quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

Toca o sino...

 

  


I

Toca o sino…

 

…pequenino, sino de Belém. Há dois milénios que se celebra o nascimento da figura mais carismática da História e a que, talvez, mais conflitos tenha provocado, de forma involuntária, é certo, mas devido à maneira oportunista como os homens têm vindo a querer interpretar a sua mensagem.

Assumidamente interessado em temas ligados às religiões, e descontraidamente agnóstico, revejo na figura de Jesus a imagem dos homens bons, que lutam pela justiça, que dão o peito às balas, que rejeitam os bens materiais e que amam o próximo nos seus amigos e nas suas famílias, sem quaisquer interesses secundários. Contudo, o exemplo dado pela Criança que (re)nasce agora raramente foi seguido por muitos dos que o admiram e adoram e o colocam em tronos de ouro e forrados a pedrarias. Porque… admirar é uma coisa, aplaudir o seu exemplo é de bom tom, mas seguir literalmente os seus ensinamentos e as suas propostas… isso já é outra coisa muito diferente. Daí termos assistido, ao longo dos tempos, aos maiores crimes e aos insultos mais descarados ao Menino de Belém, ao Cristo do Gólgota, sacrificado pelos Seus contemporâneos e pelos que haviam de vir.

O desejo, a ganância, a luxúria, o orgulho, a inveja, a ambição desmedida, o poder, a possibilidade de dominar os mais fracos… são conceitos e práticas que nem por isso estão longe do quotidiano de muitos de nós e sem os quais muitos de nós não saberiam viver. É o que é. É o que manda a natureza humana. E quem somos nós para contrariar a natureza humana?

E Cristo? Cristo não era deste mundo.    

 

 II

Toca o sino…


…a rebate, como alerta das mil tragédias que o mundo enfrenta. A rebate, clamando ajuda de quem pode e de quem quer. A rebate, porque é tempo de urgência, de medo e de angústias que nenhum Natal consegue anular, que nenhuma oração consegue aliviar. Incêndios, inundações, derrocadas, bombardeamentos, explosões… O sino, imparável,  soa através do planeta, de Norte a Sul, de Oriente a Ocidente. Puxado por mãos invisíveis de milhões em fila, perdidos, em pânico, sem casa, sem família, prestes a perderem a vida. O que falta para que o sino, insistente e desesperado, seja finalmente ouvido?

O choro das crianças, das mães e dos velhos soam mais alto do que as mais belas canções de Natal que vamos ouvindo por aí, e têm mais substância do que qualquer poema que fala da estrela de Belém, dos pastores, das ovelhas e má-na-sê-quê. Então, o que falta para que o sino ressoe nas mentes e nos corações dos poderosos que comandam os nossos dias?  Serão necessárias mais cimeiras, mais reuniões, mais debates, mais discursos, mais apelos? Não. Bom senso. É só isso que falta. Bom senso e sentido de humanidade.

 

III

Por quem os sinos dobram…[1]

         Toca o sino, dolente e compassado, acompanhando o passo de quem se despede definitivamente de quem amou em vida e vai continuar a amar depois da morte. São milhares os seres humanos como nós que, na Europa e no Médio Oriente, morrem todos os dias, sem nada poderem fazer contra os senhores da guerra. O desespero dos sobreviventes aumenta quando percebem que os que têm poder para terminar os conflitos não querem fazê-lo porque há interesses superiores que comandam as suas decisões. Russos, ucranianos, palestinianos, israelitas pesam o mesmo na balança da vida – têm famílias, amigos, bens, e tinham um futuro. Nós, por cá, e apesar dos políticos que nos têm governado, ainda vamos tendo esperança em dias melhores e sentimos algum alívio pela distância que nos separa desses conflitos sanguinários. Se os sinos dobram por eles, um dia poderão dobrar por nós, como dizia o poeta. E aí, como escreveu um senhor chamado Brecht, já não poderemos fazer nada.

               

IV

Toca o sininho…

 

… pequenininho, do tamanho de algumas gaivotas que ainda não perceberam que a vida é muito mais do que uma imagem. A vida, essa coisa bela e abstracta, passa por nós tão rapidamente que, se não estivermos atentos, acabamos por nem dar por coisa nenhuma… Apenas porque passámos uma parte dela a admirar a nossa imagem no espelho.

                Bom Natal!

João Luís Nabo

In "O Montemorense", Dezembro 2023



[1] John Donne & Ernest Hemingway

segunda-feira, 13 de novembro de 2023

Três de três

 


                                                                                  


I

De partida

 

            Em quase cinquenta anos de regime democrático (umas vezes mais, outras vezes menos), nunca se viu coisa assim. Mesmo quem nutra alguma simpatia por este ou por aquele político, por motivos menos racionais, claro, ficou recentemente desprovido de qualquer gota de paciência para aceitar a catadupa de acontecimentos vergonhosos que invadiu as televisões e os jornais e, consequentemente, o nosso dia-a-dia, protagonizados pelo Primeiro-ministro, pelo ministro Galamba, pelos amiguchos do Costa, pelo Presidente da República, cada vez menos capaz de gerir a crise, pelo Governador do Banco de Portugal e, provavelmente, por outros amiguinhos que, de menor importância, não merecem ter o nome nos cabeçalhos das notícias.

            Porque todos nós sabemos o que aconteceu, não se justifica gastar o meu e o tempo dos meus 8 leitores (9, peço desculpa) a recordar as figuras tristes e comprometedoras desses indivíduos que governam esta terra de tantos santos e de muitos mais heróis (nós, os contribuintes). Resta, na verdade, deixar a reflexão e perguntar se, no Governo, está tudo maluco e quebradiço, ou se Portugal e os portugueses não merecem o mínimo respeito vindo dessa gentinha que, cada vez mais, mostra as suas verdadeiras ambições: o Poder, não para governar, mas para a distribuição de favores, para a criação de grupos secretos e conluios e conspirações, envolvendo negócios de milhões e sacos de dinheiro com uns trocados a servirem de marcadores de livros.

            Se não mudarem os políticos (e não antevejo melhoras no horizonte), mudo eu de nação. E é já em Janeiro. (Alguém quer boleia?)

 

 

II

De regresso

 

Dizem que não se deve voltar aos sítios onde se foi feliz. Tenho dificuldade em concordar com este aforismo, já transformado num cliché cediço e sem piada nenhuma. Todos sabemos que há lugares que, revisitados, nos podem reacender essa felicidade, já um pouco distante no tempo.

