terça-feira, 11 de dezembro de 2018

Carlos




O mês de Dezembro começou mal para outra figura da cidade. Uma queda levou o meu querido amigo Carlos Cebola ao hospital onde passou uns dias, estando já em casa após uma cirurgia de sucesso. Imaginamos sempre a preocupação da Família, e, ao mesmo tempo, a serenidade do Professor que, pacificamente, aceitou o “incidente” e se abandonou de alma e coração nas mãos dos médicos e das enfermeiras. Tinha feito já o seu poema habitual para os Cantares ao Menino, entregue na minhas mãos há largas semanas, com as palavras sábias e serenas a que estamos habituados: Tome lá já o poema para este ano, porque a gente nunca sabe. Espero poder ir ouvi-lo na Igreja da Misericórdia.” Calculamos que, embora em recuperação, não vai estar ainda capacitado para cumprir esse desejo. Mas sei que vai acreditar que declamaremos o seu texto com toda a alma e com a mesma serenidade com que o escreveu. Obrigado, Professor Carlos. Os seus Amigos estão consigo.  


João Luís Nabo
In "O Montemorense", Dezembro de 2018

domingo, 9 de dezembro de 2018

Francisco



Não foram nada bons os primeiros dias de Dezembro. Neste tempo de esperança, de alegria e de união familiar e de amigos, foi exponencialmente difícil quando nos vimos confrontados com o trágico acidente e consequente falecimento de um conterrâneo nosso, figura popular e de quem todos gostávamos, pela sua forma de se dar aos outros e de partilhar o que tinha com quem não tinha. Era jovem o Francisco. Vai permanecer jovem para sempre, dando continuação a outros mitos da literatura, do desporto, do cinema e das belas artes, que têm povoado o imaginário de várias gerações ao longo da História. 
Era, por isso, ainda cedo. Cedo demais. 
Quando um amigo parte das nossas vidas e deixa os nossos dias profundamente mais vazios e sem Sol, há sempre uma parte nossa que o acompanha e uma parte dele que fica connosco. É assim a amizade. Se não fosse como acabo de descrever, nada teria valido a pena.
Partiu o Francisco. Deixou inconsoláveis a família e os amigos, sobretudo os amigos da igualmente mítica Rua de D. Sancho, e também os companheiros e colegas que, com ele, viviam a noite montemorense com intensidade e paixão.
Também nós, um dia, partiremos, por um motivo qualquer inesperado, adverso ou, nunca o saberemos agora, já aguardado. E haverá, também, gente pouco cautelosa a trocar impressões nas redes sociais sobre o nosso estado de saúde, sobre as nossas amizades, sobre a nossa família e o nosso passado, esquecida da dimensão e do alcance que esses comentários podem atingir. Todos os amigos, preocupados, os irão ler. E os outros também.
Mas para o Francisco nada disto teve importância.
Até um dia, sabe-se lá quando... Quando for, vou levar-te notícias da nossa terra.
Descansa em paz.

João Luís Nabo

In "O Montemorense", Dezembro 2018

segunda-feira, 19 de novembro de 2018

Estaleiros



Sabemos que tem de ser assim. Para haver melhoramentos no tecido urbano e rodoviário da cidade tem de haver obras, buracos no chão, cheios de água e lama, valas que nunca mais acabam, entulho, barulho, trânsito condicionado, redes, andaimes, em suma, acaba por estar tudo virado do avesso. Mas a obra do Muro do Jardim Público já começou e isso é o mais importante.
Fiquei desolado, e não fui decerto o único, com a nova imagem daquela paisagem clássica, agora com o muro quase completamente derrubado e que vai alterar de vez a magia do meu Jardim, do Jardim da minha infância e adolescência.
Pondo a razão acima do coração, sabemos, pelo que vimos no projecto, que a cidade vai ficar mais arejada, com um Jardim Público aberto e com acessos fáceis. E foram estas algumas das razões que me levaram a escolher esta opção, quando houve a votação pública. E, depois, será uma questão de hábito. Acredito que sim.
Sobre as ruas adjacentes que vão ser alteradas, aí outras vozes se levantarão, porque o corte do trânsito na rua de Avis, por exemplo, para que esta se transforme numa zona pedonal (interessante, seguro e estético, na minha opinião), pode não ser a medida mais certa, na opinião de alguns comerciantes daquela via tão movimentada.


