Nota prévia
Gosto, sempre
gostei, de escrever sobre pessoas, sobretudo sobre aquelas que fazem a
diferença e que existem para fazer da vida à sua volta um espaço de luz, de
esperança e de reflexão. Por vezes, não resisto, perante tantas atrocidades, em
referir os que nos prejudicam como cidadãos com direitos, como seres humanos
com sentimentos e família. Não lhes perdoo os dislates, as figurinhas, os
disparates, as mentiras e a manipulação que fazem dos nossos dias. Neste espaço
de liberdade, hoje, o caso é outro. São pessoas que se cruzaram, ou ainda
cruzam, comigo, com quem partilhei conhecimentos, de quem recebi lições de
vida, de juventude e de confiança no futuro, independentemente da idade destes
meus protagonistas de hoje.
Nota um –
Guilherme
Há falta de professores. Há centenas
de alunos sem aulas.
Esteve há pouco
tempo em minha casa um meu ex-aluno que ingressou este ano na Faculdade de
Letras de Lisboa, a minha alma mater, e que me disse: “Quero ser
professor. Professor de Inglês.” Noutras alturas, perante esta confissão,
ter-lhe-ia dito para pensar noutra profissão, porque o ensino não está fácil
para quem inicia a sua carreira nos tempos que correm ou para quem a vai
começar nos tempos mais próximos. Desta vez, e perante esta manifestação de
interesses vinda de um jovem como o Guilherme, estremeci, não de preocupação,
mas de ânimo e de algum alívio.
O Ministério da Educação quer pôr
nas escolas pessoas formadas em qualquer área para suprir a dramática falta de
docentes, por um lado, devido ao crescente número de professores que se
aposentaram e, por outro, porque esta carreira deixou de ser aliciante devido à
enorme carga de burocracia que a tutela nos obriga a dominar para podermos ser
professores. O conhecimento e a transmissão desse conhecimento deixou de ser o
grande foco de muitos professores. Projectos, actividades fora da sala de aula,
prolongadas visitas de estudo, Erasmus a dar com um pau, isso é que passou a
ser importante e a dar visibilidade aos intervenientes. É tudo de grande
utilidade, é verdade, mas ainda é na sala de aula onde tudo de mais importante
acontece. Na minha opinião, claro, que não é a opinião de muitos.
Quando o Guilherme me confidenciou
que queria ser professor de Inglês, comecei a pensar que precisamos de muitos
guilhermes que, como este meu ex-aluno (e, agora, colega de curso), venham
afirmar, com honra e um brilho nos olhos, que o ensino é mesmo a sua paixão e
que querem aprender agora para poderem ensinar, mais dia menos dia, numa escola
qualquer deste país, a precisar urgentemente de gente nova, saudável, arejada e
apaixonada… como o Guilherme.
Nota dois – Manuel
Partiu
o Senhor Manuel Parreirinha, repositório de mil histórias que contou e ouviu,
enquanto cortou o cabelo e fez a barba a centenas de clientes e amigos, na sua
pequena barbearia, na nossa Rua de Aviz. Lutou contra várias adversidades da
vida, que lhe interromperam a rotina e a relação com os clientes, mas regressou
sempre mais forte e mais conversador. Esteve entre a vida e a morte, perdeu a
sua querida Jacinta, saltou barreiras, fez maratonas, deu vida à terra inculta que,
agora, o recebeu.
Inteligente,
perspicaz, crítico, era um defensor acérrimo da família e dos amigos, dos
vizinhos e dos clientes. Foi meu barbeiro durante mais de 30 anos. Falávamos de
tudo um pouco, até de temas considerados tabu pela maioria dos seres pensantes.
Mas com ele não havia conversas proibidas. Os meus temas preferidos eram,
invariavelmente, a minha família, os meus filhos e o meu pai. O meu Pai a quem
ele tecia os maiores elogios, como homem, como trabalhador e como amigo dos
amigos. Assim como ele, barbeiro de carreira e com algumas cadeiras de
Psicologia roubadas à magana da vida. "Vai
haver concerto, não é verdade?", perguntava-me quando lhe aparecia na
loja de surpresa. "É verdade, Sr. Manel, temos de pôr o público ao
rubro!" Ele ria-se, generoso, sábio e paciente. "Vou fazer-lhe
um corte que vai ser um mimo."
Em
Julho, pedia-lhe sempre que me fizesse um pente dois. “Pente dois? Está a
falar a sério?” E, depois, ficava em silêncio. Um pente dois não lhe
permitia mostrar a sua arte de barbeiro. Retomava a conversa quando, com
mestria, me aparava a barba para me colocar aquele Denim activo e provocador
que me deixava sempre meio entontecido.
Vou
sentir a sua falta. A sua voz ficará para sempre na minha memória e, quando um
destes dias, passar pela barbearia, vou olhar lá para dentro e sussurrar, como
que numa espécie de oração: "Senhor Manel, tenho concerto com o Coral
de São Domingos no próximo Sábado!" Sei qual é a resposta que vou guardar para
sempre comigo: “Vou fazer-lhe um corte que vai ser um mimo!”
Nota três – Carlos
A sua loucura é contagiante. A sua
persistência é irritante. O seu talento é inegável. O Carlos Marques, da
Trimagisto, não resistiu mais e decidiu convidar-me para participar num dos
seus projectos artísticos. Antes de aceitar, hesitei… porque não me sabia à
altura das suas exigências como “patrão”. Naturalmente que não vou aqui deixar
cair o pano (literalmente) e revelar o que vem aí. Serve esta nota, apenas e só,
para dar palco (literalmente) a um actor/músico/produtor/escritor/e tudo,
natural de Montemor e que tem na sua carreira (já um pouco estendida) duas
criações que se lhe colam à pele e que não o largarão tão cedo: a Festa dos
Contos, este ano na sua 13ª edição, e o Levantei-me do Chão, uma das
mais conseguidas homenagens a José Saramago que eu já tive a oportunidade de
conhecer.
Em cada espectáculo, quase sempre
intimista mas denso, o Carlos transforma-se (transfigura-se) e mostra-nos o
homem da luta, o leitor, o perguntador, o apontador de destinos indizíveis, o
feiticeiro misterioso que usa a sua poção mágica feita de palavras para pôr o
dedo na(s) ferida(s) de cada um de nós e de todos em conjunto, de modo a
obrigar-nos, com aquela sua teimosia simpática, a aceitarmos que somos
pecadores e que necessitamos urgentemente de soluções para a nossa vida.
O que aí vem será mais um momento
surpreendente do uso da palavra para iluminar as mentes adormecidas. Estamos
juntos.
João Luís Nabo
In "O Montemorense", Outubro 2023