quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

Salvemos Greta Thunberg!




Eu não devia estar aqui. Eu devia estar
na escola, no outro lado do oceano.”
G. Thunberg

            O fenómeno Greta Thunberg tem dividido a opinião pública e dado capas com fartura a revistas e a jornais, e aberturas de noticiários nunca antes pensadas, quando se trata de temas relacionados com o ambiente.
            Há os que acham toda esta movimentação um exagero e criticam a adolescente que, na sua opinião, deveria estar na escola e não se deixar envolver em esquemas alegadamente construídos por alguém mais poderoso. Por outro lado, temos os que a aplaudem entusiasticamente e se juntam aos protestos, acreditando ser este o caminho certo para despertar os líderes mundiais de modo a darem início a uma melhor política global em termos de ambiente.
Tal como os primeiros, penso que Greta Thunberg é demasiado jovem para andar numa barafunda destas e que sim, que em Portugal tal não seria possível, porque a Lei obriga a que “se vá buscar o aluno a casa” quando ele se ausenta da escola sem motivo que o justifique. Não sei se a luta por um Planeta melhor seria aceite como justificação pela directora de turma. No entanto, tal como os segundos, concordo que haja acções concertadas por parte de todos os países, sobretudo os mais poluentes, para que o Planeta não avance para a destruição total. O que a jovem em causa nos tem mostrado, valha-nos isso, é o desconforto de alguns políticos em reacção aos seus ataques, nem sempre muito assertivos, e a visibilidade que o tema alcançou, apesar de todas as incoerências, discórdias e divisões.
Temos, sem dúvida, de salvar a Terra. Comecemos por fazê-lo na nossa própria casa. Na nossa própria cidade. 
(Daqui a algum tempo é Greta Thunberg que vai precisar de ser salva.)

João Luís Nabo
In "O Montemorense", Dezembro de 2019

segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

Traições (sublimes)







Emma: Ainda pensas em mim?
      Jerry: Não preciso de pensar em ti.

Traições (Betrayal), por muitos considerada a obra-prima do dramaturgo britânico Harold Pinter (1930-2008), foi estreada a 15 de Novembro de 1978, em Londres, no National Theatre, e em Portugal, no ano seguinte. Em Montemor, subiu à cena recentemente, no passado dia 6 de Dezembro, pela Associação Theatron, com a produção executiva de Todinha Santos, no Espaço do Tempo, agora sediado na antiga Oficina Magina, 
            A criativa encenação de Paulo Quedas e a exploração dos jogos de luz, de som e de imagem, pelos cada vez mais sofisticados Tiago Coelho e Helena Barreiras, trouxeram-nos um Harold Pinter absolutamente actual, focado nas glórias e nas misérias, nas forças e nas inseguranças do ser humano, à deriva, sempre à deriva, consoante os sentimentos e os impulsos de que se alimenta, condicionado pelo sucesso, pelo fracasso, pelas relações conjugais, pelos laços de amizade e pelo sexo.
            O público era constituído por apenas 15 (sim, quinze) espectadores, convidados a fazer, de certo modo, parte da peça, como figurantes/voyeurs, que assistem ao desvendar dos mais íntimos segredos, protegidos (ou não) pela memória, e escondidos nos cantos mais profundos das três personagens em conflito.  O desconforto provocado no espectador, confrontado com questões que, aparentemente, não lhe dizem respeito, é tal que, nos momentos de maior tensão, lhe apetece disfarçar, ir até lá fora, apanhar ar ou fumar um cigarro, para dar tempo a que Jerry, Robert, Emma e Judith (que nunca aparece) resolvam as graves questões em que assenta a peça: o adultério, a traição e as memórias impossíveis de segurar. É, pois, o passado que regressa, implacável, aos olhos deles e aos nossos.
            Rosa Souto Armas (Emma), Filipe Fernandes (Jerry) e Bernardino Samina (Robert) mostram-se cada vez mais amadurecidos nos papéis que assumem e interpretam. Pinter, nas palavras deste trio, ficou ainda mais subtil e, por isso mesmo, mais violento, mais ironicamente revelador. Durante pouco mais de uma hora, assistimos a momentos verdadeiramente sublimes, quando, numa empatia perfeita, exploraram as subtilezas do texto, com os tempos mais do que correctos e os silêncios mais do que enervantes, de modo a acelerar o batimento cardíaco do espectador, sobretudo quando o que ficava por dizer era muito mais esclarecedor do que aquilo que se tinha dito. O espectador, esse é a verdadeira vítima do texto de Pinter: entramos em cena, servimo-nos educadamente de uma bebida e vamos deambulando pelos diferentes cenários, espreitando, constrangidos, as vidas duplas das personagens em permanente conflito.
Falei com o meu filho mais velho no final da récita e ele resumiu de forma simples, mas absolutamente esclarecedora, o que tínhamos acabado de ver: “Estivemos num Facebook ao vivo, a fazer um scrolling da vida dos outros”.
            O mais assustador é que nós, os espectadores, as mulheres e os homens reais deste mundo, ficámos durante aquele tempo a olhar para nós próprios, num espelho que reflectia também, quiçá, o nosso passado, o nosso presente e o nosso futuro. Onde surgiram os fantasmas que nos atormentam, as relações de amizade falhadas, os casos amorosos por concluir e… as nossas próprias traições.
            Mais do que as palavras de Pinter, na voz e no corpo destes actores, e nas mãos do Paulo do Tiago e da Helena, foram os silêncios que me incomodaram.
E de que maneira.

João Luís Nabo
In O Montemorense, Dezembro de 2019

sábado, 16 de novembro de 2019

As Leis da Nação - II



As alterações à lei que rege o sistema educativo nacional têm sido tantas, que os professores até ficam zonzos com a catadupa de informação que recebem dia sim, dia sim, com orientações superiores em formato de Decretos-Leis, Portarias e má-na-sê-quê, para que cada vez menos alunos fiquem retidos, ainda que não mostrem conhecimentos suficientes para transitar. Segundo já se sopra na Assembleia da República, e com comentários de gente de, alegadamente, reconhecido mérito, levar as crianças, deste o 1.º até ao 9.º ano, sem reprovações, vai ser uma obrigatoriedade de todos os docentes, não tendo tal questão importância de maior.
É aqui que começamos a perguntar se a lei, a ser aplicada, não virá apenas legitimar aquilo que já vem acontecendo há meia-dúzia de anos. Os professores que trabalham com alunos do ensino básico, do 1.º ao 9.º, procuram sempre rodear-se de profissionais, de acordo com a lei, que os ajudem a ajudar os jovens que mostrem mais dificuldades na aquisição dos conhecimentos e, sobretudo, na aquisição de… valores. Tentam, esses professores, por todos os meios, conduzir os alunos ao sucesso e à permanente integração no seu grupo-turma: trabalhos extra, apoios, tutorias, adaptações curriculares, testes adaptados, apoio personalizado na sala de aula, entre outras estratégias. A lei, que poderá estar a chegar, não vem mostrar nem obrigar a nada de novo. Por isso, não entendo o bruaá que a “novidade” está a causar.
Contudo, as consequências disto podem ser (já estão a ser) menos positivas e, a longo prazo, o país irá sofrer as devidas consequências. Para já, os alunos começam a chegar ao ensino secundário com algumas lacunas, por vezes difíceis de colmatar, tanto em termos de conhecimentos, como em termos de valores sociais. Por aquilo que vejo e sei, por este andar, o mais certo é daqui a três anos sair uma lei que nos obrigue a transitar toda a gente até ao décimo segundo ano, que passará, decerto, a ser um ano sem exames ou, então, com exames de nível tão básico, que todos irão para a universidade, sem problemas de maior e se houver capacidade financeira dos pais para tal.
Mas esta última parte do desabafo é já assunto para outro Cloreto. Isto, porque Portugal continua a ser um país a duas velocidades, sobretudo quando pensamos em alguns alunos que por nós passaram e que não seguiram estudos… porque não havia meios financeiros para tal. O que foi pena.