João Luís Nabo
In "O Montemorense", Novembro de 2018

domingo, 18 de novembro de 2018

Natal injusto, mais uma vez



Vem aí o Natal (outra vez). Era só para avisar os mais esquecidos que, para além de ser uma época festiva e de prendas, é também a altura ideal de sermos bons uns para os outros. Já agora, é muito mais do que isso tudo: é o tempo certo para sermos justos. Eu explico: vou fazer anos no próximo dia 23 de Dezembro e há quase 58 Dezembros que ouço sempre a mesma lengalenga de amigos e família: “Toma lá esta prendinha. É de anos e de Natal! Parabéns!”. Eu aceito, claro, com a melhor cara que consigo arranjar na altura, sentindo-me, porém, mais uma vez, injustiçado. Este desabafo quer dizer isso mesmo que vocês estão a pensar: que eu e muitos como eu (o meu amigo Zé Bexiga, por exemplo!), estamos continuadamente a ser prejudicados pelo Menino Jesus. Sabemos que ele foi, e é ainda, mais importante do que nós, mas mesmo assim…
Tenho, portanto, uma proposta que muitos vão assinar por baixo, de cruz e sem hesitações: ou se muda a data do nascimento do Miúdo ou exigimos (eu, o Zé Bexiga e muitos outros amigos) que nos devolvam, COM RETROACTIVOS, todas as prendas que nos devem desde o princípio da nossa vida.
Tenho dito.

João Luís Nabo

In O Montemorense, Novembro 2018

quinta-feira, 15 de novembro de 2018

Queria castanhas, a moça


Martinho, o nobre cavaleiro gaulês, militar do exército romano, que ofereceu metade da sua capa a um mendigo que morria de frio, abandonou a guerra e entrou para um convento, para longe das tentações mundanas. O dia em que se deu este tão simples mas tão nobre gesto foi a 11 de Novembro do ano 337 d.C. e é hoje celebrado com castanhas e água-pé.
Pois, no dia 11 que passou, fui, depois de almoço, dar uma volta pela cidade. “Compra-me umas castanhinhas assadas, que ainda temos ali uma garrafa de água-pé. Vamos dar seguimento ao que faziam os nossos pais… Tradição é tradição!”, gritou-me a Fofa, do quintal, onde tentava (sem sucesso) dar banho ao Balú, e esquecendo, por momentos, as três semanas de rigoroso regime alimentar.
Saí de casa e fui beber o cafezinho da praxe no António Quitério. “Quer o seu Poejo habitual?”, perguntou-me. “Não, António. Vou conduzir. Vou comprar castanhas assadas!”, respondi, quase eufórico.  E assim fiz.
Assim fiz, não. Assim quis fazer. Percorri (de carro, pois claro) a cidade de ponta a ponta, de lés-a-lés, de fio a pavio e não encontrei vivalma a vender uma castanha assada que fosse. Vieram-me logo à memória as recordações de infância e a barraquinha de uma senhora velhota de saias compridas e lenço na cabeça, mesmo junto ao Passo da Rua Nova, que vendia uma dúzia de castanhas por 10 tostões.
Voltei pesaroso… mas com castanhas num saco. (Eu não poderia desiludir a Fofa que, àquela hora, já devia estar mais molhada do que o próprio Balú). Não as encontrei numa esquina, quentinhas a estalar. Fui comprá-las, cruas, claro, a uma das superfícies comerciais da cidade cujo nome, Intermarché, não se pode dizer por causa das cenas da publicidade e má-na-sê-quê, e dirigi-me ao doce lar. Acendi a lareira da sala e, quando a coisa estava mais ou menos capaz, retalhei as castanhas, coloquei-as dentro de uma panela própria, pus-lhes sal e depositei aquele tesouro sobre as brasas da minha lareira. Liguei a televisão naquele Canal Zen que dá para a gente descansar um bocadinho e… adormeci.
Fui acordado violentamente pelo fumo negro e denso que invadia a sala. Eram as castanhas completamente transformadas em carvão que se tinham praticamente evaporado.
Ainda hoje, caros leitores, com o cheiro que se entranhou naqueles cortinados de veludo persa, continua a parecer que é dia de São Martinho naquela bendita sala. A Fofa é que não ficou lá muito pelos ajustes. Quando me ouviu gritar, aflito, como se tivesse despertado em pleno Inferno, apareceu-me, ligeiramente despenteada, com o Balú atrás dela, a sacudir água por todo o lado, e disse-me sem um sorriso: “Para a próxima vez, traz-me um pastel de nata.”
Não respondi.

