quinta-feira, 16 de dezembro de 2021

O Natal do nosso descontentamento

 

          



1         

           Parece que a Justiça pôs a mão na consciência e decidiu oferecer uma prenda de Natal a alguns meliantes de colarinho branco do nosso país. Já consta que não avançam com mais ofertas para não chocar as famílias e os vizinhos de outros que tais porque, coitadinhos, se, na verdade, roubaram milhões e milhões ao povo, não o fizeram por mal. Nós sabemos: têm famílias numerosas e, como o subsídio da Segurança Social se atrasou um bocadinho, decidiram tratar do assunto para ninguém lá em casa morrer à fome.

Portugal continua um pântano. Um quintal cada vez mais mal frequentado, onde os maiores desgraçados morrem à fome, enquanto outros, que gozam descaradamente com todos nós, esperam que prescrevam todos crimes de que são acusados. O povo vai levando com estas detenções esporádicas pelos olhos dentro para deixar de pensar mal da Justiça, dos juízes e dos tribunais, que ainda têm muito que dar ao dedo até vermos a corja de bandidos toda enfiada na prisão.

Mas cuidado, ó cidadãos! Não se atrasem com o pagamento do IRS, nem do IMI, nem da água, nem da luz, nem do telefone, nem do gás. Nem das multas, nem da renda de casa, nem das prestações ao banco. Nem se atrevam a serem apanhados em excesso de velocidade ou ligeiramente sorridentes. Tudo isso é crime e serão condenados sem dó nem piedade pelos tribunais, pela opinião pública e pela vossa santa sogra que vos julgava o par ideal do seu rebento.

  2

Esta cena do Natal põe sempre os nervos em franja à Fofa, que tem este ano uma lista de pessoas que mais parece a lista dos inscritos nas Festas do Avante ou nas Celebrações de Fátima. Rapinei-lhe as cinco folhas A4 recentemente e contei, no mínimo, 150 convivas para o almoço de Natal. Com este pequeno problema do Covid, isto é que a enerva, nem sabe ainda o que vai fazer à vida. “E se comprássemos testes para todos fazerem à porta da nossa casa, antes de abancarem à frente do peru? E será que todos querem fazer?”, perguntou-me ela, cheia de esperança numa reacção de bonomia. Olhei para ela, pus o filme na pausa, o “Sozinho em Casa 134”, e esperei que ela desenvolvesse a ideia. O Balú, sentindo de repente este silêncio cheio de tensão, arrebitou a orelha direita, depois a esquerda, depois baixou a direita e a seguir a esquerda e voltou a adormecer com uma espécie de sorriso no focinho, que é como quem diz “Vais ter de dar uma resposta, meu menino!”.

Mas não dei, porque como todos os meus amigos homens sabem, só podemos dar sequência aos desafios das nossas mulheres se continuarmos na mesma linha, sempre concordando e nunca saindo do caminho previsto. Com a Fofa é o mesmo. Olhei para ela e disse-lhe numa voz que aparentava tranquilidade: “Sim, filhinha!”, um truque que aprendi com o meu saudoso sogro. (Digo sempre isto quando sou obrigado a dar opiniões com alguma profundidade.) Ela sorriu e desatou a enviar mensagens pelo Whatsapp, ou lá como se chama essa coisa que ela usa, a convidar família, amigos e vizinhos como se não houvesse amanhã.

Serenamente, levantei-me, peguei no telefone e liguei para o primeiro-ministro: “António! Ainda tens tempo para decretar um novo estado de emergência? Sim? Ah, é com o Marcelo? Vais falar com ele? Eu espero…”

Cinco minutos depois, vi passar no rodapé da CNN Portugal (um canal 100% nacional): “Festas familiares com mais de três elementos expressamente proibidas pelo Governo.” A organizadora de eventos que vive comigo entrou na sala, assarapantada, e atirou-me: “A minha irmã telefonou-me e disse-me para ligar aquele canal português, a CNN. O que é que se passa?” Segundos depois, uma lágrima, pequena, é certo, corria tímida mas intensa pela sua bochechinha abaixo. Peguei num lenço de seda, branco com borboletas cinza, e limpei aquela pungente manifestação de dor e de desalento. Secretamente, sorri, e o Balú deu-me um toque discreto com a pata no joelho.

  3

 Nunca vivemos antes uma incerteza assim. Quando tudo parece voltar à normalidade, logo há uma nova variante do vírus que atira com tudo de pantanas. Há quem diga que, se o Vice-Almirante Gouveia e Melo tivesse continuado a liderar o processo de vacinação, este tal Ómicron não se teria atrevido a entrar no nosso país. Outros acham que a directora geral é muito fofinha e que isso veio facilitar a propagação desta nova estirpe. Sem querer dar razão a ninguém, cá em casa continuamos com os cuidados todos, sem permitirmos grande margem de manobra a esse tal novo visitante. Ainda ontem conversávamos sobre isto, já na cama, antes de dormir. “Temos de continuar a ser cuidadosos e conscientes, não achas, mô?”, perguntou-me ela. “Sim, filhinha”, respondi, com ar sério. Depois, ajeitei a máscara cirúrgica, que me tinha sobrado do último concerto do Coral de São Domingos, virei-me para o outro lado e adormeci.

  4

Apesar da pandemia e da insegurança em que vivemos, Montemor nunca esteve tão natalício como este ano. E isso é importante, embora haja quem diga que o dinheirão desta despesa devesse ter sido canalizado para ajudar quem precisa. Não discordo. Contudo, esse assunto poderá ser discutido noutra altura. Agora, o que me apraz dizer é que Montemor está a viver o Natal como nunca viveu antes, sobretudo as crianças, com toda a decoração que lhes é direccionada. O que se torna engraçado no meio disto tudo é o duelo de palavras entre alguns simpatizantes comunistas e alguns simpatizantes socialistas sobre a paternidade desta iniciativa. “Com o novo executivo, as coisas começam a estar diferentes, até os enfeites de Natal”, começam uns. “Não sejam totós!”, dizem outros. “Isto foi programado e orçamentado pelo executivo anterior!” (E não deixam de ter razão.)

E pergunto eu: o que é que isso interessa? Está bonito e ponto final.


João Luís Nabo

In "O Montemorense". Dezembro de 2021

 

Boas Festas! 

Distraídos crónicos...


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