João Luís Nabo

In "O Montemorense", Novembro de 2019

quinta-feira, 14 de novembro de 2019

As Leis da Nação - I




É encontrado um bebé recém-nascido num contentor do lixo. Investiga-se. Descobre-se que a mãe é uma jovem de vinte e poucos anos, sem-abrigo, só, desprotegida. O Estado toma providências para que o bebé seja tratado o melhor possível, como seria evidente, e toma providências para que se enfie a mãe na prisão. Tem de ficar em preventiva, acusada de homicídio na forma tentada, diz a lei.
A lei é fria e não consegue varar as pessoas até lhes chegar à alma*. A lei é crua e só admite excepções para quem bem o legislador e a Assembleia da República entendem. A lei, desta vez, também não protegeu quem mais precisava. Para esta mãe, sem-abrigo, só, desprotegida, não houve qualquer regime de excepção. Ninguém se lembrou de a enviar para uma associação adequada ao seu perfil e às suas necessidades, até ser altura de ser confrontada com todo o calvário de um processo judicial. “Não se deve atirar pedras”, referiu uma indignada Manuela Eanes, em defesa da jovem, quando questionada sobre este caso, mostrando a sua total discordância em relação à forma como tudo está a ser conduzido. E tem razão a ex-Primeira Dama.
E a família desta jovem mulher? Qual o seu grau de responsabilidade neste seu gesto desesperado, nos motivos que a levaram a viver a vida passada na rua, sem qualquer esperança no horizonte? E o pai do bebé? Qual o seu grau de responsabilidade, quando a jovem dá à luz o seu filho e o abandona à morte certa? Hoje, já não é impossível saber-se quem é pai de quem. E, por isso, também ele deveria ser chamado e ouvido. Vi o Presidente da República a abraçar, comovido, o senhor, também ele sem-abrigo, que salvou (e, depois, parece que não foi ele) o bebé recém-nascido. Não vi o Presidente da República a abraçar a jovem mulher, só e desprotegida, e em óbvio sofrimento físico e psicológico.
E qual é, afinal, o papel do Estado? Apenas prender uma mulher de vinte e poucos anos, mãe recente, só e desprotegida. Apenas e só. Que se saiba, ninguém ainda se preocupou, pelo menos publicamente, com o porquê daquela atitude que muitos classificam como criminosa, se estivermos de acordo com a lei dos homens, mas que merece uma séria investigação por uma equipa multidisciplinar, que tente saber o porquê de tudo o que aconteceu até ao parto, momento dramático e de contornos indescritíveis. Esta jovem mulher, que poderia ser filha de qualquer um de nós, tem, com toda a certeza, uma história de vida pouco invejável mas que, a ser devidamente analisada, iria ajudar os habituais polícias da moral e dos bons costumes a perceber e a ajustar a pena a aplicar à mulher que, infelizmente, irá ficar sem o seu filho.
Não será o eventual encarceramento que vai resolver os problemas desta mãe. Nem os de outras mães em igual caso de desespero.


*Obrigado, F. Pessoa


João Luís Nabo

In "O Montemorense", Novembro de 2019

sexta-feira, 18 de outubro de 2019

Seis Pontos na Ordem de Trabalhos



Ponto 1: Este primeiro ponto era para dizer que continua a ser complicado termos ideias próprias nesta terra de santos e heróis. E também era para dizer que, se criticarmos as decisões menos boas do executivo camarário, corremos o risco de sermos bombardeados com bocas e dizeres do tempo do PREC. Porque há sempre meia dúzia de paladinos que vêm defender o indefensável, sem quererem perceber que houve, de facto, uma evolução nas mentalidades e que as pessoas, todas as pessoas, já podem e sabem pensar por si. Mas como isso poderia tornar-me, mais uma vez, alvo de comentários democráticos e progressistas, o Ponto Um fica sem efeito.

Ponto 2: A campanha para as últimas legislativas foi das mais vergonhosas na história da democracia. Mentiu-se descaradamente, utilizaram-se as questões judiciais, as falhas de governação, a falta de decoro de António Costa, gozou-se de forma desumana com as deficiências de alguns candidatos, aproveitaram-se todos os erros, conscientes ou inconscientes, dos adversários políticos, por forma a denegrir, rebaixar e ofender todos os candidatos, com um destaque miserável para o desprezo dado aos partidos sem representação na Assembleia da República, a auto-proclamada casa da Democracia (tá bem, abelha!). A acrescentar a isso, os meios de comunicação social mostraram, e bem, quem eram os seus candidatos preferidos. Outra vergonha. Eu explico: numa arruada qualquer, num local perdido no meio do país, bastava a imagem captada pelo ângulo certo da câmara, o ponto de vista escolhido pelo fotógrafo, a frase retirada do contexto pelo jornalista, para que o candidato viesse a ganhar ou a perder popularidade ou vantagem nas tão estupidificantes sondagens.

Ponto 3: Rui Horta não pára. Não baixa os braços. Temos o Convento da Saudação com obras já adjudicadas com o imprescindível apoio da autarquia montemorense. O Espaço do Tempo continua em frente, desta vez na antiga Oficina Magina, um local renovado, onde muitas criações irão acontecer, enquanto o Convento não estiver pronto para continuar a receber alguns dos maiores criadores artísticos do mundo. E ainda há gente que não entendeu a mais-valia, o valor acrescentado, o prestígio que Horta e a sua equipa trazem para esta cidade.
Taditos!