João Luís Nabo
In O Montemorense, Novembro 2018

sexta-feira, 26 de outubro de 2018

sexta-feira, 19 de outubro de 2018

Reencontrado



Foto: TIVOLI

Acordei cedo num destes dias e fui, sem dizer a ninguém cá em casa (para quê acordá-los, não é?) passear pela cidade. Evitei o circo das obras, porque não me apetece ver os estaleiros em que a zona do Jardim Público se transformou (sim, eu sei que é necessário e tal… mas tenho o direito de não querer ver, pronto), e fui a pé até lá abaixo, ao meu antigo bairro, o Bairro de São Pedro, o mais carismático de sempre, desde que Montemor foi Vila, até hoje, que dizem que é cidade. Passei, inevitavelmente, pela casa onde os meus pais viveram mais de cinquenta anos e onde cresci e vivi até ser homem. Não me preocupei com o que mudou nem com o que ficou. Recordei-me, isso sim, que foi ali naquela casa, ao lado, primeiro, da minha vizinha Chica Borrazeiro e, depois, durante longos anos, com a minha prima Toneca Caldeira como vizinha, onde dormi, comi, brinquei e amei, onde aprendi, com os meus Pais e com todos os Vizinhos, o que, muitos dos que nos governam, jamais aprenderam. Por momentos, fiquei sem saber o que pensar da Vida que, observada daquele pequeno recanto, com quintal e tudo, enfeitado outrora com primor pelos vasos de flores da minha Mãe, se transformou numa outra bem mais dura e tantas vezes mais do que alucinante. Não que ela me tenha sido madrasta. Nada disso. Tive sorte na minha infância e também tive essa sorte na minha idade mais madura. Fui à Universidade, num tempo em que filho de comerciante ou de camionista deveria ser comerciante ou camionista como o pai, sentindo o peso da responsabilidade desses meus estudos por ver a minha Mãe a assumir o seu primeiro emprego, com 40 anos, para o filho poder andar a estudar em Lisboa.
E fui, e vi mas não venci. Não venci nesse tempo, nem venci hoje, porque sinto sempre este desassossego pessoano que não me deixa viver tranquilo. E menos tranquilo fico quando reparo em tantos com que me vou cruzando que, satisfeitos com a vida, tranquilos na sua rotina, se recusam a fazer mais por si e pelos outros, varrendo para debaixo do tapete o lixo que foram acumulando no decorrer dos dias.
Tenho saudades da minha infância. Foi por isso que fui ao meu velho bairro. Não porque hoje seja infeliz. Não posso sê-lo com tudo o que a vida me deu e, apesar de tudo o que vida me foi tirando. Não é isso. Só que, na infância, tudo o que dizia e fazia não tinha um propósito fixo, premeditado ou combinado. Era natural o meu pensamento como o era o dos meus amigos dessa altura. E é por isso que sinto saudades da minha infância, da inocência e dos amigos inocentes como eu. Porque hoje, as palavras que dizemos são medidas, pesadas, articuladas em frases bem pensadas, alinhadas e só depois lançadas com o cuidado necessário para que o seu peso não se abata sobre… nós próprios. Mas o que se torna curioso é que, por vezes, não são as palavras que têm peso. São as pessoas que as proferem. Ainda assim, não perdi totalmente essa inocência dos dias passados. Ainda assim, a frontalidade e a verticalidade que me deixaram os meus pais e os meus sogros por herança, herança mais valiosa que qualquer conta bancária recheada, são ainda, e irão continuar a ser, o pano de fundo onde me movo e onde quero que os meus se movam. São esses princípios o nosso báculo, o nosso encosto, a nossa defesa e o nosso ataque.
Por isso, nunca poderia ser um Ministro qualquer de um qualquer Costa, de um Passos perdido ou de um Portas estrela de cinema.
João Luís Nabo
In "O Montemorense", Outubro 2018

