domingo, 20 de dezembro de 2020

Do tempo e das vozes

         







(Foto: Digital)

Incluída no meu livro "Outros Contos de Vila Nova" (Editorial Tágide, Lisboa, 2011), em homenagem à minha Mãe, nesse tempo ainda entre nós, volto a oferecer esta pequena história aos meus leitores, comemorando o renascimento do nosso Mercado Municipal que, na sua modernidade, não perdeu a essência dos meus tempos de menino. Obrigado à Autarquia por esta "prenda de Natal".


Fervilhar.

É o verbo que se passeia pela memória dos dias quando me olho, através do tempo, a atravessar o jardim com a minha mão esquerda, pequenina, embrulhada na da minha e. Cinco anos de quotidianos felizes a ansiar pelos sábados de manhã para agarrar no cesto e partir à descoberta neste templo onde as estações do ano comandam as modas e os paladares de quem lá entra.

Fervilhar.

É som que o é som. É um sentimento que começa ainda o dia não passa de duas, talvez três, pinceladas de madrugada. Primeiro, vozes soltas, meio sozinhas ainda, neste espaço vazio, gemendo, impando, dando ordens… Depois, mais vibrantes, frescas, timbres em contraponto dos vendedores que, num aumento gradual, ali misturam os duros dias ao sol, à chuva, ao frio, no campo, na lota, no matadouro, com as dores e os caprichos das donas de casa, as exigências das avós que vão à hortaliça para a sopa dos netos, os pedidos das criadas que não querem ouvir ralhar as patroas…

É um labirinto de cores, um caleidoscópio de caras. De novidades iguais e diferentes. De sorrisos, de esgares, da vida de todos os dias. Onde me perdia vezes sem conta, porque um quadrado confunde toda a gente, mesmo que se visite amiúde e se conheça cada erva que nasce por entre as lajes de granito pisado mil vezes. Estranho este labirinto, que não tem nem corredores, nem passagens secretas, espaço aberto onde todos sabem de todos, porque todos ouvem todos. Mas onde me perdia constantemente… Acabando por sair sempre pela porta por onde não entrara…

Talvez o lago, ao centro uma taça de rmore, com uma coluna ao meio a equilibrar uma bola fantástica a apontar para o azul, quando o ―, fosse responsável por tal perda de referência. A perseguição aos


peixes vermelhos, que se bandeavam nas águas claras e frias, era sempre o primeiro e único exercício físico possível naquele lugar. Depois de umas quantas voltas, ora para um lado, ora para o outro, para não entontecer, eis que acabava perdido, sem saber onde tinha pousado o cesto, sem saber da minha e, sempre atenta no olhar e nas palavras, entretida a falar com a D. Carlota do Julinho dos presépios, dos comboios eléctricos e dos balões coloridos, mal pairavam os primeiros acordes do Natal.

E, quando, a troco de um tostão, os vendedores me enchiam o pequeno cesto com duas ou três cenouras, três ou quatro vagens de feijão-verde, um molho de salsa e outro de hortelã, que deixavam um rasto de sabores adivinhados, eu sentia-me o petiz mais importante do planeta, talvez o mais feliz do universo.

Agarro com força estas memórias, como se fossem a o da minha e, porque me sinto protegido, aconchegado, fascinado com o tal barulho das vozes que continuam a misturar-se em contracantos, salmodias e pregões. Sem nesse tempo perceber porquê, sentia que aquelas melodias iam fazer parte da minha vida e que se prolongariam muito mais do que durante aquela breve meia hora matinal. depois vim a entender o poder daquelas vozes, mais puras, mais belas, mais sinceras e convincentes do que muitas que mais tarde, por gosto ou missão, viria a escutar nas mais divulgadas oratórias, nas mais sublimes árias, em tantas óperas, densas e dramáticas, e no esplendor das cantatas de um tal senhor Bach.

A minha mãe continua fiel às orações da manhã:

Quanto é este molho de espinafres?

