domingo, 14 de abril de 2024

Para mais um dia inicial inteiro e limpo*

 

                                                                                

                                                                                        * Sophia de Mello Breyner

 I

 Quando começamos a ler textos em número maior que o habitual sobre os direitos e o papel da mulher na sociedade, algo começa a estar mal. “Identidade e Família”, um livro escrito a várias mãos, entre as quais as de Bagão Félix, César das Neves, Ribeiro e Castro, Paulo Otero ou Jaime Nogueira Pinto, foi recentemente apresentado por Passos Coelho na Livraria Buchholz, em Lisboa.  

Os temas abordados nestes vinte e dois ensaios acabaram por gerar a polémica esperada por quem os escreveu. Caso contrário, não os teria escrito. Quando se começa a defender a família tradicional com todos os valores que lhe estão inerentes, as novas famílias que foram sendo estruturadas ao longo das décadas mais recentes, nas quais os elementos deixaram de ser um pai, uma mãe e um(a) ou mais filho(s), sentem-se naturalmente excluídas, porque são apontadas como incapazes de proporcionar à sociedade, ou à comunidade onde se inserem, princípios e valores aparentemente tão válidos ou alegadamente tão sérios como os apregoados pelos ideólogos mais conservadores.

A mulher e o seu papel na sociedade, uma das reflexões a merecer o foco na obra e, consequentemente, nos subsequentes comentários a favor e contra ela, e centro das atenções desde o Livro do Génesis, continuará, decerto, o seu percurso. Como exemplo de luta e de vitórias e como elemento fundamental para a existência de todo este planeta onde vivemos. Como elemento da família, tradicional ou não, e cuja importância nunca deveria ter sido questionada desde os tempos mais remotos até a este mês de Abril de 2024, num país que deverá, para seu próprio bem, manter-se, todos os dias, vinte e quatro sobre vinte e quatro, em estado alucinante de alerta.

 

Com toda a polémica que causou, “Identidade e Família” veio tornar claros os desejos de alguns dos seus autores, impossíveis de conter mais, de um regresso ao passado, a uma sociedade patriarcal e masculinizada, onde a mulher voltaria a ser o que foi durante décadas: uma figura sorridente e decorativa. Então, se os defensores desse regresso se manifestaram de forma aberta e descomplexada, que não haja da nossa parte quaisquer complexos em combater, agora com o alvo à vista, ideias, conceitos e ideologias que têm em comum e por trás uma tentativa cada vez mais consciente, por parte de uma franja da sociedade, num regresso a um passado que não queremos de volta. 

 

Nada é por acaso na política e na religião. Todas as palavras e todos os actos têm um objectivo, à partida fáceis de identificar: convencer, manipular, criar ídolos. Passos Coelho foi convidado para a apresentação deste livro. Não entrou ali por acaso, não tomou a palavra porque calhou, não defendeu os textos e seus autores por bonomia de carácter, e acredito que  a tenha. Passos esteve presente para dar uma aula de política a Montenegro, com quem mantém agora uma relação de civilizada proximidade. Todos perceberam pelas suas palavras, e utilizando a obra e as suas temáticas como pretexto, que havia ali um subtexto que Ventura captou como raposa que é: “Montenegro, meu amigo, não sejas teimoso e dá um beijinho ao André.”

 

II

 

Estamos em Abril novamente. Cumprem-se 50 anos da Revolução que nos permitiu ser livres. Falar sem medo, pensar sem medo, dormir sem medo, passaram a ser acções… antes impossíveis. Este meio século sobre o grito de Salgueiro Maia e dos seus homens no Terreiro do Paço, em Lisboa, merece ser comemorado, mas sem aquele estranho sentimento que muitos já querem fazer vingar de que vamos aproveitar porque não sabemos se, para o ano, tal comemoração será possível. Claro que vai ser possível.

