(À minha Mãe, in memoriam)
Fervilhar.
É o verbo que se passeia pela memória dos dias quando me olho, através do tempo, a atravessar o jardim com a minha mão esquerda, pequenina, embrulhada na da minha mãe. Cinco anos de quotidianos felizes a ansiar pelos sábados de manhã para agarrar no cesto e partir à descoberta neste templo onde as estações do ano comandam as modas e os paladares de quem lá entra.
Fervilhar.
É som que não é som. É um sentimento que começa ainda o dia não passa de duas, talvez três, pinceladas de madrugada. Primeiro, vozes soltas, meio sozinhas ainda, neste espaço vazio, gemendo, impando, dando ordens… Depois, mais vibrantes, frescas, timbres em contraponto dos vendedores que, num aumento gradual, ali misturam os duros dias ao sol, à chuva, ao frio, no campo, na lota, no matadouro, com as dores e os caprichos das donas de casa, as exigências das avós que vão à hortaliça para a sopa dos netos, os pedidos das criadas que não querem ouvir ralhar as patroas…
É um labirinto de cores, um caleidoscópio de caras. De novidades iguais e diferentes. De sorrisos, de esgares, da vida de todos os dias. Onde me perdia vezes sem conta, porque um quadrado confunde toda a gente, mesmo que se visite amiúde e se conheça cada erva que nasce por entre as lajes de granito pisado mil vezes. Estranho este labirinto, que não tem nem corredores, nem passagens secretas, espaço aberto onde todos sabem de todos, porque todos ouvem todos. Mas onde me perdia constantemente… Acabando por sair sempre pela porta por onde não entrara…
Talvez o lago, ao centro ― uma taça de mármore, com uma coluna ao meio a equilibrar uma bola fantástica a apontar para o azul, quando o há ―, fosse responsável por tal perda de referência. A perseguição aos peixes vermelhos, que se bandeavam nas águas claras e frias, era sempre o primeiro e único exercício físico possível naquele lugar. Depois de umas quantas voltas, ora para um lado, ora para o outro, para não entontecer, eis que acabava perdido, sem saber onde tinha pousado o cesto, sem saber da minha mãe, sempre atenta no olhar e nas palavras, entretida a falar com a D. Carlota do Julinho dos presépios, dos comboios eléctricos e dos balões coloridos, mal pairavam os primeiros acordes do Natal.
E, quando, a troco de um tostão, os vendedores me enchiam o pequeno cesto com duas ou três cenouras, três ou quatro vagens de feijão-verde, um molho de salsa e outro de hortelã, que deixavam um rasto de sabores adivinhados, eu sentia-me o petiz mais importante do planeta, talvez o mais feliz do universo.
Agarro com força estas memórias, como se fossem a mão da minha mãe, porque me sinto protegido, aconchegado, fascinado com o tal barulho das vozes que continuam a misturar-se em contracantos, salmodias e pregões. Sem nesse tempo perceber porquê, sentia que aquelas melodias iam fazer parte da minha vida e que se prolongariam muito mais do que durante aquela breve meia hora matinal. Só depois vim a entender o poder daquelas vozes, mais puras, mais belas, mais sinceras e convincentes do que muitas que mais tarde, por gosto ou missão, viria a escutar nas mais divulgadas oratórias, nas mais sublimes árias, em tantas óperas, densas e dramáticas, e no esplendor das cantatas de um tal senhor Bach.
A minha mãe continua fiel às orações da manhã:
― Quanto é este molho de espinafres?
― E o carapau do alto? – pergunta ainda, de banca em banca, porque a tradição vive naqueles olhos e naquela vontade sábia de continuar simples, a gostar das coisas simples. Sei que ainda me dá a mão, como se eu, homem feito, diminuísse de tamanho todos os dias, pegasse no cesto que ela me dera e, de moeda em punho, fosse eu o responsável pelas ervas de aroma que ainda hoje lhe enchem a casa de cheiros e de sonhos…
João Luís Nabo, Outros Contos de Vila Nova,
(Editorial Tágide, Lisboa, 2010)
(Foto: Boa cama boa mesa)