E o carapau do alto? pergunta ainda, de banca em banca, porque a tradição vive naqueles olhos e naquela vontade sábia de continuar simples, a gostar das coisas simples. Sei que ainda me a o, como se eu, homem feito, diminuísse de tamanho todos os dias, pegasse no cesto que ela me dera e, de moeda em punho, fosse eu o responsável pelas ervas de aroma que ainda hoje lhe enchem a casa de cheiros e de sonhos…


João Luís Nabo

In "Outros Contos de Vila Nova"

Editorial Tágide, Lisboa, 2011

terça-feira, 15 de dezembro de 2020

Diário de um confinadinho (coitadinho!)

          


    Deve haver milhares de diários deste género, escritos por totós que, não tendo nada mais para fazer, decidem publicar nas redes sociais (até com fotos de gosto duvidoso) todas as etapas de cada dia da sua triste e arrastada vidinha dentro de casa. E ficamos até a saber, pasmem os meus oito leitores (dez, desde há uns tempos), a marca do gel de banho usado no duche e a cor daquela cola de sabor discutível que muitos usam nas próteses dentárias, que agora só colocam na gengiva respectiva quando vão à porta atender o padeiro, o carteiro ou o homem do gás.

A vida tornou-se (mais) estúpida, e se muitos achavam que levavam uma existência comezinha, pequenininha e sem interesse, então agora, quanto mais se agravam as medidas, mais claro é para alguns que a sua vida muito desinteressante se pode tornar muitíssimo mais desinteressante.

Seria um desafio fácil adivinhar o que muitos dos confinados como eu fazem nas vinte e quatro horas do santíssimo dia, sem poderem sair à rua, como se estivessem em prisão domiciliária. Tenho um amigo (desculpa lá, R. S.) que colocou um relógio de pulso na canela direita a fingir que era uma pulseira electrónica. É que ele já tinha estado assim, em casa, por posse de drogas leves, e agora, dizia ele ao médico da Saúde 24, parecia que lhe faltava qualquer coisa. O tipo é mesmo totó. E porque não seria nenhuma tarefa hercúlea adivinhar esses passos tão intimistas, basta recordar o que fiz hoje, que foi o mesmo que fiz ontem e anteontem. Depois, cada um tira ou acrescenta o que lhe aprouver, conforme o caso ou a capacidade criativa.

 

            Das 3.00 às 8.00 – dormir (é mais para cumprir o soninho de beleza, porque eu já não tenho necessidade de dormir.)

            Das 8.00 às 8.30 – tomar duche, lavar os dentes, colocar a balança contra mim, escolher o fato de treino mais cool do conjunto de dois que me ofereceram há 20 anos, calçar uns ténis baris como se fosse correr a légua, descer em direcção à cozinha, galgando os degraus de dois em dois.

Das 8.30 às 12.00 – aulas pelo Teams, tentando manter aqueles pobres adolescentes confinados com o astral mais elevado possível.

            Das 12.00 às 13.00 – no balcão estão pousados três sacos com o takeaway que o Pedro e a Joana acabaram de trazer e que eu transferi para cima da mesa. Hoje o João não almoça. Cada um serve-se do que quiser, põe o prato, tira o prato, lava o prato, guarda o prato e vai à sua vida. São muitos cá em casa e eu não sou empregado de ninguém. Eu como uma maçã e pronto, vou para o meu grupo do Whatsapp pôr a conversa em dia, já que o grupo não poderá juntar-se tão depressa.

            Das 13.00 às 15.00 – corrigir trabalhos de alunos enviados via Teams e mandar umas mensagens com os habituais ralhetes por causa dos atropelos às belas línguas de Camões, Shakespeare e Goethe.

            Das 15.00 às 19.00 – acender a lareira e tomar nota mentalmente da necessidade urgente de telefonar ao senhor António Lavado para trazer mais três toneladas, agarrar solenemente no comando da televisão, de olhos fechados para absorver bem o momento, ligar o plasma gigantesco, tratar do som estéreo com as colunas estrategicamente colocadas, carregar duas vezes na tecla 8, desligar telefone e telemóvel, dizer aos amigos do grupo para não incomodarem porque tenho de trabalhar e… mergulhar na série de dez temporadas que está quase batida, à média de uma temporada de 10 episódios em cada duas tardes.

