quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

E agora falemos de um livro



Dispostos
a
ser

rastilho
chama
e
fogo

nunca
cinza

(gente povo todo o dia, p. 195)

Ler o poema gente povo todo o dia, escrito por Filipe Chinita há trinta anos, não é a mesma coisa do que ler o texto nesse tempo.
Podemos inferir desta breve introdução que o autor parece enganar involuntariamente o leitor, visto o tempo de escrita e o tempo de leitura serem afastados e, aparentemente, díspares. Digamos que não é justo condicionar sentimentos através da literatura utilizada como… controlo remoto em direcção ao futuro. Então, assim sendo, outros nomes das letras portuguesas e mundiais estão no mesmo patamar em que se encontra Filipe Chinita: não de condicionadores da mente, não de mentirosos de papel, muito menos de visionários de pacotilha. Deixa-nos voltar atrás no tempo, Filipe! E ir contigo para os comícios, participar nas sessões de esclarecimento, fervilhar na ocupação das terras, correr para as sessões de alfabetização! Então, aí, a nossa leitura e o nosso envolvimento seriam diferentes. Mas tal não é possível.

Para o caso, nada está perdido. Soeiro Pereira Gomes, Manuel da Fonseca, José Cardoso Pires, e, por que não, Charles Dickens e William Faulkner, também têm, hoje em dia, leitores fervorosos, que nunca viveram no tempo da produção das suas obras. Foram os textos que, atravessando os tempos devido à sua permanente actualidade literária e, sobretudo, temática, se atiraram para as mãos e para os olhos dos leitores e, desta forma, foram permanecendo vivos, livres e actuais. Embora sendo participantes de um exercício profundamente político, os textos destes (e de outros) autores não se ligavam claramente a um determinado partido, embora não fosse difícil adivinhar as tendências de alguns deles. Ora, Filipe Chinita, pelo contrário, assume o seu poema como um texto escrito por (porque o foi) um revolucionário a tempo inteiro, ao mesmo tempo que se fazia a revolução, sobretudo a revolução agrária no Alentejo.

Então, como ler um texto partidariamente engagé, quer pelo tema focado, quer pelo assumir do autor? Como receber (entrando no campo da estética da recepção) um poema visivelmente comunista, sem ser tocado, nem pela mística que dele emana, nem pela imbecilidade da indiferença? Julgo que é simples encontrar a solução. Basta percorrer o poema (ouvi-lo dito pela Fernanda Lapa não será suficiente, dada a necessidade absoluta de se olhar para ele) como ele foi reescrito – em verso democrático, isto é, construído cada um deles, apenas e só, com uma única palavra. Vou tentar explicar melhor.

Na apresentação em Montemor, no dia 3 de Dezembro, o autor falou na génese do texto, revelando (e que revelação!) que só recentemente o tinha transformado no poema com a "imagem" actual, visto ter sido escrito em versos mais longos, quase como uma prosa “corrida”, sem outras preocupações que não fossem a de “gravar” no papel a realidade de então, filtrada pelo poeta-militante-revolucionário. Afinal, aquele esclarecimento de Filipe Chinita, casual e quase romântico, convidar-me-ia a pensar em duas problemáticas ligadas à literatura e à psicanálise, mas sem enveredar qualquer militância freudiana ou algo semelhante.

A primeira questão mostra que, para além de poder ser integrado, sem muitas reservas, no painel dos autores neo-realistas, também deve partilhar com outros escritores, sobretudo norte-americanos dos anos 50, uma estratégia narrativa muito especial e bastante contestada. Esta técnica, muito próxima do stream-of-consciousness, vem, na tradição de Allen Ginsberg e Jack Kerouac, ajudar a tornar a narrativa mais espontânea, ficando desta forma o leitor mais próximo do aparente estado de alucinação criativa que domina por completo o autor-narrador-quase-personagem de gente povo todo o dia.

A segunda questão prende-se, igualmente, com a forma aparentemente fragmentada do poema, outra prática utilizada pelo autor, mostrando ele ter consciência apenas do seu resultado em termos visuais e, consequentemente, estéticos, parecendo esquecer a sua eficácia em termos de fragmentação do texto. É neste esquecimento que se revela o homem Filipe Chinita, autor de um texto original mais parecido com prosa que, pseudo-adormecido no seu subconsciente durante trinta anos, vem à superfície numa forma bem visível de poema. O texto, assim fragmentado, acaba, ainda que tal seja discutível, por revelar o homem e o poeta, dividido entre um texto quase-prosa, escrito em desassossego, durante dois anos de profundas alterações sociais e económicas no Alentejo, e o poema-de-uma-palavra-por-verso de um conteúdo avassalador, publicado depois da queda do Muro de Berlim.

Tivera eu acesso ao texto anterior e confirmaria, vermelho no branco, em como o texto deste longo poema é um duplo do primeiro mas que, nas mãos do Filipe, não deixou de ser menos revolucionário. Porque sei que o Filipe e outros como o Filipe continuam “dispostos a ser rastilho chama e fogo nunca cinza”.

A ler. Sem sombra de dúvida.

Filipe Chinita, gente povo todo o dia
Edições Avante, Lisboa, 2009



1 comentário:

vovó disse...

é de ler este "gente povo todo o dia" como o que o F.C. publicou mano a mano, com Manuel Gusmão, "cantata pranto e louvor".

belíssimo comentário o seu, a mais esta obra do amigo/escritor Filipe.

beijocasssss
vovó Maria

Distraídos crónicos...


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