Sabemos que uma grande parte dos jovens do nosso país tem apenas uma ideia meio esbatida sobre a Revolução, as suas causas e consequências. Os temas que lhes interessam são de outra índole, e os pais e os professores nem sempre tornam possível essa passagem de testemunho, essencial para a sua estrutura e consciência como seres humanos e portugueses, cujos avós e bisavós viveram numa ditadura abjecta e cruel que deixou Portugal em sofrimento e “orgulhosamente só” durante cinco décadas. Afinal, somos todos herdeiros da nossa História, dos crimes cometidos em nome de Deus e da Pátria, dos feitos dos heróis, dos bons e dos maus momentos. Para podermos recusar uma ditadura, uma ditadura de qualquer tipo, há que conhecer de forma séria e aprofundada os tempos de escuridão que milhões de portugueses viveram, na esperança de um 25 de luz que lhes iluminasse o futuro.

Se tenho medo dos movimentos político-partidários, todos com a chancela da direita ou da extrema-direita? Claro que não. Quanto mais visíveis se tornam, mais facilmente serão combatidos.

Não se fala muito de opções partidárias cá em casa. Fala-se sobretudo da política que é preciso fazer vingar em nome do futuro e do progresso. Porque é preciso manter acesa a chama da Liberdade.

 


João Luís Nabo

In "O Montemorense"  Abril 2024

segunda-feira, 18 de março de 2024

Stabat Mater (a todas a Mães)

Nota prévia: em Abril de 2019, escrevi este texto alusivo ao tempo da Páscoa. Aqui fica ele, mais uma vez, para recordar o Cristo e homenagear todas as Mães.

 


Pintura: "Deposição de Cristo da Cruz" (1575-1577)
Autor: Jacopo Bassano

            A cruz pesava-lhe no ombro, mas já não tanto como no início. O corpo coberto de pústulas de sangue e suor misturadas com o pó seco do caminho, dando origem a uma espessa camada de lama avermelhada, começava a estar dormente, afastado do seu pensamento.

O sangue quente e vivo escorria-lhe da cabeça, e a coroa de espinhos continuava fortemente enterrada no crânio, parecendo ter nascido ali, com origem nos cabelos suados, castanhos e lodosos. O Sol a pino cegava-o e ele quase não conseguia ver para onde atirava os pés doridos, que as sandálias já não conseguiam proteger. O caminho era íngreme, pedregoso, difícil. Como difícil tinha sido a sua vida e a sua luta pela fé.

Jerusalém estava cheia de gente por altura da Páscoa. Muitos tinham vindo de longe só para verem, com os próprios olhos, a condenação e a morte de um homem que diziam ser o rei dos Judeus. A multidão cercava-o selvaticamente, gritando, urrando, fugindo às investidas dos soldados e dos cavalos, acicatando alguns cães que se misturavam com a turba em êxtase. Ele ouvia todo aquele barulho ensurdecedor, mas não conseguia distinguir as vozes. Esforçava-se, desesperadamente, por escutar, de entre a confusão de palavras, a voz gentil de Maria, sua mãe, que estivera sempre consigo, que o amava incondicionalmente, que sempre respeitara a sua vontade e as suas opções, que queria morrer por ele, se a deixassem. E Maria de Magdala, com o seu conforto e os seus olhos de avelã, doces e tristes, e João, o seu melhor amigo, o seu irmão, a sua paz. Mas o peso da cruz tirava-lhe a concentração, e desistiu. Sabia que estariam ali, a acompanhar o seu caminho derradeiro até ao Gólgota.

Sentiu que as forças lhe fugiam. Caiu mais uma vez. Mais uma vez os soldados romanos o levantaram a toque de lanças e de palavras sujas. Ergueu-se, as pernas a tremer e a garganta seca, seca, como as dunas do deserto. Dobrou-se para abraçar a cruz e pô-la de novo sobre os ombros, já em carne viva. Não foi capaz. O corpo não obedecia ao cérebro cansado. O estômago ardia-lhe e o coração parecia querer sair-lhe do peito. Apercebeu-se de que alguém lhe punha a mão na face. Por entre o sangue quase em crosta e o suor enlameado, abriu mais os olhos para ver quem era. Não era a mãe. Não era João. Nem Maria de Magdala.

“Chamo-me Simão. Vou ajudar-te”. E empurrado pelos soldados, após um brusco aceno de cabeça do centurião, o homem, já idoso, natural de Cirene, carregou a cruz durante uns bons metros. Os suficientes para aliviar um pouco o condenado. Este aproveitou para semicerrar os olhos e tentar ver, pela centésima vez, onde estavam os amigos. Escondidos, decerto. Amedrontados, como seria de esperar. A protegerem a própria vida.