O meu novo livro, a ser lançado em breve, é um conjunto de vinte e quatro contos escritos no Verão de 2022, um pouco por esse Alentejo, nosso e muito nosso. Regressei, recentemente, por breves instantes, a Vila Viçosa, vila branca e com lugar cativo na História e na Literatura de Portugal. Nela escrevi “O Grito do Falcão” e “O Ajuste de Contas”, duas das histórias desse livrinho quase maldito. A esplanada, na Praça da República, extensa no seu rectângulo ajardinado, estava vazia e as mesas e cadeiras empilhadas à espera de melhor tempo. Contudo, e ainda assim, consegui respirar o mesmo ar que por ali circulava naqueles dois dias quentes de Agosto, um para cada conto, comigo agarrado à solidão das palavras, mas rodeado sempre por muita gente, alguns estrangeiros, outros habitantes da vila, que vinham tomar o seu café matinal, olhando para mim, primeiro com desconfiança, depois com um certo ar de benevolência.

Neste exercício de memória, senti também um outro tipo de felicidade: o de perceber que, muito provavelmente, sem este cenário monumental, sem os sons das vozes, as cores dos fatos de Verão que me invadiram os sentidos naquelas manhãs, as histórias teriam sido outras ou, provavelmente, nem sequer tinham existido.  

Pois o livro, que poderá estar em breve nas vossas mãos, é sobre Vila Nova, escrito aqui, em Montemor, e também em terras mais distantes, como Vila Viçosa, Alandroal, Santiago Maior, Monte do Trigo e, até, imaginem, Porto Covo. Acreditem, caros leitores, que tais excursões literárias, feitas por outros imperativos, só serviram para comprovar a teoria de muitos de nós sobre a terra que nos viu nascer: quanto mais afastados de Vila Nova, tanto mais próximos nos sentimos dela, a ponto de, à distância, com um olhar mais apurado, lhe entrarmos no coração e conseguirmos revelar os mistérios, os comportamentos, as decisões, as angústias, os conflitos, as devassidões, os pecados, os segredos de alguns dos seus extraordinários habitantes.

 

Aproveito para agradecer à equipa que me acompanhou e aconselhou até à entrada do manuscrito na editora: Fernando Mão de Ferro, Helena Gil e Raquel Ferreira (Edições Colibri), Manuel Filipe Vieira (revisão do texto), Pedro Coelho (autor do prefácio), Ricardo Feijão (foto da capa) e Tânia Grafino (designer).

Afinal o “eu” transforma-se em “nós”. Porque os amigos também são para estas ocasiões.

 

 

III

Para fechar

 

É só mesmo para isso: para fechar o Cloreto deste mês. Não me sinto muito confortável quando o texto só tem duas partes. Não é lógico, não é triangularmente saudável, não é simbólico (como nos contos de fadas), não é bíblico. É por isso que, meus amigos, estão a ler estas breves linhas, pensando que iam defrontar-se com mais umas frases daquelas para fazer pensar. De qualquer modo, ficamos mais seguros sabendo que entre o um e o três há o dois. Porque, só assim, o dois, amparado pelos amigos (ao contrário de Costa), faz todo sentido. Aqui e em toda a parte.  

João Luís Brejo Nabo

In "O Montemorense", Novembro de 2023

segunda-feira, 9 de outubro de 2023

Notas sobre pessoas boas

 


 (Foto: Luís Marinho)

           

            

Nota prévia

 

Gosto, sempre gostei, de escrever sobre pessoas, sobretudo sobre aquelas que fazem a diferença e que existem para fazer da vida à sua volta um espaço de luz, de esperança e de reflexão. Por vezes, não resisto, perante tantas atrocidades, em referir os que nos prejudicam como cidadãos com direitos, como seres humanos com sentimentos e família. Não lhes perdoo os dislates, as figurinhas, os disparates, as mentiras e a manipulação que fazem dos nossos dias. Neste espaço de liberdade, hoje, o caso é outro. São pessoas que se cruzaram, ou ainda cruzam, comigo, com quem partilhei conhecimentos, de quem recebi lições de vida, de juventude e de confiança no futuro, independentemente da idade destes meus protagonistas de hoje.

 

Nota um – Guilherme

 

            Há falta de professores. Há centenas de alunos sem aulas.

Esteve há pouco tempo em minha casa um meu ex-aluno que ingressou este ano na Faculdade de Letras de Lisboa, a minha alma mater, e que me disse: “Quero ser professor. Professor de Inglês.” Noutras alturas, perante esta confissão, ter-lhe-ia dito para pensar noutra profissão, porque o ensino não está fácil para quem inicia a sua carreira nos tempos que correm ou para quem a vai começar nos tempos mais próximos. Desta vez, e perante esta manifestação de interesses vinda de um jovem como o Guilherme, estremeci, não de preocupação, mas de ânimo e de algum alívio.

            O Ministério da Educação quer pôr nas escolas pessoas formadas em qualquer área para suprir a dramática falta de docentes, por um lado, devido ao crescente número de professores que se aposentaram e, por outro, porque esta carreira deixou de ser aliciante devido à enorme carga de burocracia que a tutela nos obriga a dominar para podermos ser professores. O conhecimento e a transmissão desse conhecimento deixou de ser o grande foco de muitos professores. Projectos, actividades fora da sala de aula, prolongadas visitas de estudo, Erasmus a dar com um pau, isso é que passou a ser importante e a dar visibilidade aos intervenientes. É tudo de grande utilidade, é verdade, mas ainda é na sala de aula onde tudo de mais importante acontece. Na minha opinião, claro, que não é a opinião de muitos.

            Quando o Guilherme me confidenciou que queria ser professor de Inglês, comecei a pensar que precisamos de muitos guilhermes que, como este meu ex-aluno (e, agora, colega de curso), venham afirmar, com honra e um brilho nos olhos, que o ensino é mesmo a sua paixão e que querem aprender agora para poderem ensinar, mais dia menos dia, numa escola qualquer deste país, a precisar urgentemente de gente nova, saudável, arejada e apaixonada… como o Guilherme.

 

Nota dois – Manuel

 

Partiu o Senhor Manuel Parreirinha, repositório de mil histórias que contou e ouviu, enquanto cortou o cabelo e fez a barba a centenas de clientes e amigos, na sua pequena barbearia, na nossa Rua de Aviz. Lutou contra várias adversidades da vida, que lhe interromperam a rotina e a relação com os clientes, mas regressou sempre mais forte e mais conversador. Esteve entre a vida e a morte, perdeu a sua querida Jacinta, saltou barreiras, fez maratonas, deu vida à terra inculta que, agora, o recebeu.