quarta-feira, 17 de outubro de 2018

Perdido



Afinal este Costa que hoje conhecemos não é o mesmo Costa que, há três anos, nos anunciou que Portugal ia mudar de vez. Afinal, quando pensávamos que as marcas que Passos e Portas nos deixaram, graças também aos “desajustes” governamentais e pessoais de Sócrates, iriam ser, se não apagadas, pelo menos disfarçadas, eis que, afinal, o país se ergue, quase em uníssono, a berrar por melhores condições de trabalho, de vida e de morte. São os professores, são os médicos, são os enfermeiros, são os trabalhadores da administração pública, são os funcionários das escolas, são os guardas, são os polícias, é o exército, é a marinha e é o que mais vier, porque parece que as coisas estão mesmo muito, muito, muito más.
E Costa, perdendo a verve e o optimismo que o caracterizava e que tanto encanta ainda o Presidente da República, não sabendo o que mais fazer, estando hipotecado à esquerda, à direita e ao centro, despede ministros e secretários de estado como quem vende malas usadas na Feira de Carcavelos, contratando outros, sem sequer se saber ao certo se eles percebem, ou não, melhor do ofício do que os anteriores.
Dizem os senhores analistas que é assim que se faz. Que é a política. Que é uma fuga não sei para onde, que é má-na-sê-quê… Mas aquilo que é não me atrevo a escrevê-lo, não só devido à índole cristã deste jornal, como também aos princípios que os meus pais democraticamente me impuseram. Afirmam os especialistas, ou os que se dizem como tal, que estas medidas de trocas e destrocas servem para acalmar o povo. Duvido, como elemento do povo, que seja essa a solução. Também não sei qual será. Não sou político nem analista. O que eu acho é que qualquer bicho homem, sem valores nem dignidade, onde quer que esteja, independentemente do seu partido, da sua ideologia, raça ou religião, acabará sempre por secar o que de bom outros fizeram. E, às vezes, faz gáudio disso.

