domingo, 15 de novembro de 2020

Em mar alto

 
    

        Gostaria de escrever uma crónica diferente, talvez sobre os lugares comuns da nossa vida, os nossos amores e os nossos odiozinhos de estimação, sobre política local, sobre a Rua de Aviz, que continua e vai permanecer uma múmia, ou sobre o Castelo e os novíssimos acessos que fazem dele um monumento mais atraente e mais… acessível a todos. Mas não. As teclas que se disponibilizam por baixo destes dedos nervosos são estas que, neste momento, vão começar a produzir, preto no branco (posso usar esta expressão sem correr riscos de maior?), o que vão passar a ler, se assim o entenderem:

           Continuamos na dúvida e, tal como Sócrates (o grego), só sabemos que nada sabemos, nem sobre o presente, nem sobre o futuro das nossas incertas vidas (acho que isto é do Pessoa). Pois é, Maria José, a nossa triste existência continua em suspenso, enquanto suspensa sobre as nossas cabeças continuar a espada de Dâmocles de Siracusa (isto hoje é só cultura clássica, meus queridos 8 leitores!).  
        Todos nós, disseminadores e vítimas da pandemia, gostamos de ter uma palavra a dizer sobre os chineses, sobre o Covid-19, as decisões do Governo ou as opiniões de Marcelo, sempre tão assertivas e cristãs. Nesta linha de ideias, acabamos por sentir uma certa alegria, meio clandestina, é certo, porque há alvos que estão mesmo a jeito e é contra eles mesmos que lançamos, constantes e sérios, invectivas de especialistas na matéria – o Primeiro Ministro, a Ministra da Saúde, a Directora Geral da Saúde e, claro, Sua Majestade D. Marcelo II. Naturalmente que é deles a responsabilidade política do caos em que se tornou a nossa vida mas, se pensarmos bem, não são eles os únicos e verdadeiros culpados do lindo estado a que chegámos.
           Somos um país de gente linda, simpática, um bocadinho racista, vá, que não vai muito à bola com os ciganos, pronto, católica, na maioria, mas que raramente põe os pés numa igreja, enfim, fomos sempre assim, está-nos no sangue, e assim havemos de morrer. (E alguns, se calhar, de Covid.) Uma grande parte não vai à igreja (só para baptizar os putos e casar a juventude), mas acreditam que Deus, a Nossa Senhora de Fátima e a Santa Teresa de Ávila é que comandam isto tudo e possuem uma espécie de spray tipo mata-moscas que aplicam lá do alto dos Céus (Pffff! Pffff! Pffff!) e pumba, vírus morto e despachado. Isto leva-me a crer que é por isso que há meia-dúzia de fanáticos que, cheios de fé, não cumprem as regras impostas (impostas???) pelo Governo e contribuem seriamente para o afundamento do Sistema Nacional de Saúde e para o inevitável falecimento do país. 
        Indústria, comércio, restauração, tudo a fechar ou a despedir gente. Músicos, cantores, bandas, coros, actores, figurantes, cineastas, encenadores, bailarinos, coreógrafos, cenógrafos, técnicos de palco e de estúdio, sem tocar ou cantar uma única nota, sem filmar um só fotograma, sem recitar uma simples frase. E os políticos a ficarem cada vez mais desorientados, de dia para dia, de minuto para minuto, a fazer-lhes falta o dinheiro que enfiaram pelo Novo Banco acima e que, agora, caía que nem ginjas para ajudar os mais variados e aflitos sectores da nossa economia.  Contudo, se não confiarmos neles, vamos confiar em quem? É esta a questão que me incomoda, que me amofina, que me aborrece, que me exalta. Agora que o navio navega em mar alto, sem um porto à vista, não podemos lançar os comandantes aos tubarões, sob o risco de navegarmos sem rumo até ao naufrágio final.
        Daí o meu querer ainda confiar em quem toma decisões para tentar, se não controlar, pelo menos minimizar os estragos do flagelo que 2020 planeou para todos nós, com grande alegria dos fabricantes de máscaras, viseiras, zaragatoas e álcool-gel. Nessa altura, nos idos de Março, tudo parecia ainda tão razoavelmente bem que os próprios governantes foram fofinhos e acabaram por nos inspirar alguma confiança, de tal forma que muitos de nós começaram por não levar muito a sério esta ameaça. E eu, levado por algum optimismo e uma descrença de igual calibre, talvez tenha sido um deles.
         Pouco tempo depois desses iniciais momentos de encantamento (Eh! Vamos confiar! Em casa é que se está bem! Bora lá para tele-trabalho! Bora lá dar umas aulas pelo Teams!), tomei decisões que poderiam fazer a diferença, pelo menos assim pensei: evitar visitar família e amigos, evitar receber visitas de família e de amigos, cancelar ensaios dos coros que dirijo, deixar de ir a restaurantes, mas requisitar-lhes, sempre que possível, serviço de takeway, evitar momentos de grande afluência nos locais de compras, fazê-las em maior quantidade e com menos frequência, encher o depósito dos carros para ir menos vezes à bomba de gasolina, deixar de cumprimentar as pessoas usando contacto físico (nalguns casos, agradeci ao Covid!), usar máscara em todas as circunstâncias, desinfectar frequentemente as mãos e os objectos, evitar sair à rua e, muito importante, levar o agregado familiar a fazer o mesmo, ainda que, não poucas vezes, tenham sido os mais novos cá de casa a dar o exemplo.
        Conclui depois que a minha segurança e a dos meus não dependia só de mim. Se assim fosse, estaríamos seguros. E o que é facto é que nenhum de nós se sente seguro. Porque a nossa segurança passou a depender de meia-dúzia de mentecaptos que desafiam as regras a toda a prova sem se preocuparem minimamente com as consequências destes seus comportamentos irracionais e criminosos que põem em risco a sua vida e a vida dos outros. Se há eventos, acções, iniciativas que cumprem escrupulosamente as regras de segurança emitidas pelas autoridades, há outros tantos que deveriam ser impedidos ou interrompidos com uma intervenção muito, mas muito menos paternal do que aquelas que nós temos visto nos ecrãs das nossas nervosas televisões. Não me parece que haja outro tipo de solução.
         Contudo, não valerá a pena tal esforço muscular no momento presente. Essas medidas já não iriam a tempo de resolver o que quer que fosse. Porque, mais meia-dúzia de semanas, nos hospitais deste nosso país os responsáveis vão ter de decidir quem vai viver e quem vai morrer. Em grande parte, por causa desses totós que se julgam a última coca-cola do deserto… e por causa de um Estado paternalista que se atrasou a tomar as medidas certas e que, agora, continua a não actuar como deve. Ainda assim, neste momento, não há mais ninguém em quem confiar. E queremos continuar a acreditar que estão de boa-fé a tomar as medidas que julgam mais adequadas para libertar o país.
          A ver vamos.

João Luís Nabo
in "O Montemorense", Novembro de 2020

Distraídos crónicos...


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