Inteligente, perspicaz, crítico, era um defensor acérrimo da família e dos amigos, dos vizinhos e dos clientes. Foi meu barbeiro durante mais de 30 anos. Falávamos de tudo um pouco, até de temas considerados tabu pela maioria dos seres pensantes. Mas com ele não havia conversas proibidas. Os meus temas preferidos eram, invariavelmente, a minha família, os meus filhos e o meu pai. O meu Pai a quem ele tecia os maiores elogios, como homem, como trabalhador e como amigo dos amigos. Assim como ele, barbeiro de carreira e com algumas cadeiras de Psicologia roubadas à magana da vida.  "Vai haver concerto, não é verdade?", perguntava-me quando lhe aparecia na loja de surpresa. "É verdade, Sr. Manel, temos de pôr o público ao rubro!" Ele ria-se, generoso, sábio e paciente. "Vou fazer-lhe um corte que vai ser um mimo."

Em Julho, pedia-lhe sempre que me fizesse um pente dois. “Pente dois? Está a falar a sério?” E, depois, ficava em silêncio. Um pente dois não lhe permitia mostrar a sua arte de barbeiro. Retomava a conversa quando, com mestria, me aparava a barba para me colocar aquele Denim activo e provocador que me deixava sempre meio entontecido.

Vou sentir a sua falta. A sua voz ficará para sempre na minha memória e, quando um destes dias, passar pela barbearia, vou olhar lá para dentro e sussurrar, como que numa espécie de oração: "Senhor Manel, tenho concerto com o Coral de São Domingos no próximo Sábado!"  Sei qual é a resposta que vou guardar para sempre comigo: “Vou fazer-lhe um corte que vai ser um mimo!”

 

Nota três – Carlos

 

            A sua loucura é contagiante. A sua persistência é irritante. O seu talento é inegável. O Carlos Marques, da Trimagisto, não resistiu mais e decidiu convidar-me para participar num dos seus projectos artísticos. Antes de aceitar, hesitei… porque não me sabia à altura das suas exigências como “patrão”. Naturalmente que não vou aqui deixar cair o pano (literalmente) e revelar o que vem aí. Serve esta nota, apenas e só, para dar palco (literalmente) a um actor/músico/produtor/escritor/e tudo, natural de Montemor e que tem na sua carreira (já um pouco estendida) duas criações que se lhe colam à pele e que não o largarão tão cedo: a Festa dos Contos, este ano na sua 13ª edição, e o Levantei-me do Chão, uma das mais conseguidas homenagens a José Saramago que eu já tive a oportunidade de conhecer.

            Em cada espectáculo, quase sempre intimista mas denso, o Carlos transforma-se (transfigura-se) e mostra-nos o homem da luta, o leitor, o perguntador, o apontador de destinos indizíveis, o feiticeiro misterioso que usa a sua poção mágica feita de palavras para pôr o dedo na(s) ferida(s) de cada um de nós e de todos em conjunto, de modo a obrigar-nos, com aquela sua teimosia simpática, a aceitarmos que somos pecadores e que necessitamos urgentemente de soluções para a nossa vida.

            O que aí vem será mais um momento surpreendente do uso da palavra para iluminar as mentes adormecidas. Estamos juntos. 

João Luís Nabo

In "O Montemorense", Outubro 2023

terça-feira, 12 de setembro de 2023

Duas notas breves

 




Francisco

 

Muito se escreveu sobre a vinda do Papa Francisco a Portugal e sobre a Jornada Mundial da Juventude. Já muito se tinha escrito sobre o Papa Francisco e sobre o dedo que ele começou a pôr nas feridas da Igreja, logo no início do seu pontificado. Veio, logo que foi eleito, parece-nos, escancarar a porta que João Paulo II tinha deixado entreaberta. Meio disfarçados até então, os escândalos de pedofilia no seio da Igreja são assumidos sem meias tintas e condenados por Bergoglio, que quer justiça para as vítimas e duras penas para os que vierem a ser condenados.

Mas não foi apenas com estes casos que o seu tempo na cadeira de Pedro se tem revelado inspirador e profícuo. A sua forma de entender os evangelhos, reescrevendo-os sempre que se pronuncia sobre a vida de todos nós, crentes e não crentes, mostra-nos que o tempo, as leis, as mentalidades no tempo de Cristo, e nos séculos antes da Sua vinda, não se podem aplicar e serem entendidos da mesma forma, à luz deste século XXI, que corre vertiginoso ao nosso lado. Francisco transformou o Deus Todo-Poderoso e vingativo do Antigo Testamento num Pai compreensivo e tolerante que eu não conheci quando, criança, andava na catequese. O Deus castigador, que, qual Big Brother de Orwell, andava sempre de olho nas nossas acções, nos nossos pensamentos e nos nossos desejos, é hoje, nas palavras de Francisco, um Pai que, como todos os bons pais, aceita todos os seus filhos, por muito desviados que possam andar dos caminhos que a Igreja decidiu classificar como os caminhos do Bem.

Se o Papa Francisco fosse Deus, personalizado e livre de todos os insondáveis mistérios com que, ao longo dos séculos, os homens da Igreja O cobriram, eu repensaria as minhas opções de fé e reformularia as minhas vivências espirituais. Mas enquanto na Igreja não houver uma real e generalizada prática dos ensinamentos deste verdadeiro homem de Deus… continuarei a admirá-lo, a defendê-lo e a seguir o seu pensamento… mas do lado de fora. 

 

António e Marcelo

 