Ponto 4: O ponto anterior leva-me a este assunto que só poderia vir no ponto 4. Depois de, em Abril, terminar o “reinado” de um ano do Grupo Fora d’Oras, que representou, e bem, Montemor, através do Cante, Património Imaterial da Humanidade, embora Montemor só tivesse começado a tradição do Cante Alentejano com o Fora d’Oras, seria de uma profunda injustiça cultural, não ser o Espaço do Tempo o próximo Embaixador de Montemor no Mundo, por tudo o que fez e o que fará nesta e por esta terra, em termos de dança, de música, de criação artística em geral, pela sua ligação aos montemorenses, pela forma como Rui Horta e equipa se oferecem à comunidade, levando o nome de Montemor às partes mais longínquas do planeta.

Ponto 5: D. José Tolentino de Mendonça, um dos meus clérigos preferidos de sempre, foi recentemente elevado à púrpura cardinalícia pelo Papa Francisco. É com orgulho que vemos a nomeação deste português, padre, poeta, escritor, filósofo, pensador para um cargo de tamanha dimensão. Aumenta-se-nos a esperança de que ele, como um dos mais próximo do Papa, se transforme num auxiliar de excelência para defender as vítimas dos abusos cometidos por alguns membros da Igreja e ajudar a pôr na cadeia os terríveis perpetradores. Aí, o nosso orgulho como portugueses, e muitos, como católicos, seria bem maior.

Ponto 6: Recomeçámos as aulas e com elas o contacto com os alunos e as alunas que, apesar dos tempos que correm, tão céleres e aparentemente diferentes dos tempos em que éramos miúdos, são adolescentes iguais a tantos que por nós passaram nestes 36 anos de carreira. Precisam de se sentir seguros, aguardam constantemente o olhar aprovador do professor quando os conhecimentos estão no seu devido lugar, sentem-se livres quando lhes ensinamos que a liberdade de expressão e de pensamento é válida para todas as áreas e para todas a aulas, mostram-se apreensivos quando lhes ensinamos que para a máxima liberdade deve haver a máxima responsabilidade, preocupam-se com a chamada de atenção que, muitas vezes, é suficiente para lhes mostrarmos que somos da mesma equipa e que queremos todos o mesmo: o sucesso e a felicidade, a passagem do conhecimento e dos valores que também nos ajudaram, a nós, mais velhos, e hoje menos inocentes, a ultrapassar as dificuldades maiores da vida.
Penso, muitas vezes, que estava na idade certa para partir. Porque outros planos me esperam. Tão ou mais exigentes que esta minha profissão. Mas, pelos vistos, se ficar por aqui durante mais três ou quatro anos, a tentar fazer os putos felizes e mais conhecedores da vida que os espreita lá fora, também não vem daí mal ao Mundo e… os planos, os outros planos, podem muito bem esperar por mim.

sexta-feira, 6 de setembro de 2019

Déjà-vu



Depois de levantada a última barraca da Feira da Luz/Expomor 2019, cujo balanço é sempre igual (muitos gostam, alguns não), e regressados à realidade do nosso quotidianozinho, acabamos por concluir que, para viver pacificamente os dias que nos restam, basta, tal como antes das férias, não sair do mainstream onde navegamos, exercendo os brandos costumes a que nos habituámos e a que nos habituaram. E porquê?
Porque o exercício da democracia se está a transformar num grande imbróglio e, se querem saber mesmo a verdade, a própria democracia está a tornar-se, cada vez mais, num conceito abstracto e, cada vez menos, numa prática concreta (peço perdão pela redundância). Porque se mostra todos os dias uma consideração mínima, ou nula, em relação às minorias ou aos que estão à margem dos partidos políticos e das correntes religiosas. Porque quem é diferente, quem não tem partido ou religião, começa a ser considerado um elemento que não deve ser ouvido, nem lido, e cujas ideias nem sequer devem ser discutidas, porque lhes falta… “fundamento”. Os exemplos que estão subjacentes a esta reflexão são inúmeros e, muitos deles, a serem expostos aqui, poderiam (lá está) ser mal interpretados ou lidos de viés, com consequências e juízos de valor pouco abonatórios para quem os emite.
Mas temos de ser claros: no país, continua a haver filhos e enteados, primos e primas do Poder, assimetrias escandalosas e acentuadas, quando comparamos o interior com o litoral, para não referir a desertificação do Alentejo, resultado de más políticas, de interesses esconsos, de combinações, de guerras de bastidores.
Os professores continuam a ser descaradamente desrespeitados pelo Estado, quando deveriam, à imagem do que se passa noutras latitudes, ser considerados elementos essenciais na formação dos jovens e membros de uma das mais nobres profissões; o Sistema Nacional de Saúde obriga doentes graves a esperarem meses sem fim para serem submetidos a cirurgias urgentes, com as terríveis consequências que isso acarreta; os médicos e os enfermeiros querem fugir de Portugal à procura de uma vida equilibrada e feliz; o desemprego continua a ser um flagelo, mascarado pelos ditos estágios profissionais, muitos deles não remunerados, que não passam de uma forma moderna de exploração; os cidadãos continuam, de forma consciente, a mostrar, com maior frequência, o seu lado mais primitivo e egocêntrico – no trânsito, no emprego, no supermercado, no restaurante, na praia; os incendiários são apanhados e libertados logo de seguida, porque têm uma doença, coitados, e má-na-sê-quê; os trabalhadores das mais diversas áreas já não se revêem nos sindicatos, que os representam cada vez pior, e sempre e cada vez mais com a partidarite como fio condutor do seu trabalho; o povo português já pouco acredita no poder do voto e nas mudanças que tal arma poderá ter para a sua vida e para a vida dos seus filhos e netos, esquecendo que, se a política é para os políticos, eles não poderão exercê-la se não formos nós a outorgar-lhes essa possibilidade. E os políticos, com responsabilidades de governação? Esses perderam completamente o sentido de Estado e comportam-se como se fôssemos todos amiguinhos e ex-colegas de escola. Usam as redes sociais para responder às críticas das oposições e acreditam que o twitter é o seu melhor instrumento para governar. Por outro lado, o Presidente da República anda, há uma série de meses, com paninhos quentes, a tentar convencer os portugueses de que vivem num paraíso. (E alguns acreditam e babam-se todos quando ele fala!) Nunca nos devemos esquecer que um tal senhor chamado Cavaco Silva disse ao país, em Julho de 2014, que não havia problemas com o BES e, dias depois, foi o escândalo vergonhoso que se viu.
Neste país, nesta santa terra, nada é o que parece. Nada parece o que é.

