] o que as pessoas tinham sentido quando antes era proibido sentir. (…)

6 comentários:

samuel disse...

Olha que coisa bonita!

Abraço.

MonteMaior disse...

Lindo!!!

Paz e alerta! disse...

Que a sua memoria tenha sempre como pano de fundo a afronta da hipocrisia e do seguidismo bacoco dos oportunistas esclarecidos!

AMS disse...

Emocionei-me ao ler o teu texto, porque estive lá, na sessão que referes e as tuas palavras reavivam sentimentos e velhas emoções, mas também porque o sentimento de perda existe. A realidade é esta: "morrer significa estar hoje aqui e amanhã já não estar", como dizia Saramago, mas significa mais, significa, neste caso, perceber que não vale a pena esperar por mais um texto seu. E eu era, sou, uma das fãs da sua escrita.

Cloreto de Sódio disse...

AMS: gostava de estar vivo daqui a trezentos anos para ver, ouvir e ler textos onde os importantes e inchados críticos literários desta nossa nação de gente mais cega que as personagens do Ensaio sobre a Cegueira acabarão por assumir que Saramago foi, é, um dos maiores escritores da língua portuguesa.
Obrigado pela visita e pelo teu valioso contributo nesta pequena memória.

Anónimo disse...

Amigo!

lembro-me de tudo o que se passou na Biblioteca, aqui em Montemor, nesse dia...
lembro-me de ter lido, na altura, este seu belíssimo texto...

não consigo. em situação alguma, comentar a morte de Saramago! bateu fundo.
abraço
vovómaria

Distraídos crónicos...


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