            Portugal, esta nossa pátria “muito amada”, é um país sem rumo e sem políticos capazes de fazerem deste pequeno território um exemplo perante todos os outros do planeta: a economia está exponencialmente… a estagnar. As fábricas ficam sem matérias-primas para os seus produtos. Os combustíveis aumentam, assim como o preço de tudo o que deles depende: bens alimentares, luz, gás... Os professores continuam a lutar pelos seus direitos, porque nunca, em tempo algum, no decorrer desta democracia, trataram tão mal uma das classes profissionais mais importantes e imprescindíveis à nossa sobrevivência. Os médicos do Serviço Nacional de Saúde continuam mal pagos e desrespeitados pelas tutelas. Os doentes fazem fila nos centros de saúde sem saberem se são ou não consultados pelo seu médico de família. As reformas de grande parte dos portugueses não são suficientes para as despesas da casa e ainda mais para os medicamentos e outras emergências. Os estudantes universitários conquistam com o seu esforço um lugar nas universidades mas, depois, os pais não têm dinheiro para o alojamento e para as propinas. Há cérebros enormes e utilíssimos ao país que são obrigados a ir embora para outras paragens onde o seu valor seja verdadeiramente reconhecido. As bolsas e os financiamentos de projectos de investigação são interrompidos nas universidades portuguesas sem se saber os motivos. Os montes e vales deste país estão queimados pelos fogos de Verão, que se repetem anualmente com consequências gravíssimas para tudo o que é ser vivo. As barragens e as albufeiras, os rios, os ribeiros, as reservas de água, estão a deixar ver o fundo, com resultados nefastos para a agricultura, pecuária e consumo humano. Continuam a viver e a dormir na rua, nas grandes cidades do país, independentemente das estações do ano, centenas e centenas de sem-abrigo, sem comida, sem dinheiro, sem tecto, sem futuro, muitos deles vítimas das políticas de habitação e de emprego que atiram para a rua quem, até então, tinha uma vida digna e razoavelmente feliz. (Põe-se um Presidente da República a distribuir sopa aos pobrezinhos, como se isso fosse a solução certa para resolver o problema.) Alimenta-se uma guerra no centro da Europa, respeitando os protocolos de auxílio e outras cenas impostas pela Nato, colocando o país à mercê de um míssil mal-parado do senhor Putin, que poderá atingir, quer a Ponte sobre o Tejo, quer o Castelo de Montemor. Figurões nacionais fazem figurinhas tristes em cenários de guerra, quando deveriam estar preocupados com o que se passa no seu próprio país. A extrema-direita portuguesa continua a ganhar terreno, não devido a mérito próprio mas pelo demérito da esquerda, que continua dividida e orgulhosa e a permitir que, aos poucos, tudo regresse ao que estava, enquanto caminhamos vertiginosamente para o cinquentenário do 25 de Abril.

            Tudo isto poderia ser resolvido, com tempo e com empenho. A questão é que os nossos políticos não têm nem uma coisa nem outra. Há escândalos nos gabinetes ministeriais, há gatunos à solta, a gozarem com o Zé Povinho, que já nem sequer tem força para lhes fazer um manguito. Os ricos aumentam de número e os pobres também. Mais explicações para quê?

Muitos de nós, patrióticos e amantes deste território que já foi de tantos estrangeiros, começamos a ficar cansados de sermos portugueses. Sobretudo quando o assunto nas televisões é, de manhã à noite, o amuo do nosso Primeiro-ministro no Conselho de Estado.

João Luís Brejo Nabo

In "O Montemorense", Setembro de 2023 


sexta-feira, 14 de julho de 2023

Antes de férias

 

 



O Piano do Tio Johnny

          Tenho um piano desde os meus dezoito anos. Foi, e é ainda, uma das minhas grandes paixões. Não apenas pela música que ele me tem permitido tocar nestas quatro décadas e meia, mas pela sua história e pelo espaço que tal instrumento foi conquistando na família.

Segundo umas investigações do meu amigo Ulf Ding, extraordinário pianista e construtor/afinador de pianos, o meu é de 1935, vencedor de vários concursos, e, calculem, foi de viagem até ao Brasil, de barco, onde passou uma temporada para, depois, regressar a Portugal onde o fui encontrar, numa propriedade perto de Coruche. O meu pai, sempre presente na minha vida, ao testemunhar (a princípio, um bocadinho contrariado) a minha paixão pela música, decidiu oferecer-me aquele instrumento, pressionado também pela minha querida professora de piano, Isabel Joaquina da Cruz, que lhe disse que sim, que valia apena o miúdo continuar a estudar a bela arte dos sons.

E assim foi. Feito o negócio com o proprietário, serviu de prolongada companhia à minha Mãe, também sempre na minha memória, e aos meus queridos vizinhos Toneca, Custódio, Jorge e Custódia Maria Cachola (a primeira pequena cantora que eu acompanhei ao piano) que, no nosso querido Bairro de São Pedro, dificilmente se desabituaram dos sons diários, quando me casei e trouxe aquele tesouro para a minha casa nova, na parte alta da Vila.

Ficou por ali um vazio. E ficou cheia a minha casa nova. E mais cheia ficou com o nascimento dos meus três filhos, que se habituaram a ver e a ouvir o pai a tocar todos ou quase todos os dias. Com eles, começou a praticar-se cá em casa uma Praxe muito simples, quase um ritual, porque isto da música é uma religião e os músicos são os seus sacerdotes: todas as crianças nascidas na família teriam de passar uns bons momentos a explorar o teclado do piano, a descobrir sons, melodias, dissonâncias, conforme a força e a agilidade dos seus dedinhos pequenininhos e rechonchudos. O João, a Joana e o Pedro foram os primeiros candidatos a pianistas sem, contudo, termos conseguido esse desiderato. Deram outros voos, igualmente extraordinários.

Depois, começaram a sentar-se naquele banco, para além da filharada, os sobrinhos, o Ricardo Romeiras, o João Pedro, a Marianinha e, mais tarde, os filhos dos sobrinhos, o Duarte, a Carminho, a Benedita… Também amigos e os filhos deles… Outros passaram por ali, de forma mais séria e cheia de compromisso, não foi Pedro, Paulo, Vera e Francisco? Até amigos adultos e sem tacto nenhum para a música se sentaram naquele banco e se divertiram a brincar com os sons… (A Sónia, o Ricardo e o Luís são exemplos disso mesmo, ainda que contrariem, hoje e sempre, a minha análise.)

E hoje, quando há uma ou outra visita da miudagem, quase todos apontam para o alto da escada e pedem para ir tocar no velho piano que a todos hipnotiza. E os que não vêm cá a casa, passam pela Igreja da Misericórdia com os pais-cantores, onde, minutos antes do início do ensaio do Coral de São Domingos, há sempre um bocadinho delicioso para estudar uma nova melodia com a pequenada e ver as mãos do Gustavo, do Tiago, do Dinis e do Jaiminho, pequeninas mas cada vez mais soltas e ousadas.

                                                 

                                      Segredos de Vila Nova

 Este subtítulo deveria estar escrito entre aspas. Porque é o nome de uma colecção de história inimagináveis e com finais absolutamente inesperados que me foram passando pela cabeça no último ano. Algum dos meus oito leitores tem segredos? Daqueles contados por amigos do peito e a quem prometeram nunca revelar a ninguém? Pois, também o autor do livro entrou de posse de vinte e quatro segredos e acabou por transformá-los noutras tantas histórias que o leitor irá explorar, tentando descobrir qual é o segredo mais próximo do seu. O livrinho está neste momento em fase de revisões, a capa já está definida e trabalhada e, lá para Outubro ou Novembro, ficarão todos a saber quais são os “Segredos de Vila Nova”. Não se esqueça: um pode ser o seu. O prefácio foi escrito pelo meu amigo, jornalista e professor universitário, Pedro Coelho. Fica aqui a sinopse para aguçar o apetite aos meus leitores mais fervorosos:  

 Vila Nova tem segredos das mais variadas espécies e origens, que muitos dos seus habitantes conhecem sem, no entanto, sentirem coragem suficiente para os revelar. O receio das consequências deste seu acto de bravura confunde-se com o medo provocado pelo vidro de que são feitos os seus próprios telhados.