Os portugueses estão a perder, aos poucos, a noção da realidade. Dizem preocupar-se muito com o futuro, mas vão para a praia em vez de irem votar. O importante é mostrarem-se nas redes sociais, afirmando-se os mais bem vestidos, os mais viajados, os mais bem penteados, os mais engatatões, os mais bronzeados, os mais totós, os melhores dos melhores em qualquer área, desde que os resultados sejam imediatos e a sua consecução não dê muito trabalho, que isto a vida não está para grandes chatices.
E há os que, de forma diabólica e cobarde, usam as redes sociais sob pseudónimos asquerosos, para denegrir os que, de forma transparente, trabalham diariamente, nos mais diversos sectores (política, educação, saúde, movimento associativo, economia, apoios sociais, cultura), por um país melhor, por uma cidade mais atraente e mais evoluída. Se tudo isso não tem a ver com o Poder…
Mas o Poder, e o Poder Absoluto, tem sempre as suas consequências. A médio ou a longo prazo. Não fui eu que inventei isto. É a História que nos tem mostrado que a democracia, se não acompanha a evolução dos tempos, é, indiscutivelmente, o melhor terreno para o suave nascimento de uma ditadura, que tanto pode vir de esquerda como de direita. É esta evolução lenta, esta metamorfose orgânica, esta transformação assustadora, feita aos olhos de todos e com a legitimidade das urnas, que nos deve pôr de sobreaviso.

Se estou preocupado com o futuro? Mais do que isso. Estou preocupado com o presente, quando dou comigo a pensar no passado. Nas décadas de 40 e 50, a minha cidade, então vila, foi palco das mais corajosas lutas pela liberdade. José Adelino dos Santos e Germano Vidigal foram assassinados nesta terra, porque ousaram levantar a voz contra o status quo da ditadura salazarista, que muitos tentam agora branquear das mais diversas formas. Foram montemorenses que disseram não, quando os queriam obrigar a dizer sim. Pagaram caro a sua ousadia: foram presos, torturados, silenciados, exilados, mortos, abandonados por um sistema controlado por um poder totalitário e impiedoso.

Por questões ligadas a uma pesquisa sobre as movimentações sociais nesse período, ainda tão perto de nós, ouvi recentemente, em duas cassetes que guardo religiosamente, uma entrevista que fiz, em 2004, ao saudoso João do Machado, homem de uma verticalidade ímpar, elemento activo do PCP e que viveu grande parte da sua vida na linha da frente, em luta permanente contra as injustiças sociais e políticas da sua terra, sofrendo por causa disso os horrores da tortura e do encarceramento. Esse mesmo testemunho levou-me a recordar a minha avó paterna que ia, clandestinamente, e sem que os filhos sonhassem, ouvir a Rádio Moscovo, nos idos anos 50 e 60, à casa de um amigo, o Joaquim Badalinho (este também preso por causa dos seus ideais), para entender um pouco mais de política e tomar consciência das injustiças que se viviam no nosso país.
Estas memórias transportaram-me a um Montemor que viveu décadas de medo e de intolerância, que jamais deveriam voltar: pensava-se três vezes antes de emitir uma opinião, olhava-se para os lados antes de se tecer qualquer comentário, desconfiava-se do vizinho ou da vizinha, porque ninguém sabia quem estava a soldo do regime. É, sobretudo, ao ver os exemplos de vida destes homens e das suas mulheres, igualmente corajosas e lutadoras, que gostaria que nada disto se repetisse tantos anos depois. Porque quero que os meus filhos, os meus sobrinhos, os meus futuros netos, e os alunos com quem trabalho todos os dias, sejam livres, respeitadores e respeitados, olhando, olhos nos olhos, todos os seus conterrâneos, todos os seus compatriotas, independentemente da sua cor política, da sua formação, do seu trabalho, das suas opiniões ou da sua opção religiosa. E que nunca, nenhum partido, de esquerda, centro ou direita, se arrogue detentor da verdade absoluta e dono do pensamento de cada um. E que Montemor seja, de facto, uma cidade sem medo da modernidade, do progresso e do pensamento livre, nem que seja em sinal de respeito pela memória e pelo sofrimento dos nossos antepassados.

Quando aconteceu a Revolução de Abril de 74, nesse dia 25, o meu Pai foi a casa à hora do almoço. Eu, com os meus treze anos, lembro-me de ele ter dito à minha Mãe, que estava a acompanhar na rádio (num misto de receio e de entusiasmo) a evolução dos acontecimentos: “Não faças muito alarido, porque isto ainda pode voltar para trás.”  
Espero que esta frase do meu querido e saudoso Pai, naquela altura mais novo do que eu sou hoje, não tenha tido qualquer carácter profético. Nem no meu país e muito menos na minha cidade.


João Luís Nabo

In "O Montemorense", Setembro de 2019

domingo, 14 de julho de 2019

As Obras de Santa Autarquia



Vamos de férias. Quem quiser, ou puder, sair de Montemor, parte com uma estranha e dolorosa imagem na retina: a de uma guerra infindável, a de uma Guerra dos Seis Dias (dos Cem Anos) ali para a Zona do Centro Histórico, que envolve o Jardim Público e as ruas adjacentes. Após tantos meses de buracos, de escavações, de rebentamentos, de informações e contra-informações, todo aquele espaço, tão característico de Montemor, continua a parecer, todos os dias um bocadinho mais, um cenário de guerra onde poucos são os sobreviventes. Poucos são os comerciantes que continuam com coragem para manterem as portas abertas.
Já sabemos que obras (em casa ou fora dela) são sempre uma dor de cabeça. O que os responsáveis autárquicos e de quem anda a mexer no espaço parecem não ter percebido é que aquela zona, tão emblemática da cidade de Montemor-o-Novo, não estava em condições de beneficiar de obras, feitas, pelo menos, daquela forma. E têm de aceitar que assim é.  Parece terem faltado as prospecções geológicas adequadas (não digo que não as tenham feito), de modo a que, depois, se actuasse em conformidade, de forma mais rápida e mais eficaz, para que as obras subsequentes prejudicassem minimamente o dia-a-dia do comércio daquela zona. “Ninguém sabia o que iria encontrar”, diz-se por aí em defesa dos envolvidos. Então, digo eu, que não percebo nada disso, não há aparelhómetros, com ecrãs e tudo, que nos dizem o que se encontra no subsolo? Estarei enganado? Não houve tempo (ou dinheiro) para se utilizarem essas engenhocas? Num país do século XXI? Numa obra da responsabilidade de uma Autarquia moderna e práfrentex?
E os que ali têm montado, há anos, o seu ganha-pão? Com despesas certas: água, luz, rendas, impostos, ordenados aos empregados...? Todos os comerciantes, pelo menos com quem falei, focaram o decréscimo abismal das vendas, em comparação com as dos anos anteriores. Todos mostraram o seu desagrado, a sua tristeza, o seu desespero porque, apesar das explicações e das justificações da D. Autarquia, da sua boa vontade e da sua aparente solidariedade, nada se resolveu de acordo com o esperado.