Quando, com um esgar de sofrimento, se preparava para aceitar a cruz de volta, das mãos do Cireneu, viu uns olhos muito azuis, muito abertos, rasos de lágrimas, incrustados num rosto claro de tanta luz e triste de tanta dor. Era a mãe. Era a sua mãe que lhe estendia a mão frágil, como se com aquele gesto pudesse carregar também aquela cruz ensanguentada. Inspirado pelo olhar incomparável daquela mãe, incomparável como o de todas as mães, o condenado mostrou-se mais vigoroso, mais preparado para o resto do caminho em direcção ao monte.

 Agarrou na cruz, e nem as dores dos espinhos, nem os golpes das vergastadas lhe ardiam. Nada o segurou ou impediu de cumprir o fim da mais difícil oração da sua vida. Muito menos as memórias do que tinha sofrido havia poucas horas. Pelo seu olhar perpassou o manto cor de púrpura e os risos dos que, no Sinédrio, gozavam com ele, a cana a servir de ceptro, o seu rosto cansado, cuspido pelos soldados, as injúrias e os impropérios, a libertação de Barrabás, os gritos do povo enlouquecido, “Crucifica-o, crucifica-o!”, as mãos de Pilatos mergulhadas na bacia e, depois, pingando para o chão a água da indiferença…

            Olhou em frente e viu o monte. O Gólgota. O Monte da Caveira. Onde eram crucificados os que punham em causa o que não podia ser posto em causa. Seria ali, dentro de poucas horas, o lugar da sua morte. E ele sabia-o. Desde o tempo dos profetas que tudo isto se sabia. Nada era novidade para ele. Então, nada havia a fazer para contrariar a vontade dos homens que o tinham condenado, o desinteresse dos homens que não o defenderam e a frieza do Pai, que iria aparentemente abandoná-lo no momento mais extraordinariamente difícil da sua vida. E também sabia que as suas roupas iriam ser jogadas à sorte entre os soldados e que lhe iria ser dado vinho e fel, pelos mesmos que lhe iriam perfurar o lado para se certificarem da sua morte. Todas estas provações seriam muito mais difíceis de aceitar se a mãe não estivesse com ele, quando tudo terminasse. Essa era a sua grande certeza: a mãe iria recebê-lo nos braços, junto ao coração, num aperto derradeiro, único e doloroso. E lá estaria também a irmã dela. E João. E Maria de Magdala.

            Assim se cumpriu.

Depois da hora nona, as trevas invadiram a Terra. O condenado, à beira do fim (ou do princípio?), invocou o nome do Pai e, em paz, depois de tudo estar consumado, entregou o espírito.

O Sol eclipsou-se, o véu do templo rasgou-se em dois e a Terra tremeu, tal como tinha sido narrado pelos profetas.

                                                                …………………………..

          Aos pés da Cruz, o regaço de Maria recebeu, finalmente, este Menino de Sua Mãe, exangue, coberto de chagas, retalhado, sujo, semi-nu, abandonado, morto, mas vivo para toda a eternidade.    

terça-feira, 12 de março de 2024

O desespero da Rosa e outras estórias sem interesse

 


O desespero da Rosa

 

O descaramento socialista, pontuado por um certo desespero, tornou-se o rosto visível de um candidato com um histórico cheio de nódoas, atirado aos bichos no último congresso do PS pelos próprios camaradas e que, na noite das eleições, perante um país em suspenso, se mostrou ansioso por regressar a casa e fugir daquele cenário desastroso, criado por ele próprio e pelo Governo a que pertenceu e do qual foi despedido.

Como pode um partido, que perdeu a credibilidade perante os seus eleitores e perante os portugueses em geral, depois da sua queda vergonhosa por motivos ainda mais vergonhosos, apresentar um candidato que foi ministro, e ministro demitido por decisões mal explicadas?

Como é possível António Costa, no decorrer da campanha eleitoral, vir a terreiro defender o seu ex-ministro, por si demitido, como o candidato certo a primeiro-ministro de Portugal se ele nem um bom ministro foi?