São histórias de épocas diferentes, nas quais desfilam largas dezenas de personagens que, aos poucos, conduzem o leitor ao conto derradeiro, o último e definitivo, onde um segredo de uma amplitude muito maior é, finalmente, revelado.

Vamos, então, ler sobre os vícios e as virtudes, as traições e as lealdades, a vida e a morte, os ódios e as paixões avassaladoras de quem vive numa terra como esta, nesta Vila Nova, tão bela à distância mas tão perversa quando dela nos aproximamos.”

 As Edições Colibri e o Fernando, meu editor, continuam, inexplicavelmente, a acreditar em mim.

Boas Férias.

Nota importante: Se estava à espera que eu fosse escrever sobre o Banquete Manuelino… enganou-se. Antes de férias, só consigo escrever sobre coisas descomplicadas... e fofinhas.


João Luís Nabo

In "O Montemorense", Julho de 2023

terça-feira, 13 de junho de 2023

Continuamos absurdamente à espera de Godot[1]


 

Este ano lectivo foi tão atípico como os anteriores, em que nos tivemos de fechar em casa e dar aulas à distância a alunos que, muitas vezes, estariam a fazer outras coisas em vez de aprenderem o pouco que tentávamos ensinar, ainda que contra todas as expectativas. Hoje, falamos sobretudo dos professores e das greves, repetidas, insistentes, incómodas, mas justas.

Os professores nunca foram devidamente respeitados pelos diferentes governos que se sucederam no pós-25 de Abril. Com a chegada de Manuela Ferreira Leite ao Ministério da Educação, em 1993, tudo se começou a desmoronar. Mais tarde, veio Maria de Lurdes Rodrigues lançar as sementes para uma guerra terrível entre professores titulares e não titulares, com colegas a avaliarem colegas, assumindo esse acto “oficial”, não raras vezes, uma acção de ajuste de contas pelos mais diversos, e quase sempre, comezinhos motivos. Os governos anteriores a este, que, pelos vistos, ainda respira, dividiram os professores, que se começaram a encarar uns aos outros como inimigos, rivais ou outra coisa qualquer, e não como colegas.

Pois temos de agradecer a Costa e aos ministros da educação dos seus governos o facto nobre e inegável de terem unido os professores que, com objectivos mais concretos e mais profundos do que as habituais exigências de aumento de salário (não menos legítimas e justas), decidiram que teriam, agora ou nunca, a oportunidade para reclamar o respeito, a importância e a autoridade que lhes foram tiradas. (Abro um parênteses para me declarar absolutamente contra aquela manifestaçãozinha contra o primeiro-ministro, no passado dia 10 de Junho, acção que me envergonhou por ver ali colegas meus numa atitude de desafio infantil e de absoluto desrespeito por um membro do Governo, com gritos e cartazes que só fizeram a opinião pública e os comentadores virarem-se contra nós. Como diria o outro, não havia necessidade.)

 E os alunos? Não, não me esqueci dos alunos. Eles continuam, apesar de tudo, a ser os principais responsáveis por esta paixão que ainda continua acesa, embora diminua de vez em quando, sem, contudo, se apagar ainda. Os alunos foram os principais prejudicados com as greves. E arrastaram as respectivas famílias, que se viram aflitas para solucionar as dinâmicas familiares com tantos “filhos” sem aulas. Costa lembrou-se dos serviços mínimos e com eles a obrigatoriedade de cumprirmos os nossos horários sem possibilidade de exercermos o nosso direito à greve. Nunca concordei com este tipo de recurso, a não ser quando se trate de questões de saúde ou de segurança pública ou nacional.

Mas, se analisarmos bem, estes serviços mínimos, lançados para cima dos professores, já tinham sido decretados, há vários anos, em relação aos próprios alunos. Não estão a perceber onde quero chegar? Eu explico: os alunos, hoje, nas nossas escolas, para passarem de ano, basta cumprirem os serviços mínimos. Podem chegar atrasados às aulas sem serem devidamente penalizados… porque o sistema não o permite; têm classificações negativas devido à sua falta de interesse pelas disciplinas ou à sua manifesta falta de vontade de estudar, mas é de todo conveniente não ficarem retidos, por motivos para cuja enumeração não há aqui espaço suficiente; os alunos  levam livros para a escola, muitos deles têm livros em casa ou nas bibliotecas, mas esquecem-se de que os livros têm folhas e palavras e imagens que estão lá para serem lidas e analisadas.

Toda esta descontração em que o sistema escolar navega permite-lhes ir passando de ano sem a preparação necessária e suficiente para estruturarem a sua forma de pensar, de raciocinar, de discutir, de articular, de serem críticos perante a sociedade que os irá, em breve, selvaticamente engolir. Isto porque grande parte dos alunos de hoje não têm opiniões concretas sobre coisa nenhuma, não querem tê-las e não querem ouvir quem queira ensiná-los a pensar e a ver com todas as cores o mundo que os rodeia; eles não lêem, não vêem nem ouvem debates, não assistem a noticiários e perdem todos os dias a oportunidade de aprender a conhecer-se a si próprios, como seres pensantes e (re)activos. Depois, há as excepções (e, na escola onde trabalho, esse número é, felizmente, elevado) que, por isso mesmo, não têm lugar neste texto.

O que ainda é mais grave é que uma parte deles pensa que os pais vão viver para sempre e que nunca precisarão de trabalhar ou de chegar a horas ao emprego, ou de respeitar os colegas e os seus superiores hierárquicos. E tudo isto porquê? Porque o sistema o permite. O professor está limitado de tal forma nas suas acções que, se o aluno reprova, a culpa nunca será da criança. Isto, porque o docente não pode utilizar atitudes mais frontais para pôr no devido lugar os mais distraídos da vida. Esta situação leva muitos professores a reger a sua prática lectiva com base numa máxima simples e cuja eficácia deixa muito a desejar: “Se o sistema nos persegue e nos obriga a passar os alunos, então não cansemos o sistema e passêmo-los logo sem hesitar”. Isto, mesmo que o seu trabalho ao longo do ano lectivo tenha sido, quase exclusivamente, fazer directos, publicar fotos, pôr likes e corações fofinhos nas publicações dos amigos, exercitar os polegares no teclado do telemóvel, passar horas a idolatrar ídolos de pés de barro que, no Youtube, no Instagram ou no TikTok os provocam, os desafiam, os hipnotizam e enganam.