Vamos de férias e, quem quiser, ou puder, sair de Montemor, vai com a certeza, pelo menos é o que diz a Fofa, de que, quando regressar, encontrará tudo exactamente na mesma: os buracos, o pó, a lama (se chover, que isto o Buraco do Ozono anda completamente amalucado), o desespero dos comerciantes e dos moradores que nunca mais têm sossego... nem as casas limpas.
Sabemos que os diversos partidos da Oposição têm manifestado a sua preocupação e lançado as suas críticas à forma como todo o processo está a ser conduzido. No entanto, no estado em que estão as coisas, aquilo que é mais natural acontecer é as obras continuarem, uns dias para a frente, outros dias às arrecuas, sem que ninguém possa fazer nada. O que é importante é que tudo esteja pronto antes de Setembro ou de Outubro de 2021, que é quando vamos votar na próxima ou no próximo Presidente da Câmara.
Gostaríamos de, qual deus Janos, ter uma das nossas (muitas) caras viradas para o futuro para visualizarmos como estará todo aquele espaço nessa altura. Com um Jardim decente e acolhedor? Com a Rua de Aviz, metade para pedestres e metade para trânsito? Com as empresas transportadoras de materiais a terem de estacionar... não sabemos onde? As lojas ainda estarão abertas e a tentar recuperar o enorme prejuízo que estas decisões camarárias lhes estão a dar? A Presidente Hortênsia irá ainda inaugurar a obra com a pompa e a circunstância devidas? Ou será o Presidente Olímpio Galvão, ou o Presidente Vítor Vicente? Ou o/a Presidente da área do PSD, se o/a houver na altura?
Ou será qualquer outro presidente a cortar a fita que, entretanto, decida dizer “basta!” a tanta falta de tacto, a tanta briguinha de trolaró, e tenha, na verdade, vontade e carisma para elevar a cidade e o concelho ao topo da hierarquia da qualidade, da estética e da captação de investimentos e de novas gentes que nos ajudem a progredir?
Não sabemos.
Agora, resta-nos irmos de férias (quem puder) e aguardar, esperançosos, que a cidade e a D. Autarquia  não se transformem num ninho de grifos a sacudirem as águas (que são muitas) do capote, em relação aos disparates que ninguém ainda foi capaz de corrigir. “Ah”, resfolgou levemente o Balú, erguendo a orelha esquerda (ele que nunca foi muito de politiquices), “e espero que, quando os meus donos voltarem do Dubai, que o Castelo ainda esteja inteiro e que as associações de Montemor, pelo menos aquelas que têm feito um trabalho meritório em prol da cidade, do concelho e do país, tenham mais apoio da D. Autarquia que, segundo o meu excelentíssimo dono, que tudo sabe e que tudo diz, se está a tornar numa grandessíssima forreta.”
E, claro, ficamos sempre curiosos sobre quem irá ser o próximo embaixador cultural do concelho de Montemor, terra de actores, de cantores, de bailarinos, de toureiros, de pintores, de escritores e de músicos. E de arquitectos e de engenheiros e de operários fabris, e de gente ligada à ecologia, e de agricultores e de comerciantes. Montemor tem, na verdade, tanta gente de valor!
Mas há as outras, as que mentem, as que não cumprem com os seus compromissos, as que exigem tudo sem dar nada em troca, as que prometem o Céu e a Terra e continuam fechadas em si e nos seus dogmas, que apregoam umas coisas e fazem outras totalmente contrárias, sem aceitarem as ideias do seu semelhante e que julgam os outros por serem diferentes. Dessas não me apetece falar aqui.

Pronto, era isto. Boas férias.

João Luís Nabo
In "O Montemorense", Julho de 2019

quarta-feira, 19 de junho de 2019

Mais uma etapa (mais ou menos mal) ganha




            Quanto mais passam os anos, mais reconheço a inutilidade de algum tipo de ensino. O sistema pelo qual nos regemos neste país de fantoches é do piorzinho que há. Ao chegarmos a esta altura, tempo de testes, de exames, de avaliações e de decidir o futuro, não há ninguém que não ande com o credo na boca. Os professores, porque não é seu desejo reprovar os alunos; os alunos, porque querem, a todo o custo, passar de ano; e os encarregados de educação, que não querem, mas de modo nenhum, que os seus educandos reprovem.
            E o mais curioso é que este estado de ansiedade vai, na maior parte das vezes, acabar bem, com toda a gente feliz e contente. Porquê? Porque o sistema, o nosso sistema, é amigo, é permissivo e é injusto, porque o sistema quer alunos com o ego bem alto, apesar de não saberem o mais básico dos básicos; porque o sistema é injusto para os que mais sabem; porque o sistema quer pais orgulhosos que votem nos partidos do Governo que tornem cada vez mais facilitadoras as medidas de avaliação e de passagem de ano da rapaziada. O sistema quer ainda que nós, professores extraordinários, cujos métodos são obrigados a perder o rigor de outros tempos, levem a que os alunos aprendam matérias mais ou menos complexas (para menos) e demonstrem mais ou menos (para menos) a solidez dos seus parcos conhecimentos nos testes e nos exames.
Mas está mal. Está tudo mal. Alguns alunos agora têm tanta sorte que, se conseguirem escrever, sem erros ortográficos, o seu nome e número no cabeçalho do teste, já ganham metade da cotação. A imagem utilizada aqui é mais do que ridícula, mas ilustra muitas vezes o que acontece por essas escolas deste nosso país, com alunos que nada fazem durante o ano lectivo e que, depois, querem, à viva força, passar no final do ano. E, o mais engraçado, é que passam mesmo. Depois de terem passado o ano inteiro esquecidos dos livros e dos cadernos em casa; depois de terem passado o ano inteiro a entrar atrasados nas aulas (em algumas, não!); depois de terem passado o ano inteiro a procurar “inspiração” na Internet através dos telemóveis, enquanto tentam fazer os mais diversos testes de avaliação; depois de terem passado o ano a plagiar textos escritos por outros, que muitas vezes nem conhecem, e que não citam nem referem e que, depois entregam aos professores como se os trabalhos fossem deles; depois de passarem o ano a fazer selfies nas aulas e transmissões em directo para o Facebook; depois de não obedecerem aos professores que lhes pedem, encarecidamente, para deixarem os telemóveis dentro das mochilas; um ano depois de nunca terem feito os trabalhos de casa ou outros trabalhos de pesquisa para aumentarem os seus conhecimentos e a sua prática de estudo; depois de, raramente, entregarem os trabalhos solicitados; depois de se terem recusado a ler ou a ir ao quadro resolver um problema; depois de, enfim, terem utilizado a escola como um clube de terceira categoria onde passam o tempo em entretengas sem sentido e a coçar a micose, enquanto os pais se esfalfam para lhes dar tudo de bom e do melhor.
Querem passar de ano? Porquê? O que fizeram para merecer tal? E o sistema, não vê isto?
Os meus alunos não são extraterrestres, mas nunca desrespeitaram o meu trabalho, nem o trabalho dos que estavam na mesma sala consigo. Perceberam que a intenção do professor que passou o ano com eles era fazer deles uns seres humanos melhores, que acreditassem neles próprios e que se prontificassem a ajudar os que precisam. Todos eles perceberam a importância dos princípios, dos valores e do saber, arma essencial para vencer na magana da vida. Têm os seus defeitos, como todos, mas voltava a trabalhar com eles todos os dias.
Os Pais, com o final do ano lectivo, também começam a ficar um bocadinho mais ansiosos. E é normal. Mas acreditem, começa a deixar de haver paciência para alguns deles, sobretudo para os que pensam que os seus educandos são os maiores… mas nem sonham as figuras tristes que eles fazem nas aulas e nas faltas de respeito que mostram por quem tem o dever e o direito de os ensinar a serem uns homens e umas mulheres. Esses pais deviam, um dia, ser invisíveis e passarem um dia com os filhos nalgumas salas de aula. Depressa mudariam de ideias e muito mais depressa mudariam os métodos lá em casa, a primeira de todas as escolas.
Os meus alunos têm defeitos como todos os outros, mas os seus encarregados de educação têm sempre mostrado confiança no nosso trabalho e no nosso interesse em fazer deles melhores cidadãos do mundo. É por estas e por outras que os meus alunos, conhecendo muito ou pouco das matérias que lhes vamos ensinando, acabam por ser recompensados pelo seu esforço, pelo seu empenho, pelo seu trabalho e pelos valores de respeito, amizade e solidariedade que vão demonstrando durante o ano. E pelos conhecimentos académicos que vão adquirindo, claro.
E, assim, ganham eles, ganham os pais, ganha a escola e ganha a sociedade.

