Maio é mês de
Maria
e o mês do Dia da Mãe, acontecimentos que merecem uma reflexão, antes de muitos
de nós os esquecermos durante o resto do ano.
Maria será sempre
envolta no seu próprio mistério, atraindo várias centenas de milhares de
crentes à sua volta, na Cova de Iria, em busca de paz e numa peregrinação,
sobretudo, interior, que lhes permite regressar a casa mais leves, mais felizes
e com a sua fé reforçada. É admirável a força que a imagem de uma Mulher tão
especial irradia à sua volta, independentemente da fé de cada um. Embora
desligado espiritualmente de muitos dogmas da Igreja, as (raras) viagens que faço
ao Santuário de Fátima são sempre psicologicamente reconfortantes. Não me
pergunto porquê, porque não tenho resposta para tal. Sinto um certo magnetismo,
uma vontade de acreditar e, mais do que isso, o respeito por quem acredita.
O Dia da Mãe é para muitos um momento de alegria e de partilha de algum tempo com quem nos pôs no Mundo. Para outros, é um dia em que as recordações vêm mais ao de cima, transportando-nos para o tempo em que estavam connosco, não só nesse dia, mas em todos os dias de todos os anos da nossa vida. A nossa Mãe, embora já no mundo de todos os possíveis, continua connosco nos dias de festa, mas, sobretudo, naqueles em que o colo, que ela nos dava em tempos, era o único gesto, nobre e desinteressado, de que estávamos agora a precisar. Restam-nos as recordações dos dias passados, principalmente quando, na nossa infância, era a sua voz o nosso principal guia, o seu olhar a nossa segurança, as suas mãos o nosso remo.
Publiquei há uns anos um livrinho de contos, onde escrevi um que ofereci à
minha Mãe. Deixo aqui um excerto, que fala sobre as minhas idas ao mercado com
Ela, julgo que já transcrito outras vezes, porque é neste pedaço de texto que
eu lhe mostro toda a minha adoração e, neste momento, toda a minha saudade:
“(…) Fervilhar.
É o verbo que se
passeia pela memória dos dias quando me olho, através do tempo, a atravessar o
jardim com a minha mão esquerda, pequenina, embrulhada na da minha mãe. Cinco
anos de quotidianos felizes a ansiar pelos sábados de manhã para agarrar no
cesto e partir à descoberta neste templo onde as estações do ano comandam as
modas e os paladares de quem lá entra. Fervilhar. É som que não é som. É um
sentimento que começa ainda o dia não passa de duas, talvez três, pinceladas de
madrugada. Primeiro, vozes soltas, meio sozinhas ainda, neste espaço vazio,
gemendo, impando, dando ordens… Depois, mais vibrantes, frescas, timbres em
contraponto dos vendedores que, num aumento gradual, ali misturam os duros dias
ao sol, à chuva, ao frio, no campo, na lota, no matadouro, com as dores e os
caprichos das donas de casa, as exigências das avós que vão à hortaliça para a
sopa dos netos, os pedidos das criadas que não querem ouvir ralhar as patroas…
É um labirinto de
cores, um caleidoscópio de caras. De novidades iguais e diferentes. De
sorrisos, de esgares, da vida de todos os dias. Onde me perdia vezes sem conta,
porque um quadrado confunde toda a gente, mesmo que se visite amiúde e se
conheça cada erva que nasce por entre as lajes de granito pisado mil vezes.
Estranho este labirinto, que não tem nem corredores, nem passagens secretas,
espaço aberto onde todos sabem de todos, porque todos ouvem todos. Mas onde me
perdia constantemente… Acabando por sair sempre pela porta por onde não
entrara…
Talvez o lago, ao
centro ― uma taça de mármore, com uma coluna ao meio a equilibrar uma bola
fantástica a apontar para o azul, quando o há ―, fosse responsável por tal
perda de referência. A perseguição aos peixes vermelhos, que se bandeavam nas
águas claras e frias, era sempre o primeiro e único exercício físico possível
naquele lugar. Depois de umas quantas voltas, ora para um lado, ora para o
outro, para não entontecer, eis que acabava perdido, sem saber onde tinha
pousado o cesto, sem saber da minha mãe, sempre atenta no olhar e nas palavras,
entretida a falar com a D. Carlota do Julinho dos presépios, dos comboios
eléctricos e dos balões coloridos, mal pairavam os primeiros acordes do Natal.
E, quando, a troco
de um tostão, os vendedores me enchiam o pequeno cesto com duas ou três
cenouras, três ou quatro vagens de feijão-verde, um molho de salsa e outro de
hortelã, que deixavam um rasto de sabores adivinhados, eu sentia-me o petiz
mais importante do planeta, talvez o mais feliz do universo.
Agarro com força
estas memórias, como se fossem a mão da minha mãe, porque me sinto protegido,
aconchegado, fascinado com o tal barulho das vozes que continuam a misturar-se
em contracantos, salmodias e pregões. Sem nesse tempo perceber porquê, sentia
que aquelas melodias iam fazer parte da minha vida e que se prolongariam muito
mais do que durante aquela breve meia hora matinal. Só depois vim a entender o
poder daquelas vozes, mais puras, mais belas, mais sinceras e convincentes do
que muitas que mais tarde, por gosto ou missão, viria a escutar nas mais
divulgadas oratórias, nas mais sublimes árias, em tantas óperas, densas e
dramáticas, e no esplendor das cantatas de um tal senhor Bach.
A minha mãe
continua fiel às orações da manhã:
― Quanto é este
molho de espinafres?
― E o carapau do
alto? – pergunta ainda, de banca em banca, porque a tradição vive naqueles
olhos e naquela vontade sábia de continuar simples, a gostar das coisas
simples. Sei que ainda me dá a mão, como se eu, homem feito, diminuísse de
tamanho todos os dias, pegasse no cesto que ela me dera e, de moeda em punho,
fosse eu o responsável pelas ervas de aroma que ainda hoje lhe enchem a casa de
cheiros e de sonhos…”[1]