E o que faz a Escola Pública para resolver todas estas questões, cada vez mais prolongadas no tempo, relacionadas com a desmotivação de alunos e professores? Nada.

 Estou a caminhar a passos largos para o fim da minha carreira como professor. Depois de tantos anos de profissão, devo confessar que nunca me senti tão desiludido e triste como agora. Ainda assim, vou continuar a investir nos alunos que ainda terei à minha frente. Continuo apaixonado pela essência do processo e pela nobreza que ilumina o acto da transmissão de conhecimentos. E porque foi esse o meu compromisso há quase quatro décadas, vou levá-lo até ao fim.

 


[1] “À Espera de Godot”, peça de teatro metafísica de Samuel Beckett, obra-prima do absurdo, publicada em 1952. Em cena, há personagens que discutem o sentido da vida e o valor da sua própria existência, enquanto esperam um indivíduo chamado Godot, que acabará por não aparecer.

João Luís Nabo

In "O Montemorense", Junho de 2023

domingo, 14 de maio de 2023

As Mães

 



Maio é mês de Maria e o mês do Dia da Mãe, acontecimentos que merecem uma reflexão, antes de muitos de nós os esquecermos durante o resto do ano.

Maria será sempre envolta no seu próprio mistério, atraindo várias centenas de milhares de crentes à sua volta, na Cova de Iria, em busca de paz e numa peregrinação, sobretudo, interior, que lhes permite regressar a casa mais leves, mais felizes e com a sua fé reforçada. É admirável a força que a imagem de uma Mulher tão especial irradia à sua volta, independentemente da fé de cada um. Embora desligado espiritualmente de muitos dogmas da Igreja, as (raras) viagens que faço ao Santuário de Fátima são sempre psicologicamente reconfortantes. Não me pergunto porquê, porque não tenho resposta para tal. Sinto um certo magnetismo, uma vontade de acreditar e, mais do que isso, o respeito por quem acredita.

 

O Dia da Mãe é para muitos um momento de alegria e de partilha de algum tempo com quem nos pôs no Mundo. Para outros, é um dia em que as recordações vêm mais ao de cima, transportando-nos para o tempo em que estavam connosco, não só nesse dia, mas em todos os dias de todos os anos da nossa vida. A nossa Mãe, embora já no mundo de todos os possíveis, continua connosco nos dias de festa, mas, sobretudo, naqueles em que o colo, que ela nos dava em tempos, era o único gesto, nobre e desinteressado, de que estávamos agora a precisar. Restam-nos as recordações dos dias passados, principalmente quando, na nossa infância, era a sua voz o nosso principal guia, o seu olhar a nossa segurança, as suas mãos o nosso remo. 

Publiquei há uns anos um livrinho de contos, onde escrevi um que ofereci à minha Mãe. Deixo aqui um excerto, que fala sobre as minhas idas ao mercado com Ela, julgo que já transcrito outras vezes, porque é neste pedaço de texto que eu lhe mostro toda a minha adoração e, neste momento, toda a minha saudade:

 

“(…) Fervilhar.

É o verbo que se passeia pela memória dos dias quando me olho, através do tempo, a atravessar o jardim com a minha mão esquerda, pequenina, embrulhada na da minha mãe. Cinco anos de quotidianos felizes a ansiar pelos sábados de manhã para agarrar no cesto e partir à descoberta neste templo onde as estações do ano comandam as modas e os paladares de quem lá entra. Fervilhar. É som que não é som. É um sentimento que começa ainda o dia não passa de duas, talvez três, pinceladas de madrugada. Primeiro, vozes soltas, meio sozinhas ainda, neste espaço vazio, gemendo, impando, dando ordens… Depois, mais vibrantes, frescas, timbres em contraponto dos vendedores que, num aumento gradual, ali misturam os duros dias ao sol, à chuva, ao frio, no campo, na lota, no matadouro, com as dores e os caprichos das donas de casa, as exigências das avós que vão à hortaliça para a sopa dos netos, os pedidos das criadas que não querem ouvir ralhar as patroas…

É um labirinto de cores, um caleidoscópio de caras. De novidades iguais e diferentes. De sorrisos, de esgares, da vida de todos os dias. Onde me perdia vezes sem conta, porque um quadrado confunde toda a gente, mesmo que se visite amiúde e se conheça cada erva que nasce por entre as lajes de granito pisado mil vezes. Estranho este labirinto, que não tem nem corredores, nem passagens secretas, espaço aberto onde todos sabem de todos, porque todos ouvem todos. Mas onde me perdia constantemente… Acabando por sair sempre pela porta por onde não entrara…

Talvez o lago, ao centro ― uma taça de mármore, com uma coluna ao meio a equilibrar uma bola fantástica a apontar para o azul, quando o há ―, fosse responsável por tal perda de referência. A perseguição aos peixes vermelhos, que se bandeavam nas águas claras e frias, era sempre o primeiro e único exercício físico possível naquele lugar. Depois de umas quantas voltas, ora para um lado, ora para o outro, para não entontecer, eis que acabava perdido, sem saber onde tinha pousado o cesto, sem saber da minha mãe, sempre atenta no olhar e nas palavras, entretida a falar com a D. Carlota do Julinho dos presépios, dos comboios eléctricos e dos balões coloridos, mal pairavam os primeiros acordes do Natal.

E, quando, a troco de um tostão, os vendedores me enchiam o pequeno cesto com duas ou três cenouras, três ou quatro vagens de feijão-verde, um molho de salsa e outro de hortelã, que deixavam um rasto de sabores adivinhados, eu sentia-me o petiz mais importante do planeta, talvez o mais feliz do universo.

Agarro com força estas memórias, como se fossem a mão da minha mãe, porque me sinto protegido, aconchegado, fascinado com o tal barulho das vozes que continuam a misturar-se em contracantos, salmodias e pregões. Sem nesse tempo perceber porquê, sentia que aquelas melodias iam fazer parte da minha vida e que se prolongariam muito mais do que durante aquela breve meia hora matinal. Só depois vim a entender o poder daquelas vozes, mais puras, mais belas, mais sinceras e convincentes do que muitas que mais tarde, por gosto ou missão, viria a escutar nas mais divulgadas oratórias, nas mais sublimes árias, em tantas óperas, densas e dramáticas, e no esplendor das cantatas de um tal senhor Bach.