Como se pratica o apoio a um falso delfim que, em debates televisivos após a sua demissão, rasgou o Governo socialista e o seu líder de alto a baixo?

A última pergunta que se impõe é ainda mais simples: o Partido da Rosa não tinha outro candidato, mais clean, menos polémico, para eleger como secretário-geral? Pedro Nuno Santos era mesmo o melhorzinho de todos? Pois… parece que não.

 

 O que o meu PS não fez, vou eu fazer agora…

              … poderia ter sido o lema de campanha do candidato socialista, já que foi um ver se te avias nas mudanças operadas no pensamento de Pedro Nuno Santos quando se viu na incumbência de ganhar as eleições. Por exemplo, tudo o que o Partido Socialista se recusou a fazer em relação às justas exigências dos professores, em pé de guerra com o ministério da tutela e com João Costa quase durante um ano lectivo inteiro, com Pedro Nuno tudo será agora diferente: os professores poderão vir a recuperar o tempo de serviço que lhes foi roubado. Serve esta atitude eleitoralista para medir o cinismo e a teimosia hipócrita do ministro da Educação, do ministro das Finanças e do primeiro-ministro, que afirmaram sempre não haver dinheiro para tal despesa repentina e incomportável. Agora, com PNS, o dinheiro deixou de ser problema.

PNS perdeu por uma nesga, mas perdeu. Ganhou o parente (não muito) afastado de Ventura que conseguiu pôr o país em suspenso com o seu “Não é não!”. Veremos se vai manter o que disse ou se, com o apoio do terceiro maior partido, vai contribuir para mudanças profundas na gestão do país e dos portugueses, algumas delas regressadas de outros tempos, em que o queridíssimo líder, com palavras mansas e cristãs, sussurradas aos ouvidos dos descontentes e guardadas e feitas cumprir por uma competente guarda pretoriana, punha e dispunha do tempo, da mente e da vontade dos liderados. 

  

O Povo é… o Povo (por enquanto) 

Não defendo partidos extremistas, nem de esquerda, nem de direita. E porque os extremos se tocam, a História já nos mostrou os resultados terríveis e os atentados aos direitos fundamentais dos cidadãos que regimes nazis/fascistas e regimes comunistas tiveram a oportunidade de exercer ao longo de décadas, sobretudo numa boa parte dos países da Europa, incluindo no nosso, durante 48 anos.  

Quando, ao longo do seu percurso de ascensão, um partido se revela uma alternativa, mas contra as pedras basilares do sistema democrático, esmagando aos poucos os direitos dos cidadãos, a primeira reacção, quase instintiva, é refutá-lo, mais do que isso, é ignorá-lo. Ainda assim, ignorar um partido com as características do partido de André Ventura só poderia ter dado este resultado: uma subida estrondosa no número de votos e uma conquista legítima e democrática de quase um quarto dos assentos parlamentares.

Inúmeras tempestades irão abrir-se sobre as nossas cabeças, acompanhadas de tsunamis e terramotos da mais diversa índole. Mas não nos podemos admirar. Foi o Povo que escolheu, e o Povo é soberano. Ninguém poderá contrariar a vontade do povo, e André Ventura tem isso do seu lado. Isso e as asneiras em catadupa perpetradas por Costa e seus delfins, de tal modo que tiveram de deixar cair um Governo de maioria que, por falta de inteligência, de sentido de Estado e com um sistema de amiguismo bem implementado, abriram um espaço preenchido por quem, à imagem de outros políticos tristemente célebres, souberam aproveitar o demérito da esquerda e o transformaram em mérito próprio para se auto-proclamarem salvadores de uma nação em agonia. Outros já o fizeram, vindos da esquerda e da direita, com os resultados desastrosos, assustadores e macabros que todos conhecemos e abominamos.

Há, porém, uma questão que Ventura, no meio da sua quase infantil euforia, ainda não ponderou. A subida vertiginosa do seu partido em termos de votantes, recebendo no boletim mais de um milhão e cem mil cruzinhas, não tem a ver com o seu programa eleitoral ou com as soluções que ele vai apresentando como se já fosse primeiro-ministro. Tem a ver com o descontentamento, com a desilusão, com o vazio que sentimos em relação à forma como temos sido governados. Ventura e o seu partido não têm JÁ um milhão de adeptos, têm APENAS um milhão de adeptos. Os outros seis milhões andam espalhados pelo espectro, desnorteados, à espera de melhor rumo.

