segunda-feira, 18 de março de 2024

Stabat Mater (a todas a Mães)

Nota prévia: em Abril de 2019, escrevi este texto alusivo ao tempo da Páscoa. Aqui fica ele, mais uma vez, para recordar o Cristo e homenagear todas as Mães.

 


Pintura: "Deposição de Cristo da Cruz" (1575-1577)
Autor: Jacopo Bassano

            A cruz pesava-lhe no ombro, mas já não tanto como no início. O corpo coberto de pústulas de sangue e suor misturadas com o pó seco do caminho, dando origem a uma espessa camada de lama avermelhada, começava a estar dormente, afastado do seu pensamento.

O sangue quente e vivo escorria-lhe da cabeça, e a coroa de espinhos continuava fortemente enterrada no crânio, parecendo ter nascido ali, com origem nos cabelos suados, castanhos e lodosos. O Sol a pino cegava-o e ele quase não conseguia ver para onde atirava os pés doridos, que as sandálias já não conseguiam proteger. O caminho era íngreme, pedregoso, difícil. Como difícil tinha sido a sua vida e a sua luta pela fé.

Jerusalém estava cheia de gente por altura da Páscoa. Muitos tinham vindo de longe só para verem, com os próprios olhos, a condenação e a morte de um homem que diziam ser o rei dos Judeus. A multidão cercava-o selvaticamente, gritando, urrando, fugindo às investidas dos soldados e dos cavalos, acicatando alguns cães que se misturavam com a turba em êxtase. Ele ouvia todo aquele barulho ensurdecedor, mas não conseguia distinguir as vozes. Esforçava-se, desesperadamente, por escutar, de entre a confusão de palavras, a voz gentil de Maria, sua mãe, que estivera sempre consigo, que o amava incondicionalmente, que sempre respeitara a sua vontade e as suas opções, que queria morrer por ele, se a deixassem. E Maria de Magdala, com o seu conforto e os seus olhos de avelã, doces e tristes, e João, o seu melhor amigo, o seu irmão, a sua paz. Mas o peso da cruz tirava-lhe a concentração, e desistiu. Sabia que estariam ali, a acompanhar o seu caminho derradeiro até ao Gólgota.

Sentiu que as forças lhe fugiam. Caiu mais uma vez. Mais uma vez os soldados romanos o levantaram a toque de lanças e de palavras sujas. Ergueu-se, as pernas a tremer e a garganta seca, seca, como as dunas do deserto. Dobrou-se para abraçar a cruz e pô-la de novo sobre os ombros, já em carne viva. Não foi capaz. O corpo não obedecia ao cérebro cansado. O estômago ardia-lhe e o coração parecia querer sair-lhe do peito. Apercebeu-se de que alguém lhe punha a mão na face. Por entre o sangue quase em crosta e o suor enlameado, abriu mais os olhos para ver quem era. Não era a mãe. Não era João. Nem Maria de Magdala.

“Chamo-me Simão. Vou ajudar-te”. E empurrado pelos soldados, após um brusco aceno de cabeça do centurião, o homem, já idoso, natural de Cirene, carregou a cruz durante uns bons metros. Os suficientes para aliviar um pouco o condenado. Este aproveitou para semicerrar os olhos e tentar ver, pela centésima vez, onde estavam os amigos. Escondidos, decerto. Amedrontados, como seria de esperar. A protegerem a própria vida.

Quando, com um esgar de sofrimento, se preparava para aceitar a cruz de volta, das mãos do Cireneu, viu uns olhos muito azuis, muito abertos, rasos de lágrimas, incrustados num rosto claro de tanta luz e triste de tanta dor. Era a mãe. Era a sua mãe que lhe estendia a mão frágil, como se com aquele gesto pudesse carregar também aquela cruz ensanguentada. Inspirado pelo olhar incomparável daquela mãe, incomparável como o de todas as mães, o condenado mostrou-se mais vigoroso, mais preparado para o resto do caminho em direcção ao monte.

