segunda-feira, 9 de outubro de 2023

Notas sobre pessoas boas

 


 (Foto: Luís Marinho)

           

            

Nota prévia

 

Gosto, sempre gostei, de escrever sobre pessoas, sobretudo sobre aquelas que fazem a diferença e que existem para fazer da vida à sua volta um espaço de luz, de esperança e de reflexão. Por vezes, não resisto, perante tantas atrocidades, em referir os que nos prejudicam como cidadãos com direitos, como seres humanos com sentimentos e família. Não lhes perdoo os dislates, as figurinhas, os disparates, as mentiras e a manipulação que fazem dos nossos dias. Neste espaço de liberdade, hoje, o caso é outro. São pessoas que se cruzaram, ou ainda cruzam, comigo, com quem partilhei conhecimentos, de quem recebi lições de vida, de juventude e de confiança no futuro, independentemente da idade destes meus protagonistas de hoje.

 

Nota um – Guilherme

 

            Há falta de professores. Há centenas de alunos sem aulas.

Esteve há pouco tempo em minha casa um meu ex-aluno que ingressou este ano na Faculdade de Letras de Lisboa, a minha alma mater, e que me disse: “Quero ser professor. Professor de Inglês.” Noutras alturas, perante esta confissão, ter-lhe-ia dito para pensar noutra profissão, porque o ensino não está fácil para quem inicia a sua carreira nos tempos que correm ou para quem a vai começar nos tempos mais próximos. Desta vez, e perante esta manifestação de interesses vinda de um jovem como o Guilherme, estremeci, não de preocupação, mas de ânimo e de algum alívio.

            O Ministério da Educação quer pôr nas escolas pessoas formadas em qualquer área para suprir a dramática falta de docentes, por um lado, devido ao crescente número de professores que se aposentaram e, por outro, porque esta carreira deixou de ser aliciante devido à enorme carga de burocracia que a tutela nos obriga a dominar para podermos ser professores. O conhecimento e a transmissão desse conhecimento deixou de ser o grande foco de muitos professores. Projectos, actividades fora da sala de aula, prolongadas visitas de estudo, Erasmus a dar com um pau, isso é que passou a ser importante e a dar visibilidade aos intervenientes. É tudo de grande utilidade, é verdade, mas ainda é na sala de aula onde tudo de mais importante acontece. Na minha opinião, claro, que não é a opinião de muitos.

            Quando o Guilherme me confidenciou que queria ser professor de Inglês, comecei a pensar que precisamos de muitos guilhermes que, como este meu ex-aluno (e, agora, colega de curso), venham afirmar, com honra e um brilho nos olhos, que o ensino é mesmo a sua paixão e que querem aprender agora para poderem ensinar, mais dia menos dia, numa escola qualquer deste país, a precisar urgentemente de gente nova, saudável, arejada e apaixonada… como o Guilherme.

 

Nota dois – Manuel

 

Partiu o Senhor Manuel Parreirinha, repositório de mil histórias que contou e ouviu, enquanto cortou o cabelo e fez a barba a centenas de clientes e amigos, na sua pequena barbearia, na nossa Rua de Aviz. Lutou contra várias adversidades da vida, que lhe interromperam a rotina e a relação com os clientes, mas regressou sempre mais forte e mais conversador. Esteve entre a vida e a morte, perdeu a sua querida Jacinta, saltou barreiras, fez maratonas, deu vida à terra inculta que, agora, o recebeu.

Inteligente, perspicaz, crítico, era um defensor acérrimo da família e dos amigos, dos vizinhos e dos clientes. Foi meu barbeiro durante mais de 30 anos. Falávamos de tudo um pouco, até de temas considerados tabu pela maioria dos seres pensantes. Mas com ele não havia conversas proibidas. Os meus temas preferidos eram, invariavelmente, a minha família, os meus filhos e o meu pai. O meu Pai a quem ele tecia os maiores elogios, como homem, como trabalhador e como amigo dos amigos. Assim como ele, barbeiro de carreira e com algumas cadeiras de Psicologia roubadas à magana da vida.  "Vai haver concerto, não é verdade?", perguntava-me quando lhe aparecia na loja de surpresa. "É verdade, Sr. Manel, temos de pôr o público ao rubro!" Ele ria-se, generoso, sábio e paciente. "Vou fazer-lhe um corte que vai ser um mimo."

Em Julho, pedia-lhe sempre que me fizesse um pente dois. “Pente dois? Está a falar a sério?” E, depois, ficava em silêncio. Um pente dois não lhe permitia mostrar a sua arte de barbeiro. Retomava a conversa quando, com mestria, me aparava a barba para me colocar aquele Denim activo e provocador que me deixava sempre meio entontecido.

Vou sentir a sua falta. A sua voz ficará para sempre na minha memória e, quando um destes dias, passar pela barbearia, vou olhar lá para dentro e sussurrar, como que numa espécie de oração: "Senhor Manel, tenho concerto com o Coral de São Domingos no próximo Sábado!"  Sei qual é a resposta que vou guardar para sempre comigo: “Vou fazer-lhe um corte que vai ser um mimo!”

 

Nota três – Carlos

 

            A sua loucura é contagiante. A sua persistência é irritante. O seu talento é inegável. O Carlos Marques, da Trimagisto, não resistiu mais e decidiu convidar-me para participar num dos seus projectos artísticos. Antes de aceitar, hesitei… porque não me sabia à altura das suas exigências como “patrão”. Naturalmente que não vou aqui deixar cair o pano (literalmente) e revelar o que vem aí. Serve esta nota, apenas e só, para dar palco (literalmente) a um actor/músico/produtor/escritor/e tudo, natural de Montemor e que tem na sua carreira (já um pouco estendida) duas criações que se lhe colam à pele e que não o largarão tão cedo: a Festa dos Contos, este ano na sua 13ª edição, e o Levantei-me do Chão, uma das mais conseguidas homenagens a José Saramago que eu já tive a oportunidade de conhecer.

            Em cada espectáculo, quase sempre intimista mas denso, o Carlos transforma-se (transfigura-se) e mostra-nos o homem da luta, o leitor, o perguntador, o apontador de destinos indizíveis, o feiticeiro misterioso que usa a sua poção mágica feita de palavras para pôr o dedo na(s) ferida(s) de cada um de nós e de todos em conjunto, de modo a obrigar-nos, com aquela sua teimosia simpática, a aceitarmos que somos pecadores e que necessitamos urgentemente de soluções para a nossa vida.

            O que aí vem será mais um momento surpreendente do uso da palavra para iluminar as mentes adormecidas. Estamos juntos. 

João Luís Nabo

In "O Montemorense", Outubro 2023

Distraídos crónicos...


Contador de visitas

Contador de visitas
Hospedagem gratis Hospedagem gratis

Arquivo do blogue

Acerca de mim

A minha foto
Montemor-o-Novo, Alto Alentejo, Portugal
Powered By Blogger