Há alguns anos, ainda estava na Direcção do jornal "Folha de Montemor", este vosso amigo e alguns colegas de redacção decidiram escrever, talvez, a reportagem mais importante dos, na altura, 10 anos e tal do jornal em questão: decidimos, após longa reflexão, contar cronologicamente a história do assassinato dos trabalhadores rurais António Maria Casquinha e José Geraldo Caravela. Produto de um trabalho de investigação, trouxemos para o papel, de forma organizada e coerente, a história desse crime, cujos agentes nunca foram condenados. Estive, inclusivamente, com o meu sogro em Vale de Nobre, revisitando o espaço e imaginando a acção com a ajuda de uma colecção de fotografias que nos tinham sido cedidas com o único objectivo de recriar jornalisticamente o acontecimento.
Infelizmente, questões de vária ordem levaram a que essa reportagem, pronta a ir para as rotativas, nunca visse a luz do dia. Foi publicada depois da minha saída da "Folha", mas de forma resumida e, consequentemente, incompleta.
Daqui a pouco, às 18 horas, o Filipe Chinita vai lançar no Auditório da Biblioteca Municipal a "Cantata Pranto e Louvor" em memória desses nossos conterrâneos, mortos em 1979. Já li o poema. Por isso, vou lá estar. Em jeito de homenagem.
Com um abraço aos ex-colegas que comigo colaboraram neste trabalho, deixo aqui o lead dessa reportagem, que deveria ter sido publicada no Jornal "Folha de Montemor" de Setembro de 1999, 20 anos depois dos trágicos acontecimentos:
"Falar de acontecimentos recentes não é fácil nem a exigente “cientificidade” da História a tal nos aconselha. Ainda assim, foi um risco assumido. Vinte anos depois daquelas mortes em Vale de Nobre, é quase uma obrigação moral falar delas. E assim, acreditámos que o afastamento temporal, ainda que, provavelmente insuficiente - insistimos - nos iria permitir fazer neste pequeno apontamento, sem qualquer presunção, uma exposição o mais objectiva possível, dos acontecimentos desse fim-de-semana longínquo mas ainda presente na memória dos milhares que nele participaram.
Para tal, socorremo-nos de dois ou três jornais dessa altura e de conversas soltas que fomos fomentando com amigos e familiares, depois de lhes contarmos o objectivo deste nosso trabalho, e com base numa entrevista que publicamos na íntegra, feita a uma testemunha ocular dos acontecimentos de Vale de Nobre e ferida durante os disparos. Tivemos a rara sorte de nos ser dado acesso a uma colecção de mais de uma centena de fotografias, propriedade do GDI da Câmara Municipal, preciosos e raros documentos, ajuda inestimável que vinham definitivamente ao encontro dos nossos propósitos.
O que nós pretendíamos era recolher testemunhos idóneos, isentos, claros, objectivos em suma, com o possível afastamento crítico, para podermos cumprir o nosso arriscado intento: relatar a trágica história desse fim-de-semana de 27 de Setembro de 1979. Vinte anos passados sobre a morte dos dois trabalhadores na Cooperativa Bento Gonçalves, em Vale Nobre, a 10 quilómetros de Montemor, o processo foi arquivado por falta de provas.
Se depois da leitura das linhas que se vão seguir, os mais velhos sentiram a memória mais fresca; se os mais novos ficaram a saber que a Revolução dos Cravos teve consequências imprevisíveis e houve quem pagasse com a própria vida os percalços dessa Revolução; se todos se consciencializaram que duas famílias ficaram destroçadas pela morte de um adolescente e de um adulto que caíram varados por balas, tombando por uma causa em que acreditavam; se conseguimos transmitir o nosso sentimento - porque os que escrevem nos jornais também sentem - de indignação porque ninguém ainda foi julgado por estes crimes, logo o nosso humilde desiderato foi cumprido.
E a história do último dia da vida de António Casquinha e José Geraldo Caravela começa, então, assim..."