 Agarrou na cruz, e nem as dores dos espinhos, nem os golpes das vergastadas lhe ardiam. Nada o segurou ou impediu de cumprir o fim da mais difícil oração da sua vida. Muito menos as memórias do que tinha sofrido havia poucas horas. Pelo seu olhar perpassou o manto cor de púrpura e os risos dos que, no Sinédrio, gozavam com ele, a cana a servir de ceptro, o seu rosto cansado, cuspido pelos soldados, as injúrias e os impropérios, a libertação de Barrabás, os gritos do povo enlouquecido, “Crucifica-o, crucifica-o!”, as mãos de Pilatos mergulhadas na bacia e, depois, pingando para o chão a água da indiferença…

            Olhou em frente e viu o monte. O Gólgota. O Monte da Caveira. Onde eram crucificados os que punham em causa o que não podia ser posto em causa. Seria ali, dentro de poucas horas, o lugar da sua morte. E ele sabia-o. Desde o tempo dos profetas que tudo isto se sabia. Nada era novidade para ele. Então, nada havia a fazer para contrariar a vontade dos homens que o tinham condenado, o desinteresse dos homens que não o defenderam e a frieza do Pai, que iria aparentemente abandoná-lo no momento mais extraordinariamente difícil da sua vida. E também sabia que as suas roupas iriam ser jogadas à sorte entre os soldados e que lhe iria ser dado vinho e fel, pelos mesmos que lhe iriam perfurar o lado para se certificarem da sua morte. Todas estas provações seriam muito mais difíceis de aceitar se a mãe não estivesse com ele, quando tudo terminasse. Essa era a sua grande certeza: a mãe iria recebê-lo nos braços, junto ao coração, num aperto derradeiro, único e doloroso. E lá estaria também a irmã dela. E João. E Maria de Magdala.

            Assim se cumpriu.

Depois da hora nona, as trevas invadiram a Terra. O condenado, à beira do fim (ou do princípio?), invocou o nome do Pai e, em paz, depois de tudo estar consumado, entregou o espírito.

O Sol eclipsou-se, o véu do templo rasgou-se em dois e a Terra tremeu, tal como tinha sido narrado pelos profetas.

                                                                …………………………..

          Aos pés da Cruz, o regaço de Maria recebeu, finalmente, este Menino de Sua Mãe, exangue, coberto de chagas, retalhado, sujo, semi-nu, abandonado, morto, mas vivo para toda a eternidade.    

terça-feira, 12 de março de 2024

O desespero da Rosa e outras estórias sem interesse

 


O desespero da Rosa

 

O descaramento socialista, pontuado por um certo desespero, tornou-se o rosto visível de um candidato com um histórico cheio de nódoas, atirado aos bichos no último congresso do PS pelos próprios camaradas e que, na noite das eleições, perante um país em suspenso, se mostrou ansioso por regressar a casa e fugir daquele cenário desastroso, criado por ele próprio e pelo Governo a que pertenceu e do qual foi despedido.

Como pode um partido, que perdeu a credibilidade perante os seus eleitores e perante os portugueses em geral, depois da sua queda vergonhosa por motivos ainda mais vergonhosos, apresentar um candidato que foi ministro, e ministro demitido por decisões mal explicadas?

Como é possível António Costa, no decorrer da campanha eleitoral, vir a terreiro defender o seu ex-ministro, por si demitido, como o candidato certo a primeiro-ministro de Portugal se ele nem um bom ministro foi?

Como se pratica o apoio a um falso delfim que, em debates televisivos após a sua demissão, rasgou o Governo socialista e o seu líder de alto a baixo?

A última pergunta que se impõe é ainda mais simples: o Partido da Rosa não tinha outro candidato, mais clean, menos polémico, para eleger como secretário-geral? Pedro Nuno Santos era mesmo o melhorzinho de todos? Pois… parece que não.

 

 O que o meu PS não fez, vou eu fazer agora…

              … poderia ter sido o lema de campanha do candidato socialista, já que foi um ver se te avias nas mudanças operadas no pensamento de Pedro Nuno Santos quando se viu na incumbência de ganhar as eleições. Por exemplo, tudo o que o Partido Socialista se recusou a fazer em relação às justas exigências dos professores, em pé de guerra com o ministério da tutela e com João Costa quase durante um ano lectivo inteiro, com Pedro Nuno tudo será agora diferente: os professores poderão vir a recuperar o tempo de serviço que lhes foi roubado. Serve esta atitude eleitoralista para medir o cinismo e a teimosia hipócrita do ministro da Educação, do ministro das Finanças e do primeiro-ministro, que afirmaram sempre não haver dinheiro para tal despesa repentina e incomportável. Agora, com PNS, o dinheiro deixou de ser problema.