O acto de desespero dos eleitores, até de vingançazinha, contra as duas maiores cores do espectro partidário, desvalorizando o peso desse gesto, pode resultar num caldinho ainda menos apetecível, onde seremos, cheios de estúpida felicidade, postos a cozer em fogo lento. Os próximos dias serão, pois, decisivos para as nossas vidas. Mas há sempre forma de voltar atrás.

É verdade! Alguém diga ao Presidente da República que, para já, guarde silêncio e deixe a democracia funcionar sozinha.

João Luís Nabo

In "O Montemorense", Março de 2024

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

Três textos de ficção

 



I


Não é novidade a forma completamente inadequada como decorrem os debates entres os candidatos a primeiro-ministro, nos diversos canais de televisão. Acusações, destruição de carácter, tiros certeiros à honra, desrespeito desbragado pelas ideias do adversário, lançamento de petardos, em qualquer direcção, servindo de manobras de diversão, escavações fundas mas, muitas vezes, inócuas, no histórico político e pessoal de cada um, roçando o ignóbil e o insultuoso, é o que nos tem sido servido durante os últimos dias.

Se alguns dos pugilistas conseguem, apesar de tudo, manter alguma dignidade, sabe-se lá com que esforço, há outros que deveriam ir para casa, em vez de se sentarem no estúdio, de mangas arregaçadas e esgares ameaçadores, frente ao adversário. Se um prémio houvesse para o que está continuamente a pisar a linha vermelha, esse seria para André Ventura, que continua a pensar que é o único que irá livrar o país dos corruptos, dos criminosos e dos oportunistas. Outros houve, e a História é, infelizmente, farta em exemplos, que, não há muitos anos, foram eleitos porque o povo, farto do estado de uma Europa falida e a ressuscitar conflitos antigos, queria um mundo novo e justo. Pouco tempo passou até às perseguições, às prisões, às deportações em massa, ao genocídio, à destruição e ao envolvimento da Europa, dos Estados Unidos e da ex-União Soviética numa guerra profundamente destruidora como é qualquer guerra. Das ruínas nasceram outros oportunistas que acabaram por dividir a Europa em duas e manter um cenário de medo e insegurança durante várias décadas.

Ventura não é um fenómeno único na Europa (e no Mundo). Trump, Putin, duas personalidades ideologicamente dominadoras, os partidos de extrema-direita que lideram os governos da Itália, da Polónia e da Hungria, a França, com a candidata Marine Le Pen, a ganhar cada vez mais espaço no espectro político do seu país, são as máquinas que, aos poucos, vão minando a democracia, cada vez mais ameaçada. Daqui a algumas gerações, não muitas decerto, a Europa desse tempo não terá, politicamente, qualquer semelhança com a Europa do início deste século.

Para já, Ventura consegue manipular os debates, insurgir-se contra os moderadores, dominar as discussões, gerir o seu tempo e o tempo dos outros. Conhecedor da máxima “Não há publicidade má”, consegue aquilo que pretende: ser falado, comentado, amado ou odiado. Jamais ignorado. E ignorá-lo é completamente impossível. E pouco aconselhável.

O Balú, cão atento e sábio, diz-me bastas vezes que não vale a pena preocupar-me tanto. Que, mais ano menos ano, esquerda e direita irão tocar-se definitivamente e que ambas acabarão por esquecer o bem do povo, porque será para elas mais importante o “Bem da Nação”.

