A importância da Revolução de Abril, concretizada na madrugada do dia 25 desse mês, do ano de 1974, será sempre encarada como um marco que transformou radicalmente as vidas dos nossos pais, as nossas e as dos nossos filhos, resultado, sobretudo, de um profundo desejo de mudança, atravessado, após 48 anos de ditadura, nas gargantas e nas mentalidades dos portugueses. Mais de quatro décadas após essa data, quero continuar a acreditar que todos os sectores da sociedade e da política portuguesa a encaram como uma mais-valia para um futuro que se construiu para todos, sobre um passado cinzento, de miséria, de medo e de perseguições políticas.
Levarei comigo, quando me for embora definitivamente, a imponência das chaimites vindas de Estremoz, carregadas de soldados, descendo a avenida Gago Coutinho da então Vila Notável, nessa manhã clara e de esperança. Salgueiro Maia já as esperava em Lisboa. Essa imagem de determinação e vontade marcou de forma irreparável o rapazola de 13 anos que se dirigia para casa, aconselhado pela professora de Matemática, a minha querida amiga Jesuína Raposo, porque não estavam garantidas condições para o prosseguimento das aulas. Quando cheguei junto de minha Mãe, esta já ocupada na preparação do almoço, encontrei-a na cozinha, com o aparelho de rádio ligado, de onde saíam vozes de homens entrecortadas por músicas militares e cantigas de Zeca Afonso. Tinha os olhos maiores e o sorriso mais aberto, misturado com a insegurança, a desconfiança que a caracterizava e o hábito de muitas décadas de silêncio e algum medo. O meu Pai chegou depois e mostrou-se igualmente receoso: “Vamos ter calma, que isto ainda pode voltar para trás.” Todas estas palavras foram, nesse momento, muito vagas para mim.
Mas o que podia voltar para trás não voltou. Aos poucos e com o passar do tempo, comecei a enquadrar a Revolução num cenário lógico, com vozes, agora sonoras e destemidas, que tinham acabado de atravessar uma longa noite de silêncios e sobressaltos. Quando, no longínquo mês de Julho de 1970, no dia 27, a minha Mãe segredou ao meu Pai, após um noticiário da Emissora Nacional, “O homem já morreu”, eu, de ouvido alerta, perguntei-lhes: “Quem é que morreu?” O olhar aflito da minha Mãe confundiu-me. Pensei que tivesse sido alguém da minha família. A voz dela ainda me deixou mais sem rumo: “Não são contas do teu rosário. Não fales disto a ninguém. Vai brincar”.
Evitar pronunciar com todas as sílabas o nome de Salazar, a ausência de liberdade, o temer pelo futuro, a guerra colonial estúpida e sem sentido (como se alguma guerra tivesse sentido), tudo isso foi revogado e assinado com cravos nas metralhadoras e gritos de alívio e de desabafo e de euforia.
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Quarenta e quatro anos mais tarde, ao rapazola já crescido apetece-lhe escrever sobre alguma da desilusão que hoje o acompanha. Não em relação aos princípios e aos valores de Abril. Esses são intocáveis e estão bem arrumados na sua cabeça. Mas em relação à apropriação que alguns partidos, sobretudo os mais à esquerda, parecem fazer desse movimento e dessa Revolução.
Se bem que a clandestinidade e as lutas contra o regime ditatorial de Salazar e Caetano fossem, na sua maioria, protagonizadas por portugueses ligados ao Partido Comunista Português ou próximos dele e por simpatizantes ou militantes de outras forças de esquerda, a Revolução, com R maiúsculo, com todos os seus frutos, todas as suas consequências, boas e más, é de todos nós: dos de esquerda, dos de centro, dos de direita e dos que não se encaixam em nenhuma das opções anteriores.
Já era, pois, tempo de não se transformar uma celebração nacional e colectiva num comício político-partidário, onde o protagonismo de alguns se transforma no desconforto de outros. Assim, acredito eu, muito dificilmente será possível habitarmos livres “a substância do tempo” após aquele “dia inicial e limpo”.
Inicial e limpo.
João Luís Nabo, in "O Montemorense", Abril de 2018