PNS perdeu por uma nesga, mas perdeu. Ganhou o parente (não muito) afastado de Ventura que conseguiu pôr o país em suspenso com o seu “Não é não!”. Veremos se vai manter o que disse ou se, com o apoio do terceiro maior partido, vai contribuir para mudanças profundas na gestão do país e dos portugueses, algumas delas regressadas de outros tempos, em que o queridíssimo líder, com palavras mansas e cristãs, sussurradas aos ouvidos dos descontentes e guardadas e feitas cumprir por uma competente guarda pretoriana, punha e dispunha do tempo, da mente e da vontade dos liderados. 

  

O Povo é… o Povo (por enquanto) 

Não defendo partidos extremistas, nem de esquerda, nem de direita. E porque os extremos se tocam, a História já nos mostrou os resultados terríveis e os atentados aos direitos fundamentais dos cidadãos que regimes nazis/fascistas e regimes comunistas tiveram a oportunidade de exercer ao longo de décadas, sobretudo numa boa parte dos países da Europa, incluindo no nosso, durante 48 anos.  

Quando, ao longo do seu percurso de ascensão, um partido se revela uma alternativa, mas contra as pedras basilares do sistema democrático, esmagando aos poucos os direitos dos cidadãos, a primeira reacção, quase instintiva, é refutá-lo, mais do que isso, é ignorá-lo. Ainda assim, ignorar um partido com as características do partido de André Ventura só poderia ter dado este resultado: uma subida estrondosa no número de votos e uma conquista legítima e democrática de quase um quarto dos assentos parlamentares.

Inúmeras tempestades irão abrir-se sobre as nossas cabeças, acompanhadas de tsunamis e terramotos da mais diversa índole. Mas não nos podemos admirar. Foi o Povo que escolheu, e o Povo é soberano. Ninguém poderá contrariar a vontade do povo, e André Ventura tem isso do seu lado. Isso e as asneiras em catadupa perpetradas por Costa e seus delfins, de tal modo que tiveram de deixar cair um Governo de maioria que, por falta de inteligência, de sentido de Estado e com um sistema de amiguismo bem implementado, abriram um espaço preenchido por quem, à imagem de outros políticos tristemente célebres, souberam aproveitar o demérito da esquerda e o transformaram em mérito próprio para se auto-proclamarem salvadores de uma nação em agonia. Outros já o fizeram, vindos da esquerda e da direita, com os resultados desastrosos, assustadores e macabros que todos conhecemos e abominamos.

Há, porém, uma questão que Ventura, no meio da sua quase infantil euforia, ainda não ponderou. A subida vertiginosa do seu partido em termos de votantes, recebendo no boletim mais de um milhão e cem mil cruzinhas, não tem a ver com o seu programa eleitoral ou com as soluções que ele vai apresentando como se já fosse primeiro-ministro. Tem a ver com o descontentamento, com a desilusão, com o vazio que sentimos em relação à forma como temos sido governados. Ventura e o seu partido não têm JÁ um milhão de adeptos, têm APENAS um milhão de adeptos. Os outros seis milhões andam espalhados pelo espectro, desnorteados, à espera de melhor rumo.

O acto de desespero dos eleitores, até de vingançazinha, contra as duas maiores cores do espectro partidário, desvalorizando o peso desse gesto, pode resultar num caldinho ainda menos apetecível, onde seremos, cheios de estúpida felicidade, postos a cozer em fogo lento. Os próximos dias serão, pois, decisivos para as nossas vidas. Mas há sempre forma de voltar atrás.

É verdade! Alguém diga ao Presidente da República que, para já, guarde silêncio e deixe a democracia funcionar sozinha.

João Luís Nabo

In "O Montemorense", Março de 2024

Distraídos crónicos...


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