 

II

 

As novas tecnologias ainda não são bem a minha onda, muito menos a minha praia. Vamos aos poucos aprendendo, sobretudo com os filhos e os amigos mais novos que, entre um ou outro sorriso paternalista, nos conduzem ao estranho mundo dos logaritmos e dos megabytes. E, assim, seguimos mais confiantes, procurando tirar cada vez melhor partido das ferramentas que temos à nossa disposição online. A Internet, por sua vez, tornou-se um dos nossos maiores aliados quando nos fornece tudo o que solicitamos para novas leituras, consultas, pesquisa, publicações. O acesso a todos os locais, espaços e informações tornou-nos também mais vulneráveis, tal como os instrumentos que usamos ou os espaços onde vivemos. Temos cada vez menos desculpa para ignorarmos o que se passa à nossa volta e só não dominamos todos os temas do universo apenas porque não teremos dez ou mais vidas como esta, o tempo necessário para podermos abarcar uma parte (não a totalidade) de todo o conhecimento que nos é oferecido através de um “simples” computador. Acredito que, se Saramago vivesse fisicamente nestes tempos, teria, decerto, já escrito uma boa história sob a premissa “No Dia Seguinte Não Houve Internet”. Quem sabe até se este novo romance não poderia ser escrito pelo ChatGPT, tal como o foi a terceira parte desta bela crónica?

 

III

 

Enviei a seguinte mensagem ao ChatGTP:Olá! Imagina que amanhã não há Internet. Escreve uma pequena ficção sobre isso!” Cinco segundos depois, recebi o seguinte texto, que tomei a liberdade de resumir por conveniência de espaço[1]:

 

“Era uma manhã como outra qualquer, até que o sol nascente foi ofuscado por nuvens densas que pairavam no céu. As pessoas acordaram, como de costume, pegando nos seus dispositivos eletrónicos, mas algo estava diferente. A conexão com a Internet havia sido perdida. Em poucas horas, a notícia espalhou-se como um rasto de pólvora. Governos, empresas, famílias inteiras estavam desligadas do mundo digital, sem redes sociais, sem e-mails e sem acesso à informação instantânea.

As ruas, que costumavam ser preenchidas pelo zumbido das actividades online, agora estavam estranhamente silenciosas. As lojas que dependiam da Internet para processar transacções estavam fechadas. As pessoas juntavam-se em praças e nos parques, tentando encontrar conforto na companhia umas das outras. Enquanto isso, nos bastidores, cientistas e especialistas trabalhavam freneticamente para entender o que havia acontecido. Surgiram teorias da conspiração mas sem respostas concretas.

Com o passar dos dias, as comunidades começaram a adaptar-se à nova realidade. Apesar dos desafios, algumas coisas positivas emergiram dessa crise. As famílias passaram mais tempo juntas, redescobrindo a arte da conversa cara a cara, as crianças começaram a brincar ao ar livre, longe dos ecrãs brilhantes que antes as hipnotizavam.

Então, lentamente, a Internet começou a voltar. Os sistemas foram restaurados, os cabos foram consertados e a vida online retomou seu curso. As pessoas jamais iriam esquecer os dias em que o mundo ficou desconectado, lembrando-se de como a ausência da Internet as aproximou umas das outras de maneiras que nunca teriam imaginado possíveis.”

 

 João Luís Nabo (e ChatGPT)

 In "O Montemorense", Fevereiro de 2024

 

 

 



[1] Nota: O texto foi ligeiramente alterado na forma mas não no conteúdo.

domingo, 14 de janeiro de 2024

Duas mãos para o novo ano

 


I

Uma mão cheia de nada…[1]

 

Chegámos a 2024, depois de dezenas de escândalos, de crises, de casos e de outras cenas que nos dão vontade de começar a acreditar no diabo e nos seus seguidores. Fico ligeiramente aborrecido quando os assuntos que nos atraem e distraem levam os meus doze leitores (treze, pois há um novo leitor atento e crítico às minhas publicações, aos meus livros e a outras parvoíces que vou produzindo) a pressionar-me com perguntas sobre política e… capacidade de sobrevivência. De política entendo muito pouco. De capacidade de sobrevivência, enfim, não tenho grande razão de queixa, porque tenho a sorte de me rodear de pessoas absolutamente diferentes umas das outras que me ensinam, sejam (muito) mais novas do que eu, sejam mais velhas e experientes, a perceber que não somos a última bolacha do pacote, que não somos os maiores em coisa nenhuma, que não somos os salvadores de ninguém, nem exemplo para a maioria. É essa a regra para a nossa sobrevivência. Com a cada vez maior ascensão das redes sociais, onde nos mascaramos para poder cobardemente dizer o que nos apetece sem pagarmos judicial e moralmente por isso, tornámo-nos poderosos, tristemente poderosos, e capazes de destruir o nome, a honra, a vida, a biografia de quem quer, apenas e só, viver tranquilamente e deixar que os outros vivam com igual placidez. Sinto, eu e os meus treze leitores, que há uma necessidade urgente de olharmos mais para os nossos vizinhos, de sentarmos à nossa mesa quem gostamos e de assegurarmos que estaremos sempre ao lado dos amigos que, num dia, acordam com menos esperança ou que precisam, mais do que uma palavra de consolo, uma voz forte que lhes garanta a segurança perdida em momentos de desventura.

