Nota prévia: em Abril de 2019, escrevi este texto alusivo ao tempo da Páscoa. Aqui fica ele, mais uma vez, para recordar o Cristo e homenagear todas as Mães.
A cruz pesava-lhe no ombro, mas já não tanto como no início. O corpo coberto de pústulas de sangue e suor misturadas com o pó seco do caminho, dando origem a uma espessa camada de lama avermelhada, começava a estar dormente, afastado do seu pensamento.
O sangue quente e vivo escorria-lhe da cabeça, e a coroa de espinhos
continuava fortemente enterrada no crânio, parecendo ter nascido ali, com
origem nos cabelos suados, castanhos e lodosos. O Sol a pino cegava-o e ele quase
não conseguia ver para onde atirava os pés doridos, que as sandálias já não
conseguiam proteger. O caminho era íngreme, pedregoso, difícil. Como difícil
tinha sido a sua vida e a sua luta pela fé.
Jerusalém estava cheia de gente por altura da Páscoa. Muitos tinham
vindo de longe só para verem, com os próprios olhos, a condenação e a morte de
um homem que diziam ser o rei dos Judeus. A multidão cercava-o selvaticamente,
gritando, urrando, fugindo às investidas dos soldados e dos cavalos, acicatando
alguns cães que se misturavam com a turba em êxtase. Ele ouvia todo aquele
barulho ensurdecedor, mas não conseguia distinguir as vozes. Esforçava-se,
desesperadamente, por escutar, de entre a confusão de palavras, a voz gentil de
Maria, sua mãe, que estivera sempre consigo, que o amava incondicionalmente,
que sempre respeitara a sua vontade e as suas opções, que queria morrer por
ele, se a deixassem. E Maria de Magdala, com o seu conforto e os seus olhos de
avelã, doces e tristes, e João, o seu melhor amigo, o seu irmão, a sua paz. Mas
o peso da cruz tirava-lhe a concentração, e desistiu. Sabia que estariam ali, a
acompanhar o seu caminho derradeiro até ao Gólgota.
Sentiu que as forças lhe fugiam. Caiu mais uma vez. Mais uma vez os
soldados romanos o levantaram a toque de lanças e de palavras sujas. Ergueu-se,
as pernas a tremer e a garganta seca, seca, como as dunas do deserto. Dobrou-se
para abraçar a cruz e pô-la de novo sobre os ombros, já em carne viva. Não foi
capaz. O corpo não obedecia ao cérebro cansado. O estômago ardia-lhe e o
coração parecia querer sair-lhe do peito. Apercebeu-se de que alguém lhe punha
a mão na face. Por entre o sangue quase em crosta e o suor enlameado, abriu
mais os olhos para ver quem era. Não era a mãe. Não era João. Nem Maria de
Magdala.
“Chamo-me Simão. Vou ajudar-te”. E
empurrado pelos soldados, após um brusco aceno de cabeça do centurião, o homem,
já idoso, natural de Cirene, carregou a cruz durante uns bons metros. Os
suficientes para aliviar um pouco o condenado. Este aproveitou para semicerrar
os olhos e tentar ver, pela centésima vez, onde estavam os amigos. Escondidos,
decerto. Amedrontados, como seria de esperar. A protegerem a própria vida.
Quando, com um esgar de sofrimento, se preparava para aceitar a cruz de
volta, das mãos do Cireneu, viu uns olhos muito azuis, muito abertos, rasos de
lágrimas, incrustados num rosto claro de tanta luz e triste de tanta dor. Era a
mãe. Era a sua mãe que lhe estendia a mão frágil, como se com aquele gesto
pudesse carregar também aquela cruz ensanguentada. Inspirado pelo olhar
incomparável daquela mãe, incomparável como o de todas as mães, o condenado
mostrou-se mais vigoroso, mais preparado para o resto do caminho em direcção ao
monte.
Agarrou na cruz, e nem as dores dos espinhos, nem os golpes das
vergastadas lhe ardiam. Nada o segurou ou impediu de cumprir o fim da mais
difícil oração da sua vida. Muito menos as memórias do que tinha sofrido havia
poucas horas. Pelo seu olhar perpassou o manto cor de púrpura e os risos dos
que, no Sinédrio, gozavam com ele, a cana a servir de ceptro, o seu rosto
cansado, cuspido pelos soldados, as injúrias e os impropérios, a libertação de
Barrabás, os gritos do povo enlouquecido, “Crucifica-o, crucifica-o!”,
as mãos de Pilatos mergulhadas na bacia e, depois, pingando para o chão a água
da indiferença…
Olhou
em frente e viu o monte. O Gólgota. O Monte da Caveira. Onde eram crucificados
os que punham em causa o que não podia ser posto em causa. Seria ali, dentro de
poucas horas, o lugar da sua morte. E ele sabia-o. Desde o tempo dos profetas
que tudo isto se sabia. Nada era novidade para ele. Então, nada havia a fazer
para contrariar a vontade dos homens que o tinham condenado, o desinteresse dos
homens que não o defenderam e a frieza do Pai, que iria aparentemente
abandoná-lo no momento mais extraordinariamente difícil da sua vida. E também
sabia que as suas roupas iriam ser jogadas à sorte entre os soldados e que lhe
iria ser dado vinho e fel, pelos mesmos que lhe iriam perfurar o lado para se
certificarem da sua morte. Todas estas provações seriam muito mais difíceis de
aceitar se a mãe não estivesse com ele, quando tudo terminasse. Essa era a sua
grande certeza: a mãe iria recebê-lo nos braços, junto ao coração, num aperto
derradeiro, único e doloroso. E lá estaria também a irmã dela. E João. E Maria
de Magdala.
Assim
se cumpriu.
Depois da hora nona, as trevas invadiram a Terra. O condenado, à beira do
fim (ou do princípio?), invocou o nome do Pai e, em paz, depois de tudo estar
consumado, entregou o espírito.
O Sol eclipsou-se, o véu do templo rasgou-se em dois e a Terra tremeu,
tal como tinha sido narrado pelos profetas.
Aos pés da Cruz, o regaço de Maria recebeu, finalmente, este Menino de Sua Mãe, exangue, coberto de chagas, retalhado, sujo, semi-nu, abandonado, morto, mas vivo para toda a eternidade.