(Foto: Digital)
Incluída no meu livro "Outros Contos de Vila Nova" (Editorial Tágide, Lisboa, 2011), em homenagem à minha Mãe, nesse tempo ainda entre nós, volto a oferecer esta pequena história aos meus leitores, comemorando o renascimento do nosso Mercado Municipal que, na sua modernidade, não perdeu a essência dos meus tempos de menino. Obrigado à Autarquia por esta "prenda de Natal".
Fervilhar.
É o verbo que se passeia
pela memória dos dias quando me olho, através
do tempo, a atravessar o jardim com a minha mão esquerda, pequenina, embrulhada na da minha mãe. Cinco anos de quotidianos felizes a ansiar pelos sábados de manhã para agarrar no cesto e partir à descoberta neste
templo onde as estações do ano comandam
as modas e os paladares de quem lá entra.
Fervilhar.
É som que não é som. É um sentimento que começa ainda o dia não passa de duas, talvez três, pinceladas de madrugada. Primeiro, vozes
soltas, meio sozinhas ainda,
neste espaço vazio, gemendo, impando, dando ordens… Depois, mais vibrantes,
frescas, timbres em contraponto dos vendedores que, num aumento gradual, ali misturam os duros dias ao sol,
à chuva, ao frio, no campo, na lota,
no matadouro, com
as dores e os caprichos das donas de casa, as exigências das avós que vão à hortaliça
para a sopa dos netos, os pedidos das criadas que não querem ouvir ralhar as patroas…
É um labirinto
de cores, um caleidoscópio de caras. De novidades
iguais e diferentes. De sorrisos,
de esgares, da vida de todos os dias.
Onde me perdia vezes sem conta, porque um quadrado confunde toda a gente,
mesmo que se visite amiúde e se conheça cada erva que nasce por entre as lajes
de granito pisado mil vezes. Estranho
este labirinto, que não tem nem corredores, nem passagens secretas, espaço aberto onde todos sabem de todos, porque todos ouvem todos. Mas onde me perdia constantemente…
Acabando por sair sempre pela porta
por onde não entrara…
Talvez o lago, ao centro ― uma taça de mármore, com uma coluna
ao meio a equilibrar uma bola fantástica a apontar para o azul, quando
o há
―, fosse responsável por tal perda de referência. A perseguição aos
peixes vermelhos, que se bandeavam nas águas claras e frias, era sempre o primeiro e único exercício físico possível naquele lugar. Depois de umas quantas voltas, ora para um lado, ora para o outro, para não entontecer, eis
que acabava perdido, sem saber
onde tinha pousado o cesto, sem saber
da minha mãe, sempre atenta no olhar e nas palavras, entretida
a falar com a D. Carlota do Julinho
dos presépios, dos comboios
eléctricos e dos balões
coloridos, mal pairavam
os primeiros acordes do Natal.
E, quando, a troco de um tostão, os vendedores me enchiam o pequeno
cesto com duas ou três cenouras, três ou quatro vagens de feijão-verde, um molho de salsa e outro de hortelã, que deixavam um rasto de sabores adivinhados, eu sentia-me o petiz mais importante do planeta, talvez o mais feliz do universo.
Agarro com força estas memórias, como se fossem a mão da minha mãe, porque me sinto protegido, aconchegado, fascinado
com o tal barulho das
vozes que continuam a misturar-se em contracantos, salmodias e pregões. Sem nesse tempo perceber porquê, sentia que aquelas melodias iam fazer
parte da minha vida e que se prolongariam muito mais do que durante
aquela breve meia hora matinal. Só depois vim a entender o poder daquelas vozes, mais puras, mais belas, mais sinceras
e convincentes do que muitas que mais tarde, por gosto ou missão, viria a escutar nas mais divulgadas oratórias, nas mais sublimes árias, em tantas óperas, densas e dramáticas, e no esplendor das cantatas de um tal
senhor Bach.
A minha
mãe continua fiel às orações da manhã:
― Quanto
é este molho de espinafres?
― E o carapau do alto? – pergunta ainda,
de banca em banca, porque a tradição vive naqueles olhos e naquela
vontade sábia de continuar simples,
a gostar das coisas simples. Sei que ainda
me dá a mão, como se eu, homem feito, diminuísse de tamanho todos os dias, pegasse no cesto que ela me
dera e, de moeda em punho, fosse eu o responsável pelas ervas de aroma que ainda hoje lhe enchem a casa de cheiros e de sonhos…
João Luís Nabo
In "Outros Contos de Vila Nova"
Editorial Tágide, Lisboa, 2011