João Luís Nabo
In "O Montemorense", Outubro de 2018

domingo, 16 de setembro de 2018

De regresso - parte II


 Fora dos muros da Feira, no mundo real, no quotidiano dos impostos, dos aumentos, das greves, dos incêndios, dos acidentes, dos assassinatos, dos políticos, do Robles, das dores de cabeça do Papa Francisco, das roubalheiras à grande e à fartazana... está tudo na mesminha.
A cidade continua a precisar de um maior cuidado, de constantes arranjos, de limpeza, para se apresentar aos de fora e aos de dentro, com brio, tradição e elegância; a questão relacionada com a recuperação e manutenção do Castelo, nosso ex-libris e protagonista de algumas notícias e comunicados num breve período antes das férias, não sabemos bem em que pé vai ficar. Na reunião de Câmara do passado 5 de Setembro, foi decidido “rejeitar as transferências de competências do Estado para o Município no ano de 2019, com os votos favoráveis dos eleitos da CDU e os votos contra dos vereadores do PS.” O Estado transferia as responsabilidades mas não transferia dinheiro. Por isso, nada a fazer. E agora? Sem dinheiros dos cofres centrais e sem provimento disponível nos cofres da Câmara, o que vai acontecer? Haverá a possibilidade de uma convenção entre o Estado e a Autarquia de Montemor para resolver o problema? Não? Então, os eleitos vão ficar todos de braços cruzados, à espera que o Castelo caia? Os munícipes estão preocupados e necessitam que seja urgentemente apresentada uma solução. É um direito seu, que nenhum poder político pode desprezar.
E lá vamos escrever outra vez sobre o muro do Jardim Público, cujas obras estão anunciadas para Setembro/Outubro. Se eu tivesse uma idade ainda imberbe, crente nas palavras e nas boas intenções de quem nos governa, até era capaz de começar a dormir mais descansado. Mas começamos a estar estafados de tanta parra e tão pouca uva. Só acredito que o problema vai ser solucionado quando as obras estiverem prontas.
O Almansor continua a correr, fininho, triste e poluído, sem futuro e cada vez mais desligado da cidade. A Fofa propôs-me, há pouco tempo, um passeiozinho de caiaque, rio abaixo, desde a Ponte de Évora até ao Pego do Poço de Cima, onde poderíamos, depois, tomar um banho refrescante à moda de Adão e Eva. Deixei-a viver feliz aqueles momentos de imaginação para, depois, um bocadinho à bruta, lhe atirar para cima do pechiché algumas das fotos mais recentes do Almansor, que a fizeram logo ficar tristinha e inconsolável. “O Rio está morto”, exclamou, entre dois pequenos soluços.
Na verdade, a ausência de uma atitude por parte dos responsáveis vai acentuar cada vez mais a imagem negativa que entra pelos olhos dentro de quem passa pela Ponte de Alcácer, em direcção à cidade. E o que vê o viajante quando olha para o Pego do Poço ou em direcção da Ponte de Ferro? Desleixo, desinteresse e falta de respeito pelo meio ambiente.  Uma tortura para o olhar, em suma.
E já que estamos em maré de início de ano lectivo, deixo aqui os votos de um bom ano de trabalho para todos os meus colegas e para todos os meus alunos, com muito profissionalismo e dedicação e, tendo em conta a Reforma que já chegou, pleno de criatividade e... de paciência. (E depois, ainda temos a questão do muro do Jardim Público.)“Se te móis... é pior!”, segredou-me a Fofa numa destas noites, depois de termos visto cinco episódios do Dexter. Antes de poder ouvir a minha resposta, virou-se para o outro lado e adormeceu. Penso que com um sorriso nos lábios.

