"(...) Foi só depois do nascer daquele dia terrível, ao sair para a rua a dar início a mais uma jornada de trabalho, que Baltazar Mendes olhou em direcção ao castelo e não viu o que costumava ver. Primeiro, não reparou na sua ausência, tal era a força com que a sua presença lhe estava entranhada. Mas depois, ao segundo olhar, percebeu que havia ali coisa que não era habitual.
Pois é esta a verdade que aqui lhes trago: Vila Nova acordou em grande sobressalto naquela manhã. Ninguém dera por nada. Não se ouvira qualquer estrondo nem barulho de motores ou de vozes. Nem o ar a deslocar-se, nem explosões, nem nada. Nada que fizesse despertar o bom povo do sono justo que o agarrou ao leito naquela noite, aparentemente santa. Aliás, como veio a dizer mais tarde Baltazar Mendes, já no Largo dos Paços do Concelho, tinha sido uma noite demasiado calma. Pois foi ele que deu o alarme.
Enquanto fechava a porta de casa, na Rua de Avis, para se dirigir para a loja de ferragens, onde trabalhava havia perto de trinta e cinco anos, olhou sem pensar, como sempre olhava, para aquele horizonte estreito entalado entre os prédios da sua rua e, lá mais à frente, pelas casas antigas da Rua das Pedras Negras. E, quando olhou, estranhou o que viu. Ou melhor, estranhou o que não viu. Primeiro não percebeu.
Depois semicerrou os olhos, não se tivesse entreposto alguma névoa entre a ponta do seu nariz e o fundo do céu. Foi aí que percebeu. Soltou um grito de aflição e impotência: a Torre do Relógio, que coroava a Rua do Quebra-Costas, esta a desaguar a custo na avenida principal do castelo, a torre que figurava no brasão de Vila Nova e nos emblemas da maioria das associações da vila, a Torre do Relógio de Vila Nova tinha desaparecido com as quinze toneladas de pedra que, durante séculos, lhe deram forma. Desaparecido?, perguntarão. Desaparecido, responderei. É que não há outro verbo no particípio passado que melhor descreva a sua ausência ou que satisfaça a maldade inata do perguntador mais perverso.(...)"
Excerto de "A Troca", in Outros Contos de Vila Nova (Editorial Tágide, Lisboa, 2010)