            Das 19.00 às 20.00 – fazer uma pesquisa aturada nos sacos de takeaway do almoço e ver o que sobrou: nada. Agarrar numa frigideira das pequenas, com fundo nã-sê-quê para não estragar a cerâmica do fogão, senão não há-de faltar, pôr lá dentro uma colherzinha de manteiga, partir um ovo biológico da dúzia oferecida pela Maria José, e atirar o conteúdo para dentro do circular contentor. Umas pedras de sal completam os ingredientes. Um Herdade das Servas, tinto, oferta ainda em tempos de pré-pandemia, uma fatia de pão do meu amigo Dinis e está o jantar feito.

            Das 20.00 às 21.00 – fazer zapping entre os jornais noticiosos televisivos, mais para perceber a estratégia de alinhamento de notícias do que para ouvir e ver as próprias. Tentar, sobretudo, perceber por que raio a CMTV foge a toda a lógica jornalística e editorial das outras estações… ou de qualquer estação.

Das 21.00 às 3.00  – escrever. À luz fraca de um candeeiro de secretária, com tudo escuro à volta, para não haver distracções. Estrategicamente, porque a casa está num silêncio absoluto. Filhos a dormir, mulher a dormir, Balú a ressonar suavemente junto à lareira. É capaz de sair história. Mais uma história, a quinta neste tempo de confinamento. E amanhã, tudo de novo. FIM.

 E pronto. Assim se escreveu este diário, com pouca graça, mas com a emotividade necessária para convencer os meus dez leitores de que tudo é verdade e conduzido mais ou menos a este ritmo. Não falei do Costa, que anda a passar a mão pelo pêlo do povo, com o abrandamento das medidas restritivas agora na época do Natal. Nem do Marcelo, que anunciou a recandidatura à Presidência como se fosse levar a vacina da gripe. Muito menos do ministro Cabrita que, por esta altura, se ainda está em funções, é porque está tudo parvo. Nem das autárquicas, que estão para chegar à minha santa terrinha (e às outras terrinhas, claro), mas que, até agora, ainda não atraíram ninguém verdadeiramente interessante em quem pudesse votar. Nem sequer falei da minha vontade de poder votar em mim próprio.

Se eu passo os meus dias assim, sem ligar aos desconcertos do mundo, sem me importar com os amores e os ódios dos que fazem mexer o país, acreditando que este confinamento me deixa todos os dias mais pacífico e menos desconfiado, a Fofa não dorme na forma. Ontem, quando fiz uma pausa depois do jantar, ela, sempre atenta às dinâmicas governamentais, desde Março muito mais activas e amigas do seu amigo, perguntou-me com ar maroto, o que me provocou um leve arrepio na espinha: “Mas que coisa mais estranha”, começou ela. “O que se passa?”, perguntei, adivinhando que vinha aí coisa. “O Costa…”, retomou ela, enquanto enviava uma foto do Balú para uma amiga que precisava de uma imagem de uma coisa fofinha para se animar na sua confinada solidão. “O Costa veio aliviar as medidas durante a quadra natalícia…”, insistiu. “O povo português vai recompensá-lo em breve”, respondi, sem me querer meter em discussões políticas. E conclui: “Mas não vejo aí nada de estranho. O povo está farto do confinamento, o povo está há muito tempo longe das famílias, o povo quer uma pausa nesta rigidez militar e abraçar e beijar os parentes e os amigos. Não acho nada de estranho nesta decisão.” “Deixar o pessoal viajar de concelho para concelho? Acabar com aquelas horas de recolhimento super-restritivas? Não acho normal!”, atirou ela, com o tonzinho de voz a sofrer uma ligeira alteração para o agudo. “E porquê?”, insisti, com o nono episódio da quarta temporada do “Prison Break” em pausa já há tempo demais. “Porque… não há nenhum congresso de nenhum partido amigo nesta altura do ano. Por isso, não valia a pena tanta abertura…”, concluiu a Fofa, beberricando com classe o seu cálice de Favaios, olhando a chuva que caía, imperturbável e generosa, sobre os arbustos em forma de unicórnio no jardim das traseiras.

João Luís Nabo

In "O Montemorense". Dezembro 2020




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