João Luís Nabo
In "O Montemorense", Setembro 2018

De regresso-parte I

Ora cá estamos, depois de umas semanas de pausa na escrita. Os assuntos acumularam-se e agora precisaríamos do dobro do espaço para lavrar o branco do papel com as nossas habituais lucubrações, tão fofinhas para tantos e tão irritantes para outros tantos ou mais. Adiante: passou o Agosto, com o pessoal na praia, de papo ao Sol, a beberricar mojitos no bar da beach, a apreciar secretamente as paisagens e a pensar, com delícia, com água na boca mesmo, na edição da Feira da Luz que se aproximava a olhos vistos.
E, quando o calendário nos permitiu, lá fomos, pois claro, a caminho do Parque, para tomar conta do “pavilhão” do Coral de São Domingos e do da Porta Mágica, rever amigos e também (principalmente) para mostrar o nosso corpinho, bronzeado pelo sol generoso da Costa Vicentina. Na nossa primeira visita, tivemos alguma dificuldade na adaptação ao espaço e à forma esquisita como estavam distribuídas as “barraquinhas” das associações. Nada que o GPS da Fofa, sempre atenta e linda, não viesse a resolver. O mais engraçado foi que, quando estávamos prestes a dispensar a ajuda do precioso e moderno mecanismo... acabou a feira. Mas o que lá vimos e ouvimos encheu-nos a alma e deu-nos alimento para mais uns dias.
Mais a sério, o destaque vai, naturalmente, para a Banda da Sociedade Carlista que, numa metamorfose perfeita, se tornou num inteligentíssimo parceiro dos Quinta do Bill; para os Átoa, uma verdadeira força da natureza e que vimos e aplaudimos pela primeira vez ao vivo; e para a Roda Gigante que me inspirou para um novo ditado japonês que eu não me atrevo a divulgar, a conselho da Fofa, mas que tem a ver com “povo delirante” a rimar com “roda gigante” e com “tromba de elefante”.
A Exposição sobre a Educação no Concelho de Montemor revelou um bom trabalho de investigação. Contudo, a sua estrutura (com textos grandes demais para aquele contexto de feira) teria outro impacto num espaço da cidade, com carácter permanente, onde pudesse ser visitada e explorada “sem pressa” e com a necessária concentração, condições compreensivelmente impossíveis de obter no Pavilhão de Exposições da Feira da Luz. Fica a sugestão: para a próxima... mais bonecos e menos letras.
O Palco Secundário é sempre um enorme ninho de talentos e é onde também acontecem momentos de enorme valor artístico: a grande homenagem aos Queen e o excelente domínio dos instrumentos aliado à criatividade do Pedro “Zinko” Lóios foram os pontos altos deste espaço mais intimista.

João Luís Nabo
In "O Montemorense", Setembro, 2018


quinta-feira, 9 de agosto de 2018

O pecado de Deus





Há dias deu por ele a caminhar, devagar e sozinho, em direcção à ermida da Senhora da Visitação. O tempo era ainda de Inverno, mas aquele dia, aquele dia exacto, tinha dispensado a chuva e o vento e, em seu lugar, o Sol, pregado naquele céu tão azul, abraçava Vila Nova e iluminava as muralhas ainda imponentes do velho castelo. Subiu a escadaria lentamente, saboreando cada passo que o levava mais alto em direcção ao templo. o, não foi pagar uma promessa, muito menos fazer um pedido ou alterar um compromisso assumido num momento de aflição. Foi, simplesmente, porque a hora de almoço era larga e sentiu (terá sentido?) uma força, cuja origem nem sequer tentara perceber, que o puxou até  a cima. Chegado ao cimo da colina, virou-se e enfrentou a vila. Gostou do que viu. Gostava sempre.

Deu por ele a empurrar a porta centenária, sempre entreaberta. Entrou e sentou-se na última fila (onde se senta habitualmente quando entra numa igreja), na penumbra silenciosa da capela. O espaço parecia-lhe vazio. Mas não. Quando os olhos, ainda cheios da luz do Sol, se habituaram àquela semiescuridão, viu um vulto junto ao altar-mor. No genuflexório da direita, mesmo aos pés da Virgem, notou a presença recolhida de uma senhora que rezava, concentrada, de cabeça baixa. O que estaria ela a murmurar? Que pedido? Que agradecimento?  ela o sabia. Era sério o momento e, por isso, ficou, descontraidamente, a olhar para ela, sentindo, não queria admiti-lo, um estranho desejo de estar  à frente, no lugar daquela mulher. Confirmou a vontade. Sim. Era um sentimento que poderia ser de… inveja, um pecado que há muito não cometia.

