No
dia em que os indignados que ganham 70 mil de reforma por mês davam
uma conferência de imprensa para todo o país (um ultraje só possível de igualar
às prisões e à tortura durante a longa noite de 48 anos, patrocinada pelo
ditador de Santa Comba), tocaram à campainha da minha casa. Fui abrir. À minha
frente, um jovem com cerca de trinta anos, de olhos claros, barba de três dias,
cabelo puxado para trás, roupa a necessitar de lavagem urgente. Perguntei-lhe
ao que vinha. Pediu-me desculpa, que não queria incomodar e que só tinha tocado
por emergente necessidade. O seu discurso era cuidado, pausado, palavras bem
articuladas, como se estivesse a… dar uma aula. Reiterou o pedido de desculpas
e disse-me, com os olhos em água, que pedir esmola era a única forma honesta
que tinha encontrado, desde há um ano, para poder sobreviver. Que, a seguir,
iria tocar às campainhas dos meus vizinhos e bater às portas dos vizinhos dos
meus vizinhos. Estivemos alguns minutos a conversar. Aquele rosto, a mão
esquerda a apertar a direita, a voz bem timbrada, a vergonha disfarçada pela
frontalidade, levou-me, ainda que timidamente, a fazer perguntas. Das perguntas
a uma pequena nota que lhe permitisse “comer uma bucha”, foi um pequeno passo.
Desta vez fui eu que lhe pedi desculpa por não poder dar mais. Acenou-me com um
sorriso e meteu-se à estrada em direcção a outras portas.
Era de Sintra, este professor, actor,
bailarino e coreógrafo, licenciado em Estudos Teatrais pela Universidade de
Évora e que tinha sido despedido da sua escola havia um ano. Eu, que nunca
tinha experimentado o sentimento de ódio na minha vida, naquele momento odiei
todos os que, ganhando 70 mil euros de reforma, vinham indignar-se perante o
país como se andassem a pedir esmola. Não fosse este um espaço de gente educada
e preocupada com o rigor das palavras e das acções, e o meu desabafo não
terminaria sem ter de mandar aqueles idiotas da conferência de imprensa a um
sítio bem específico onde eles não iriam. E daí… não sei.
Se eu lhes acenasse com uma notazinha correspondente mais ou menos ao ordenado
mínimo nacional… acredito que fariam fila!