A minha mãe continua fiel às orações da manhã:

― Quanto é este molho de espinafres?

― E o carapau do alto? – pergunta ainda, de banca em banca, porque a tradição vive naqueles olhos e naquela vontade sábia de continuar simples, a gostar das coisas simples. Sei que ainda me dá a mão, como se eu, homem feito, diminuísse de tamanho todos os dias, pegasse no cesto que ela me dera e, de moeda em punho, fosse eu o responsável pelas ervas de aroma que ainda hoje lhe enchem a casa de cheiros e de sonhos…”[1]

 João Luís Nabo

In "O Montemorense", Maio 2023



[1] Do Tempo e das Vozes, in  “Outros Contos de Vila  Nova”, Editorial  Tágide, Lisboa, 2010

 

quinta-feira, 13 de abril de 2023

3 reflexões (provavelmente, disparatadas)

 


Primeira

 

Comecemos pelos mais pequeninos. Exactamente, as criancinhas que começam a mandar nos pais, nos avós e nas educadoras, logo assim que começam a balbuciar as primeiras palavras.

Em tempos idos, e não quero dizer que dantes é que era bom, nada disso, não éramos nós, as criancinhas, que definíamos o dia-a-dia da família. Nós, os pequeninos, adaptávamos os nossos quereres às regras estabelecidas pelos nossos pais, pelos nossos padrinhos (uma figura extraordinariamente importante na nossa educação) ou pelos nossos avós, elementos incontornáveis na nossa vida.

Os compromissos familiares eram cumpridos como se algo de sagrado se tratasse e, independentemente da idade do infante, fazíamos o que as famílias costumavam fazer: almoçar ou jantar todos juntos em épocas festivas, passear, ir aos aniversários uns dos outros, passar férias, todos ao molho e com fé nos deuses. Enfim, não havia restrições, nem medos, nem complexos, nem ansiedades. Aliás, os nossos país tinham métodos eficazes para tratarem os nossos ataques de mau feitio, as nossas manias, os nossos chiliques e depressões.

Com a filharada cá de casa aconteceu o mesmo: as regras da família eram para ser cumpridas, às horas marcadas, com prazer e alegria. Claro que, hoje, já adultos, acabam por fazer a sua vida, mas a família continua a ser, acredito eu, o pilar, o pretexto para estarmos juntos, a discutir o que vier para cima da mesa, qualquer que seja o tema. Nada fica no prato a arrefecer, porque por aqui não há tabus: o que está enleado desenleia-se e nada fica por dizer.

Acho que os pais de hoje, jovens, alimentados pelas teorias das escolas do Dr. Google e preocupados com o futuro e segurança dos filhos (o que é natural e de aplaudir), se angustiam em demasia e esquecem que, um dia, os filhos, irão cair de borco num mundo-cão que não lhes perdoa caprichos ou birras de ocasião. Nem faltas de pontualidade.

 

Segunda

 

Falei há pouco com um amigo que me disse que tinha deixado a escola cedo demais, porque não era feliz na sala de aula. A conversa era leve e apareceu no meio de outras que costumamos ter. Mas aquela frase deixou-me a pensar: e hoje, os alunos sentem-se felizes numa sala de aula? Não terão possibilidade de aprender tudo o que necessitam por outros meios? Acreditem, caros leitores, que não sei responder a estas perguntas.

O conhecimento, essencial para o nosso desenvolvimento como seres sociais e úteis à comunidade onde vivemos, pode ser adquirido de muitas formas, e hoje, com a Internet, tudo se pode estudar, analisar e aprender. Há, contudo, um problema que inviabiliza a legitimidade dessa aprendizagem. A aquisição de conhecimentos deve ser feita de forma organizada, lógica, de acordo com a faixa etária do aluno e, talvez o mais importante, ser legitimada por alguém que se preparou durante anos para isso: o professor.

Por isso, porque, muitas vezes, o que o professor explica já não é novidade para muitos deles, a infelicidade de alguns alunos numa sala de aula não deve jamais ser desvalorizada. Urge adaptar as práticas pedagógicas, as matérias e os programas às novas gerações de estudantes  que, mais do que demasiada teoria, necessitam (e o mundo fora da escola também) saber qual a aplicação prática do que aprendem dentro do recinto escolar. Está na hora de se repensar os currículos de todas as disciplinas e, sobretudo, de direccionar os alunos para as áreas de conhecimento onde se sentem realizados nas respectivas aprendizagens e nas descobertas que elas lhes proporcionam.

As gerações de velhos professores, que falavam de cima da cátedra para quem quisesse ou fosse capaz de aprender, já quase terminou, felizmente. A sala de aula é hoje um espaço de debate e de inclusão, onde todos podem e devem participar. Para isso, é fundamental a motivação, o interesse, a curiosidade, a vontade de aprender e a consciência da utilidade dessas mesmas aprendizagens.

A questão é continuarmos a viver o velho problema de não se oferecer aos alunos as áreas adequadas ao seu perfil, aos seus gostos e às suas capacidades. Se isso fosse possível (bastava haver vontade política), revolucionava-se a escola e o país. E talvez se acabasse com essa infelicidade de muitos deles. E talvez esse meu amigo tivesse acabado a sua escolaridade.    

 

 

Terceira

 

Fico incomodado quando percebo que vivemos, todos nós, a maior parte da nossa vida com medo. E que tem sido esse medo que os políticos, todos, antes e depois de Abril de 74, têm usado para controlar os nossos dias.  

Antes da Revolução, os nossos pais e avós, tios e tias sentiam uma enorme angústia, permanente e desgastante, porque o sistema político vigente, e que se aguentou 48 anos, não lhes permitia ser felizes. Havia o medo de falar, o medo de escrever, o medo de pensar, o medo de agir. Tempos de terror inimaginável para os muitos portugueses, e montemorenses, que foram levados pelos esbirros de Salazar e trancados no Aljube, em Caxias, em Peniche ou degredados para o Tarrafal. Torturas, sevícias de todo o género, humilhações, sofrimento, morte – tudo passaram estas mulheres e estes homens, em nome da liberdade e em luta pelos direitos de todos os portugueses.