As pequenas chamas das velas,  em cima, tremeluziam por detrás da imagem e reforçavam o ambiente místico que envolvia aquele cenário tão… simples. A força silenciosa daquela mulher, que não conheceu logo, quer pela semiobscuridade do espaço, quer pela distância a que se encontrava, deixou-lhe o pensamento viajar para outros tempos, quando tudo era mais enigmático mas, paradoxalmente, mais claro.
Perguntou-se em silêncio se ainda saberia rezar. Achou que já o. Muitos anos se tinham passado desde a última vez. Tinha-se esquecido de como pôr as mãos, de como olhar para cima e imaginar Deus na parede do seu quarto, junto à janela, ou mesmo ao seu lado enquanto adormecia. Libertou um sorriso breve ao lembrar-se de como, nesse tempo, se sentia seguro e inexplicavelmente confiante. «Rezar é falar com Deus», asseguravam-lhe as catequistas, de quem tinha uma imensa saudade. Delas, do padre António, na sua constante impaciência pragmática, que ninguém tentava contrariar, dos pequenos amigos, do lanche (frugal e rápido, é verdade) depois da missa da primeira comunhão. Se rezar era (e é decerto) apenas e só isso ― falar com Deus ―, então esse diálogo entre Deus e este humano, frágil e feito do  da terra, Adão mil vezes renascido, acabaria por tornar-se difícil, por motivos na altura considerados fortes e inabaláveis. Razões que hoje teriam, provavelmente, a mesma força, embora numa nova era, e passados tantos anos, talvez houvesse tempo, ou maturidade, para o perdão pela Sua enorme mácula. Entretanto, para preencher aquele enorme vazio tinham aparecido outros deuses, outras divindades, novas certezas, bem mais materiais e bem menos, como diria, difíceis de compreender e aceitar…
Por estranho que possa parecer, a imagem da Virgem, no seu manto da cor do céu  fora, com aquela senhora aos s, cheia de  e humildade, fez com que sentisse saudades do Deus da sua infância, um constante companheiro de conversas, algumas ridículas aos olhos de hoje, muitas delas sublimes e inesquecíveis aos olhos de qualquer época. Mesmo assim, mantinha-se onde estava, firme, inabalável nas suas crenças cristalizadas de homem do novo milénio, querendo deixar para trás as suas discussões com Deus, os debates, as brigas, as fugas e os regressos, mas sobretudo o último diálogo, violento e tumultuoso, que ditara aquela zanga aparentemente definitiva, uma ruptura permanente, sem regresso possível.

Foi depois da morte de um amigo da sua idade, quase iro, impetuoso, bem-humorado, generoso, ambos na escola, com planos e projectos de longas vidas e famílias felizes. Morte inexplicável e injusta. Dor profunda e incurável. Um jovem quase adulto, iluminado, filho único. Cancro. Galopante. Nem tempo tinha havido para tentar a cura. Deus fora, afinal, um pai desatento e negligente. Outros, os que espalhavam o mal, os ódios e as guerras, continuavam  com bilhete de identidade vitalício e sem pai que os repreendesse. Depois de muitas discussões, com grimas e raiva à mistura, disse-Lhe que  não O queria como seu, que não precisava de um pai assim, omnipotente mas com defeitos.

Quando a senhora se levantou, ele, sem lhe apetecer grandes conversas, de forma quase automática, saiu da capela e dirigiu-se à escadaria que desaguava  em baixo, junto à estrada. No entanto, não a desceu. Esperou, curioso. A senhora, de cabelo prateado e pele morena, a rondar os 70 anos, saiu em passo lento e ficou de rosto iluminado logo que o viu. Desceu os três degraus que a separavam do terreiro e acenou na sua direcção:
 Não esperava encontrar-te aqui. Pelo menos para já!  Fez uma pausa, enquanto guardava o terço no bolso do casaco, e acrescentou: ― Não sabia que as minhas orações tinham uma força tão poderosa e um efeito tão… imediato!  Perante o seu contínuo silêncio, aproximou a face da dele e segredou-lhe:  Se Deus nos perdoa os pecados, também tu deves perdoar-Lhe o Dele.
Era a e, a sua, inteligente como todas as mães, confiante e simples como todos os sábios.

In “Outros Contos de Vila Nova”
João Luís Nabo
Editorial Tágide
Lisboa,

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