Boas férias.  
           

João Luís Nabo

In "O Montemorense", Junho 2019

domingo, 19 de maio de 2019

(Ainda não) é a hora




            Nem sempre estamos preparados para escrever sobre determinados temas. Nem sempre temos uma visão clara das várias possibilidades de interpretação dos acontecimentos que nos caem em cima todos os dias. Nem sempre queremos ver o lado da razão. A voragem do tempo (onde é que eu já li isto?) deixa-nos cegos, porque a velocidade com que somos obrigados a reagir nem sempre nos deixa pensar nas palavras certas para nos sentirmos, nós próprios, esclarecidos sobre aquilo de que temos dúvidas. Mas não é por isso que muitos dos nossos concidadãos se coíbem de espalhar aos quatro ventos a sua opinião. E têm-na sobre todos os temas, desde o futebol ao fado, da religião às culturas forrageiras, do fenómeno Osiriano à forma como se devem comer uvas sem bagas ou mesmo pastéis de Belém com dois pufes de canela.

Eu, cá por mim, sempre gostei de dar a minha opinião e, por vezes, devo assumi-lo, falo até sobre coisas que não são a minha praia. Contudo, fico sempre a saber mais quando me engano, quando exagero nos comentários, quando não consigo convencer muitos de que tenho alguma dose de razão ao dizer o que esses não gostam de ouvir, sobretudo se ocupam cargos públicos, dos quais dependem o nosso bem-estar e o nosso futuro. E quando afirmo que Montemor está a viver uma das piores fases das últimas décadas em termos de imagem e de organização de alguns serviços públicos, acabo sempre por receber alguns esclarecimentos, nem sempre isentos partidariamente, e nem sempre dirigidos aos factos que aponto ou descrevo. Porque há que defender a todo o custo os erros que dão trabalho a corrigir. E porque, no palco da política, os actores procuram sempre, como é óbvio, que o público não se aperceba dos movimentos nos bastidores.
           
Foi muito falado na altura, há menos de um mês, o célebre almoço oferecido pela autarquia aos seus trabalhadores, no dia 24 de Abril, como celebração do dia seguinte, que marcava os 45 anos daquela revolução que me permite escrever estas coisas. Levantaram-se vozes críticas, e, na minha opinião, certeiras, quando se verificou o transtorno que tal almoço veio provocar na dinâmica de determinados serviços relacionados com algumas escolas do concelho. Ainda que uma verdade indesmentível, não houve por parte dos responsáveis, pelo menos que eu tenha sabido, uma justificação cabal e lógica para tal procedimento. Almoço merecido, sem dúvida. Mas no momento errado. Por isso, deverá haver a necessária abertura e a humildade correspondente para a sua correcção em momentos futuros. Nada mais simples.
           
Continua a ser um verdadeiro calcanhar de Aquiles a obra que envolve o Jardim, a Rua 5 de Outubro, a Rua das Escadinhas, o Largo da República e a Rua de Avis. Os políticos passam por lá com frequência, em passeio ou em funções, e apercebem-se, tanto quanto os moradores e comerciantes daquelas zonas, da situação caótica em que todos se viram mergulhados, com ruas esburacadas, inundadas com as águas da chuva, ficando os transeuntes e os que ali vivem e trabalham num verdadeiro estado de nervos. Podemos reclamar, naturalmente que sim, marcar bem o nosso desagrado, publicar petardos nas redes sociais, mas temos de ser rigorosos, lógicos e intelectualmente honestos. Por muito que todos tenham razão, a autarquia e os responsáveis que lá vivem não têm, na minha opinião, de ser responsabilizados pela chuva, pela lama, pelo pó, pelos buracos ou pela aparente demora das obras. Para que toda aquela zona tenha um novo aspecto, provavelmente mais prático e esteticamente mais agradável, todo este movimento inestético, abusivo e prejudicial às nossas rotinas e ao sustento de alguns de nós é necessário e indispensável.

Mas se, por outro lado, os políticos da terra, de todos os quadrantes, pretendem utilizar esta questão como arma política para começar a discutir antecipadamente as próximas eleições autárquicas, julgo que não será esse o melhor caminho. Se, porventura, a inauguração deste espaço renovado coincidir com as vésperas dessa ida às urnas (lá para 2021), tal não será de admirar, pois o mesmo aconteceria com qualquer outro partido que governasse a câmara. (É a política, meus senhores!) E temos essa perfeita noção quando, em termos nacionais, assistimos às andanças de António Costa e demais familiares nestes tempos de eleições europeias e nacionais. As obras, essas, são absolutamente inocentes em relação a tudo isso e o executivo que as mandou fazer não tem de ser penalizado nas urnas pelos atrasos ou pelos avanços, pela chuva ou pela seca, que vão acompanhando todo o processo. A discussão para as autárquicas e a penalização nas urnas, se a houver, tem de ter outra base de diálogo. Deve discutir-se, isso sim, a necessidade de um urgente progresso económico do concelho e a consequente fixação de jovens à terra que os viu nascer ou onde decidiram viver a sua vida; deve ser implementada a aplicação de benefícios fiscais para quem, corajosamente, investe na cidade e no concelho, contra todas as marés e todos os velhos do restelo; é inadiável o investimento na desburocratização da nossa vida diária e na imperiosa necessidade de uma maior justiça no apoio às associações, em particular, e à cultura, em geral.
É por isso que esses debates devem passar, em primeiríssimo lugar, pela aceitação das opiniões de todos e pela vontade manifesta de uma abertura total em relação ao ajuste e à correcção do que deve ser melhorado. Para tal, há opções que devem ser feitas. Uma delas, fundamental na minha perspectiva, passa, obviamente, por uma maior libertação das orientações partidárias e pelo assumir, sem constrangimentos, que o autarca está em primeiro lugar e sempre ao serviço da população que o elegeu e não do partido que o lançou como candidato.

