Depois de levantada a última barraca da Feira da Luz/Expomor 2019, cujo balanço é sempre igual (muitos gostam, alguns não), e regressados à realidade do nosso quotidianozinho, acabamos por concluir que, para viver pacificamente os dias que nos restam, basta, tal como antes das férias, não sair do mainstream onde navegamos, exercendo os brandos costumes a que nos habituámos e a que nos habituaram. E porquê?
Porque o exercício da democracia se está a transformar num grande imbróglio e, se querem saber mesmo a verdade, a própria democracia está a tornar-se, cada vez mais, num conceito abstracto e, cada vez menos, numa prática concreta (peço perdão pela redundância). Porque se mostra todos os dias uma consideração mínima, ou nula, em relação às minorias ou aos que estão à margem dos partidos políticos e das correntes religiosas. Porque quem é diferente, quem não tem partido ou religião, começa a ser considerado um elemento que não deve ser ouvido, nem lido, e cujas ideias nem sequer devem ser discutidas, porque lhes falta… “fundamento”. Os exemplos que estão subjacentes a esta reflexão são inúmeros e, muitos deles, a serem expostos aqui, poderiam (lá está) ser mal interpretados ou lidos de viés, com consequências e juízos de valor pouco abonatórios para quem os emite.
Mas temos de ser claros: no país, continua a haver filhos e enteados, primos e primas do Poder, assimetrias escandalosas e acentuadas, quando comparamos o interior com o litoral, para não referir a desertificação do Alentejo, resultado de más políticas, de interesses esconsos, de combinações, de guerras de bastidores.
Os professores continuam a ser descaradamente desrespeitados pelo Estado, quando deveriam, à imagem do que se passa noutras latitudes, ser considerados elementos essenciais na formação dos jovens e membros de uma das mais nobres profissões; o Sistema Nacional de Saúde obriga doentes graves a esperarem meses sem fim para serem submetidos a cirurgias urgentes, com as terríveis consequências que isso acarreta; os médicos e os enfermeiros querem fugir de Portugal à procura de uma vida equilibrada e feliz; o desemprego continua a ser um flagelo, mascarado pelos ditos estágios profissionais, muitos deles não remunerados, que não passam de uma forma moderna de exploração; os cidadãos continuam, de forma consciente, a mostrar, com maior frequência, o seu lado mais primitivo e egocêntrico – no trânsito, no emprego, no supermercado, no restaurante, na praia; os incendiários são apanhados e libertados logo de seguida, porque têm uma doença, coitados, e má-na-sê-quê; os trabalhadores das mais diversas áreas já não se revêem nos sindicatos, que os representam cada vez pior, e sempre e cada vez mais com a partidarite como fio condutor do seu trabalho; o povo português já pouco acredita no poder do voto e nas mudanças que tal arma poderá ter para a sua vida e para a vida dos seus filhos e netos, esquecendo que, se a política é para os políticos, eles não poderão exercê-la se não formos nós a outorgar-lhes essa possibilidade. E os políticos, com responsabilidades de governação? Esses perderam completamente o sentido de Estado e comportam-se como se fôssemos todos amiguinhos e ex-colegas de escola. Usam as redes sociais para responder às críticas das oposições e acreditam que o twitter é o seu melhor instrumento para governar. Por outro lado, o Presidente da República anda, há uma série de meses, com paninhos quentes, a tentar convencer os portugueses de que vivem num paraíso. (E alguns acreditam e babam-se todos quando ele fala!) Nunca nos devemos esquecer que um tal senhor chamado Cavaco Silva disse ao país, em Julho de 2014, que não havia problemas com o BES e, dias depois, foi o escândalo vergonhoso que se viu.
Neste país, nesta santa terra, nada é o que parece. Nada parece o que é.
Os portugueses estão a perder, aos poucos, a noção da realidade. Dizem preocupar-se muito com o futuro, mas vão para a praia em vez de irem votar. O importante é mostrarem-se nas redes sociais, afirmando-se os mais bem vestidos, os mais viajados, os mais bem penteados, os mais engatatões, os mais bronzeados, os mais totós, os melhores dos melhores em qualquer área, desde que os resultados sejam imediatos e a sua consecução não dê muito trabalho, que isto a vida não está para grandes chatices.