Não precisamos de ser políticos, nem super-homens, nem figuras públicas, nem religiosos, que batem no peito de quarto em quarto de hora e franzem o sobrolho quando os outros não o fazem. Precisamos de nos apresentar como seres humanos que não hesitam um só momento quando a sua presença, a sua voz, a sua opinião, o seu voto se torna necessário e imprescindível para defender um familiar, um amigo, uma nação.  A qualquer custo. Porque a amizade, o sentido de família e o patriotismo é isso mesmo, sem saudosismos e muito menos desejos obscuros de regressar a um passado tristemente célebre, no qual o autor deste texto seria, com toda a certeza deste mundo, perseguido, preso, torturado e, muito provavelmente, morto.

 

 

II

Outra cheia de esperança… [2]

 

            A nossa profissão, a minha e a de muitos colegas meus que me acompanham, quer recentemente, quer desde há muitos anos, nas nossas escolas de Montemor, tem muito de nós plasmado nas turmas que ensinamos, nas salas onde trabalhamos. Sem que tivéssemos dado por isso, começamos, aos poucos, a testemunhar os resultados das sementes que lançámos ao longo de quarenta anos, sem, muitas vezes, sabermos se todas germinaram. Mas as sementeiras são assim mesmo. Os terrenos nem todos são férteis, os agricultores, por vezes, perdem a mão, as sementes nem todas estão suficientemente amadurecidas para germinarem após as primeiras chuvas, outras, ainda, perderam-se por terem caído sobre uma rocha implacável, dura e estéril.

            Os tempos que se aproximam não se adivinham fáceis, com lobos em pele de cordeiro prontos a fincar os dentes no cachaço de quem, distraída e estupidamente, os aplaude de forma cega e subserviente, sem pensar nas consequências ou nos resultados dos seus aplausos. Os alvos dos elogios e das lambebotices, lançados das bancadas da ignorância, incham, crescem, mentem, exploram os que não pensam por si e acabam por aproveitar-se dessas sementes que, impedidas pelos rochedos da vida, não conseguiram germinar e dar origem a uma nova planta, completa e viçosa, com futuro e com sementes para, porque donas do seu destino, mais tarde lançar à terra. Os que germinaram têm a obrigação, o dever, a sagrada função de ler, estudar, conhecer o passado deste país, analisar o esforço dos que fizeram esta nação, dos que nos permitiram, à custa de sofrimento, luta, suor e lágrimas, ser um povo livre e que, se não fossem os sucessivos Governos desgovernados, poderia ser feliz e próspero.

            Os tempos que se aproximam vão ser de aproveitamento, de populismo, de promessas cegas e entusiasmadas, sabendo nós que tudo não passará de uma técnica obscura e táctica para conquistar a confiança de quem já não crê nas promessas de um candidato vindo de um Governo Costista desacreditado e inglório. Os fracos, as sementes que não germinaram e que conseguiram entrar nos meandros da partidarite e da governação, mudam de cor, de camisola, de pensamento, de teorias e agarram-se a quem lhes vai garantir um cargo, uma posição, um tacho certo, pelo menos durante quatro anos.

            Como cidadão português, continuo a amar o meu país, independentemente dos incompetentes que o têm governado. E acredito que a maioria das sementes que todos nós lançámos, durante tantos anos de investimento nos jovens e no ensino, terão caído em terra fértil, adubada, lavrada e que nos irão dar, em breve, um país decente e livre.         



[1] Obrigado, Irene Lisboa

[2] São Mateus, 13, 18-23 (Parábola do Semeador)

João Luís Nabo, in "O Montemorense", Janeiro 2024

Distraídos crónicos...


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