Sem querer fazer futurologia, acredito que, se não se operar uma mudança nos seus estatutos internos e nas suas ideologias antiquadas e “direccionistas”, os partidos têm os dias contados. Poderá ser apenas daqui a duas ou três décadas, mas os movimentos de cidadãos “livres” acabarão por ser a solução que marcará a diferença no nosso panorama autárquico. Porque também eles são conhecedores dos concelhos e dos aparelhos autárquicos que os governam e porque também eles mostram ter consciência das carências dos munícipes e da urgência de progresso nas suas terras. A marcar a diferença está a sua acrescida vontade ilimitada de construir uma comunidade mais unida, mais amiga e mais interessada nos seus vizinhos, independentemente das suas origens sociais e das suas ideologias políticas ou religiosas.
Estamos a viver no futuro. O passado já foi.

Sei que ainda não é a hora. Mas a hora soará.

João Luís Nabo

In O Montemorense, Maio 2019

quarta-feira, 24 de abril de 2019

Abril para todos

   

  Abril para todos A importância da Revolução de Abril, concretizada na madrugada do dia 25 desse mês, do ano de 1974, será sempre encarada como um marco que transformou radicalmente as vidas dos nossos pais, as nossas e as dos nossos filhos, resultado, sobretudo, de um profundo desejo de mudança, atravessado, após 48 anos de ditadura, nas gargantas e nas mentalidades dos portugueses. Mais de quatro décadas após essa data, quero continuar a acreditar que todos os sectores da sociedade e da política portuguesa a encaram como uma mais-valia para um futuro que se construiu para todos, sobre um passado cinzento, de miséria, de medo e de perseguições políticas.  Levarei comigo, quando me for embora definitivamente, a imponência das chaimites vindas de Estremoz, carregadas de soldados, descendo a avenida Gago Coutinho da então Vila Notável, nessa manhã clara e de esperança. Salgueiro Maia já as esperava em Lisboa. Essa imagem de determinação e vontade marcou de forma irreparável o rapazola de 13 anos que se dirigia para casa, aconselhado pela professora de Matemática, a minha querida amiga Jesuína Raposo, porque não estavam garantidas condições para o prosseguimento das aulas. Quando cheguei junto de minha Mãe, esta já ocupada na preparação do almoço, encontrei-a na cozinha, com o aparelho de rádio ligado, de onde saíam vozes de homens, entrecortadas por músicas militares e cantigas de Zeca Afonso. De quem eu nunca tinha ouvido falar. Tinha os olhos maiores e o sorriso mais aberto, misturado com a insegurança, a desconfiança que a caracterizava e o hábito de muitas décadas de silêncio e algum medo. O meu Pai chegou depois e mostrou-se igualmente receoso: “Vamos ter calma, que isto ainda pode voltar para trás.” Todas estas palavras foram, nesse momento, muito vagas para mim. Mas o que podia voltar para trás não voltou. Aos poucos e com o passar do tempo, comecei a enquadrar a Revolução num cenário lógico, com vozes, agora sonoras e destemidas, que tinham acabado de atravessar uma longa noite de silêncios e sobressaltos. Quando, no longínquo mês de Julho de 1970, no dia 27, a minha Mãe segredou ao meu Pai, após um noticiário da Emissora Nacional, “O homem já morreu”, eu, de ouvido alerta, perguntei-lhes: “Quem é que morreu?” O olhar aflito da minha Mãe confundiu-me. Pensei que tivesse sido alguém da minha família. A voz dela ainda me deixou mais sem rumo: “Não são contas do teu rosário. Não fales disto a ninguém. Vai brincar”. Evitar pronunciar com todas as sílabas o nome de Salazar, a ausência de liberdade, o temer pelo futuro, a guerra colonial estúpida e sem sentido (como se alguma guerra tivesse sentido), tudo isso foi revogado e assinado com cravos nas metralhadoras e gritos de alívio e de desabafo e de euforia. 

……………………………………………


     Quarenta e quatro anos mais tarde, ao rapazola já crescido apetece-lhe escrever sobre alguma da desilusão que hoje o acompanha. Não em relação aos princípios e aos valores de Abril. Esses são intocáveis e estão bem arrumados na sua cabeça. Mas em relação à apropriação que alguns partidos, sobretudo os mais à esquerda, parecem fazer desse movimento e dessa Revolução.  Se bem que a clandestinidade e as lutas contra o regime ditatorial de Salazar e Caetano fossem, na sua maioria, protagonizadas por portugueses ligados ao Partido Comunista Português ou próximos dele e por simpatizantes ou militantes de outras forças de esquerda, a Revolução, com R maiúsculo, com todos os seus frutos, todas as suas consequências, boas e más, é de todos nós: dos de esquerda, dos de centro, dos de direita e dos que não se encaixam em nenhuma das opções anteriores. Já era, pois, tempo de não se transformar uma celebração nacional e colectiva num comício político-partidário, onde o protagonismo de alguns se transforma no desconforto de outros. Assim, acredito eu, muito dificilmente será possível habitarmos livres “a substância do tempo” após aquele “dia inicial inteiro e limpo”.  
     Inicial inteiro e limpo.