Hoje, quase meio-século após a revolução, continuamos a viver com medo. Medo de um retorno ao passado, com os partidos de direita a conquistarem espaço no espectro político-partidário, medo de não termos rendimentos suficientes para pagar as mensalidades da casa ao banco, medo de que comece a faltar alguma comida em cima da mesa, medo de uma doença que nos leve ou que afaste de nós, para sempre, familiares e amigos, medo de não vivermos o suficiente para criarmos os nossos filhos e ajudarmos a criar os nossos netos. Medo de termos uma avaria no carro, no esquentador ou na máquina de lavar roupa. Medo de faltar dinheiro para pagar os seguros, o IMI e o IUC ou as propinas dos filhos, a estudarem na universidade.  

Enfim, pelas evidências que nos chegam todos os dias a casa através da televisão, temos a certeza de que esta permanente sensação de insegurança e angústia se vai prolongar pelos meses que aí vêm.

E o Governo de Costa, com cada vez mais “casos e casinhos”, a rir-se de nós todos.  Como se fôssemos todos parvos.   

 

João Luís Nabo

In "O Montemorense", Abril de 2023


quinta-feira, 16 de março de 2023

Capítulo uno e indivisível

 


Capítulo uno e indivisível


De mês para mês, que é o mesmo que dizer de Cloreto para Cloreto, o país afunda-se cada vez mais em escândalos, que mostram o tecido de que somos feitos desde a fundação deste nosso belo reino, e que atrasam, sem apelo nem agravo, a discussão e a resolução de problemas graves que vão minando a sociedade e o espírito dos portugueses.

Enumerar os escândalos torna-se já redundante e fastidioso e corro o risco de os meus dez leitores abandonarem já, sem qualquer hesitação, a leitura desta breve crónica. E faziam muito bem, porque eu faria o mesmo. Há muitas séries na Netflix para ver.

Por isso, hoje nada de TAP, de Alexandra Reis, de Christine Ourmières-Widener, de Marcelo ou de Costa. Esqueçamos os professores e o pessoal não docente, a serem gozados todos os dias pelo ministro e companhia, estando como eles os médicos e os enfermeiros, os maquinistas da CP, os trabalhadores dos portos, do sector aéreo, da justiça, toda esta gente em greve e a prejudicar profundamente os sectores onde trabalham e os utilizadores que deles dependem (mas é para isto que as greves servem, tenham paciência!).

Coloquemos também em repouso os escândalos que têm assolado a Igreja e que parecem não ter uma solução concertada entre os seus responsáveis. Podíamos igualmente discutir aquela bonita política de Marcelo “Nem mais um sem-abrigo nas ruas em 2023”, podíamos até dizer que a figura do nosso Presidente da República já deu o que tinha a dar e que, cada vez que fala, há um tsunami que nos atinge a todos, porque somos nós que pagamos as quantas barbaridades que ele já disse por aí.

Isto para não falar nos lares de idosos, que maltratam os utentes de uma forma que não julgaríamos possível nos tempos que correm. E, ainda por cima, alguns deles pertencem a instituições religiosas, estas que deveriam ser as primeiras a dar o exemplo. Também neste campo devíamos recordar alguns familiares que, muito escandalizados, se confessam às câmara de televisão. Apetece-nos perguntar: “Só agora é que deu pelos maus-tratos ao seu pai ou à sua mãe? Há quanto tempo não os ia visitar?”

E no preço dos alimentos? Vamos falar nisso? Nem pensar. E quando nas caixas dos supermercados pagamos por um produto um preço muito mais alto do que aquele que estava na prateleira? Também não vamos por aí. E os preços das rendas dos apartamentos e as exigências dos bancos para conceder empréstimos, obrigando os jovens adultos a viverem com os pais até lá para os sessenta anos?…

Mas há milhões de milhares de euros para empresas, para bancos, para administradores, para ajudar gente aflita lá fora, com guerras e terramotos, e sei lá mais para quem, porque ainda não se sabe tudo. O cristal vai-se quebrando aos poucos e aos poucos as verdades começam a ver a luz do dia. Mas, depois, vem aí o futebol, o treze de Maio, as Jornadas Mundiais da Juventude, que, não discutindo a sua importância e utilidade, são outras distracções muito convenientes ao nosso querido Governo. Enquanto uns rezam, convivem, gritam nomes ao árbitro, outros roubam até mais não, lançam novos impostos até mais não, retiram-nos regalias até mais não, apaparicam os amigos até mais não.

Por falar em amigos… E os amigos dos políticos que entram para a engrenagem governamental sem qualquer experiência e, tantas vezes, sem as qualificações necessárias? São ministros, secretários de estado, assessores, assessores de assessores, secretários de assessores, enfim, um chorrilho de pessoal que tem tachinho garantido enquanto aquela cor se mantiver à tona de água. Quando a coisa mudar, vão outros, pelos mesmos motivos… afectivos. E os afectos, meus caros leitores, contam tanto!!

 

E os portugueses, apesar de estarem tesos que nem um carapau, ainda que muitos de nós continuem precários nos seus empregos, e embora a maioria ganhe um ordenado que não dê para nada, apesar de, ultimamente, termos posto as garras de fora mostrando o nosso desagrado por tudo o que nos está a acontecer, continuamos um povo manso e confiante no “Há-de-ser-o-que-Deus-quiser”, uma expressão sinistra vinda lá dos anos quarenta, quando um senhor muito sério, de fato e voz de falsete, governava este quintal sempre tão mal frequentado, acrescentando a este lema o tal de “Deus, Pátria, Família”, que alguns, hoje, querem ressuscitar.

Pois, meus amigos, isto não pode continuar a ser “o que Deus quiser”. Isto não vai lá com greves, cartazes e palavras de ordem. Isto não vai lá com esperas ao primeiro-ministro e aos ministros para lhes perguntarmos cara a cara o que andam a fazer ao nosso país e ao dinheiro que tanto nos custa a ganhar. Isto não vai lá assim.

E muito menos quero deixar aqui a ideia de que Portugal está a ficar um terreno absolutamente disponível e cultivável para que os semeadores do Chega comecem a lançar as sementes à terra. (Se não começaram já). E elas dão frutos, meus amigos. Elas dão frutos… que crescem rapidamente.

Portanto, perante todas estas misérias e estes perigos eminentes, isto só se resolve de uma maneira: com uma Revolução. Ou, no caso de não ser possível, que haja coragem por parte de quem de direito e que se dissolva o Parlamento e se convoque eleições antecipadas. Piores não ficaremos.

Distraídos crónicos...


Contador de visitas

Contador de visitas
Hospedagem gratis Hospedagem gratis

Arquivo do blogue

Acerca de mim

A minha foto
Montemor-o-Novo, Alto Alentejo, Portugal
Powered By Blogger