E há os que, de forma diabólica e cobarde, usam as redes sociais sob pseudónimos asquerosos, para denegrir os que, de forma transparente, trabalham diariamente, nos mais diversos sectores (política, educação, saúde, movimento associativo, economia, apoios sociais, cultura), por um país melhor, por uma cidade mais atraente e mais evoluída. Se tudo isso não tem a ver com o Poder…
Mas o Poder, e o Poder Absoluto, tem sempre as suas consequências. A médio ou a longo prazo. Não fui eu que inventei isto. É a História que nos tem mostrado que a democracia, se não acompanha a evolução dos tempos, é, indiscutivelmente, o melhor terreno para o suave nascimento de uma ditadura, que tanto pode vir de esquerda como de direita. É esta evolução lenta, esta metamorfose orgânica, esta transformação assustadora, feita aos olhos de todos e com a legitimidade das urnas, que nos deve pôr de sobreaviso.
Se estou preocupado com o futuro? Mais do que isso. Estou preocupado com o presente, quando dou comigo a pensar no passado. Nas décadas de 40 e 50, a minha cidade, então vila, foi palco das mais corajosas lutas pela liberdade. José Adelino dos Santos e Germano Vidigal foram assassinados nesta terra, porque ousaram levantar a voz contra o status quo da ditadura salazarista, que muitos tentam agora branquear das mais diversas formas. Foram montemorenses que disseram não, quando os queriam obrigar a dizer sim. Pagaram caro a sua ousadia: foram presos, torturados, silenciados, exilados, mortos, abandonados por um sistema controlado por um poder totalitário e impiedoso.
Por questões ligadas a uma pesquisa sobre as movimentações sociais nesse período, ainda tão perto de nós, ouvi recentemente, em duas cassetes que guardo religiosamente, uma entrevista que fiz, em 2004, ao saudoso João do Machado, homem de uma verticalidade ímpar, elemento activo do PCP e que viveu grande parte da sua vida na linha da frente, em luta permanente contra as injustiças sociais e políticas da sua terra, sofrendo por causa disso os horrores da tortura e do encarceramento. Esse mesmo testemunho levou-me a recordar a minha avó paterna que ia, clandestinamente, e sem que os filhos sonhassem, ouvir a Rádio Moscovo, nos idos anos 50 e 60, à casa de um amigo, o Joaquim Badalinho (este também preso por causa dos seus ideais), para entender um pouco mais de política e tomar consciência das injustiças que se viviam no nosso país.
Estas memórias transportaram-me a um Montemor que viveu décadas de medo e de intolerância, que jamais deveriam voltar: pensava-se três vezes antes de emitir uma opinião, olhava-se para os lados antes de se tecer qualquer comentário, desconfiava-se do vizinho ou da vizinha, porque ninguém sabia quem estava a soldo do regime. É, sobretudo, ao ver os exemplos de vida destes homens e das suas mulheres, igualmente corajosas e lutadoras, que gostaria que nada disto se repetisse tantos anos depois. Porque quero que os meus filhos, os meus sobrinhos, os meus futuros netos, e os alunos com quem trabalho todos os dias, sejam livres, respeitadores e respeitados, olhando, olhos nos olhos, todos os seus conterrâneos, todos os seus compatriotas, independentemente da sua cor política, da sua formação, do seu trabalho, das suas opiniões ou da sua opção religiosa. E que nunca, nenhum partido, de esquerda, centro ou direita, se arrogue detentor da verdade absoluta e dono do pensamento de cada um. E que Montemor seja, de facto, uma cidade sem medo da modernidade, do progresso e do pensamento livre, nem que seja em sinal de respeito pela memória e pelo sofrimento dos nossos antepassados.
Quando aconteceu a Revolução de Abril de 74, nesse dia 25, o meu Pai foi a casa à hora do almoço. Eu, com os meus treze anos, lembro-me de ele ter dito à minha Mãe, que estava a acompanhar na rádio (num misto de receio e de entusiasmo) a evolução dos acontecimentos: “Não faças muito alarido, porque isto ainda pode voltar para trás.”
Espero que esta frase do meu querido e saudoso Pai, naquela altura mais novo do que eu sou hoje, não tenha tido qualquer carácter profético. Nem no meu país e muito menos na minha cidade.