João Luís Nabo

In "O Montemorense", Abril de 2018
In Cloreto de Sódio, 2019

quinta-feira, 11 de abril de 2019

Stabat Mater




            A cruz pesava-lhe no ombro, mas já não tanto como no início. O corpo coberto de pústulas de sangue e suor misturadas com o pó seco do caminho, dando origem a uma espessa camada de lama avermelhada, começava a estar dormente, afastado do seu pensamento.
O sangue quente e vivo escorria-lhe da cabeça, e a coroa de espinhos continuava fortemente enterrada no crânio, parecendo ter nascido ali, com origem nos cabelos suados, castanhos e lodosos. O Sol a pino cegava-o e ele quase não conseguia ver para onde atirava os pés doridos, que as sandálias já não conseguiam proteger. O caminho era íngreme, pedregoso, difícil. Como difícil tinha sido a sua vida e a sua luta pela fé.
Jerusalém estava cheia de gente, por altura da Páscoa. Muitos tinham vindo de longe só para verem, com os próprios olhos, a condenação e a morte de um homem que diziam ser o rei dos Judeus. A multidão cercava-o selvaticamente, gritando, urrando, fugindo às investidas dos soldados e dos cavalos, acicatando alguns cães que se misturavam com a turba em êxtase. Ele ouvia todo aquele barulho ensurdecedor, mas não conseguia distinguir as vozes. Esforçava-se, desesperadamente, por escutar, de entre a confusão de palavras, a voz gentil de Maria, sua mãe, que estivera sempre consigo, que o amava incondicionalmente, que sempre respeitara a sua vontade e as suas opções, que queria morrer por ele, se a deixassem. E Maria de Magdala, com o seu conforto e os seus olhos de avelã, doces e tristes, e João, o seu melhor amigo, o seu irmão, a sua paz. Mas o peso da cruz tirava-lhe a concentração, e desistiu. Sabia que estariam ali, a acompanhar o seu caminho derradeiro até ao Gólgota.
Sentiu que as forças lhe fugiam. Caiu mais uma vez. Mais uma vez os soldados romanos o levantaram a toque de lanças e de palavras sujas. Ergueu-se, as pernas a tremer e a garganta seca, seca, como as dunas do deserto. Dobrou-se para abraçar a cruz e pô-la de novo sobre os ombros, já em carne viva. Não foi capaz. O corpo não obedecia ao cérebro cansado. O estômago ardia-lhe e o coração parecia querer sair-lhe do peito. Apercebeu-se de que alguém lhe punha a mão na face. Por entre o sangue quase em crosta e o suor enlameado, abriu mais os olhos para ver quem era. Não era a mãe. Não era João. Nem Maria de Magdala.
“Chamo-me Simão. Vou ajudar-te”. E empurrado pelos soldados, após um brusco aceno de cabeça do centurião, o homem, já idoso, natural de Cirene, carregou a cruz durante uns bons metros. Os suficientes para aliviar um pouco o condenado. Este aproveitou para semicerrar os olhos e tentar ver, pela centésima vez, onde estavam os amigos. Escondidos, decerto. Amedrontados, como seria de esperar. A protegerem a própria vida.
Quando, com um esgar de sofrimento, se preparava para aceitar a cruz de volta, das mãos do Cireneu, viu uns olhos muito azuis, muito abertos, rasos de lágrimas, incrustados num rosto claro de tanta luz e triste de tanta dor. Era a mãe. Era a sua mãe que lhe estendia a mão frágil, como se com aquele gesto pudesse carregar também aquela cruz ensanguentada. Inspirado pelo olhar incomparável daquela mãe, incomparável como o de todas as mães, o condenado mostrou-se mais vigoroso, mais preparado para o resto do caminho em direcção ao monte.
 Agarrou na cruz, e nem as dores dos espinhos, nem os golpes das vergastadas lhe ardiam. Nada o segurou ou impediu de cumprir o fim da mais difícil oração da sua vida. Muito menos as memórias do que tinha sofrido havia poucas horas. Pelo seu olhar perpassou o manto cor de púrpura e os risos dos que, no Sinédrio, gozavam com ele, a cana a servir de ceptro, o seu rosto cansado, cuspido pelos soldados, as injúrias e os impropérios, a libertação de Barrabás, os gritos do povo enlouquecido, “Crucifica-o, crucifica-o!”, as mãos de Pilatos mergulhadas na bacia e, depois, pingando para o chão a água da indiferença…
            Olhou em frente e viu o monte. O Gólgota. O Monte da Caveira. Onde eram crucificados os que punham em causa o que não podia ser posto em causa. Seria ali, dentro de poucas horas, o lugar da sua morte. E ele sabia-o. Desde o tempo dos profetas que tudo isto se sabia. Nada era novidade para ele. Então, nada havia a fazer para contrariar a vontade dos homens que o tinham condenado, o desinteresse dos homens que não o defenderam e a frieza do Pai, que iria aparentemente abandoná-lo no momento mais extraordinariamente difícil da sua vida. E também sabia que as suas roupas iriam ser jogadas à sorte entre os soldados e que lhe iria ser dado vinho e fel, pelos mesmos que lhe iriam perfurar o lado para se certificarem da sua morte. Todas estas provações seriam muito mais difíceis de aceitar se a mãe não estivesse com ele, quando tudo terminasse. Essa era a sua grande certeza: a mãe iria recebê-lo nos braços, junto ao coração, num aperto derradeiro, único e doloroso. E lá estaria também a irmã dela. E João. E Maria de Magdala.
            Assim se cumpriu.
Depois da hora nona, as trevas invadiram a Terra. O condenado, à beira do fim (ou do princípio?), invocou o nome do Pai e, em paz, depois de tudo estar consumado, entregou o espírito.
O Sol eclipsou-se, o véu do templo rasgou-se em dois e a Terra tremeu, tal como tinha sido narrado pelos profetas.

…………………………..

Aos pés da Cruz, o regaço de Maria recebeu, finalmente, este Menino de Sua Mãe, exangue, coberto de chagas, retalhado, sujo, semi-nu, abandonado, morto, mas vivo para toda a eternidade.          


João Luís Nabo

In "O Montemorense", Páscoa de 2019

terça-feira, 19 de março de 2019

De fio a pavio - parte 3




Os ataques criminosos contra pessoas e bens, tanto no nosso país como no estrangeiro, revelam a “era da paranóia” (Oh, Teresa Brennan, de vez em quando, ando a falar nisto, o que não é bom sinal) em que nos obrigam a viver. Obrigam os políticos, as religiões e o vazio que preenche a vida e o cérebro de tanta gente. Não tens nada para fazer logo à tarde? Tiveste uma infância infeliz? Viveste uma adolescência tardia? A escola não é do teu agrado? A tua namorada deixou-te porque lhe deste duas bofetadas? Então, pega numa arma e começa a despachar pessoal, de fio a pavio, como se não houvesse amanhã. Depois, algum causídico há-de arranjar forma de passares por maluquinho e vítima do sistema que te consumiu.

João Luís Nabo
In "O Montemorense", Março 2019


domingo, 17 de março de 2019

De fio a pavio - parte 2



A Fofa continua sensível ao que a rodeia e hiper-super-mega atenta às minhas tentativas de escrever mais umas coisas, não vá eu ofender algumas virgens, tão virgens como eu em determinados assuntos e em determinadas práticas. Deixou-me de boquinha aberta, há bem pouco tempo, esta Fofa de uma figa. Disse-me ela, com ar pensativo, num destes dias ao serão, depois de enfiado o pijama e ajeitadas as pantufinhas: “O menino acha que me posso candidatar às próximas legislativas, para poder vir a ser primeira-ministra como a D. Assunção?” Sem acreditar no que estava a ouvir, respondi-lhe, animado, mas sério: “Claro que podes. Arranjas-me um cargo fixe, uma direcção-geral, uma secretaria de estado, um ministério, só para eu fazer uns projectos e umas cenas e assim?” Houve um momento pesado, de silêncio pesado, mesmo. Levantou o sobrolho, escancarou-me os olhos e respondeu: “Ficas com o cargo de Primeiro Damo.”
Já nem acabei de ver a novela. Cama com ele. (Ainda hoje não lhe dirijo palavra.)


João Luís Nabo

In  "O Montemorense", Março de 2019

Distraídos crónicos...


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