O que estou a pensar, Facebook?
Olha, estou a pensar que hoje não me levantei atrasado nem com dores de cabeça, com problemas gástricos ou crises de falta de ar; e também desliguei o rádio-despertador à primeira, sem entornar o copo de água e sem derrubar os quatro ou cinco livros que me vigiam o sono todas as noites.
Depois, enquanto tomei o meu duche matinal, a água não acabou e o gás também não. Na cozinha, o micro-ondas não fez efeitos especiais, com faúlhas e cenas, quando lá meti o leite a aquecer, e a medicação foi tomada com consciência do dever cumprido. A taça do Balú estava vazia e lá a enchi com uma dose suficiente para a sua refeição da manhã; continuou simpático, o bichinho, mas sem fazer habilidades de maior. A minha mulher levantou-se a horas, fez tudo a horas, tomou o seu pequeno-almoço de baixas calorias e saiu sem pressa para o emprego.
O meu carro pegou à primeira e tirei-o da garagem sem me roçar pelo muro, pelos arbustos ou sequer pelo portão ou pelo carro da vizinha que fica sempre ali estacionado resvés a minha entrada. O carro da minha mulher foi um luxo a pegar e também não houve acidentes que mereçam ser mencionados ou fotografados.
No emprego, os colegas saudaram-me todos com simpatia, houve tempo para um café e para actualizarmos um ou outro tema mais acutilante, relacionado com o Governo-toca-a-rir, com o Homem-selfie-vá-lá-mais-um-beijinho (que até é uma excelente dona de casa), ou com outra coisa igualmente de somenos importância.
Já notaste (oh, se notaste), Facebook que, até ao momento, não achei necessidade de fazer qualquer fotografia, nem minha, nem da Fofa, nem dos carros a saírem da garagem, nem do leitinho no micro-ondas, nem do Balú de língua de fora a babar-se todo, ao ver a ração da manhã a mergulhar na sua taça de metal de tamanho mediano comprada numa loja perto de si.
O almoço decorreu normalmente, também sem justificar fotos dos pratos acabados de chegar à mesa e, depois, todos emporcalhados, nem de nós, com caras de alarves, de papo cheio. A tarde foi uma tarde como as outras, desta vez com chuva, mas o que é se pode esperar desta altura do ano? E não, também não tirei fotos à chuva, nem às árvores a abanarem a guedelha, nem às nuvens escuras que sobrevoaram a cidade. Nem ao rio, nem ao Rio, nem a coisíssima nenhuma, nem ao Castelo, nem às ervas que enfeitam o Bairro da Che, nem ao Muro das Lamechices, nem aos prédios que estão quase a cair, no Centro Histórico da nossa cidade.
O jantar passou-se bem, com a família, e também não achámos importante fazer registo fotográfico das pataniscas da D. Domitília, que circulavam entusiasticamente de mão em mão, (é uma forma de dizer) boas, boas que até dói, nem da favada com chouriço, entrecosto e farinheira, feita cá pelo menino, paciente com a vida e com o fogão. Nem sequer houve fotos do menino com um avental oferecido pelo Compadre Chotas, há uns meses, numa noite de muita alegria (e que iria acabar no hospital), em casa da Isabel e do Zé. (Não, também não tirei uma foto ao Compadre Chotas, nem à médica que me assistiu, nem ao padre que me queria dar a Extrema Unção, comigo de olhos arregalados a olhar-lhe para a estola e para aquele aparelhozinho de prata que eles usam para atirar a água benta para cima dos pobres moribundos).
Ao serão, depois da cozinha arrumada, preparei o trabalho para o dia seguinte. Não houve fotos nem da esfregona, nem do pano da loiça, nem do fogão eléctrico a levar uma esfrega com um produto muito bom que parece gel de banho mas não é. Muito menos dos manuais de Inglês e de Alemão espalhados sobre mesa da copa, nem das fichas ou dos testes que vou ter que ver (Há-de ver quem?).
Tratados esses assuntos, televisão com eles. Pôr algumas séries em dia, ver os telejornais em diferido, já que em directo não foi possível, e dar algum repouso ao cérebro, cujo conteúdo, por esta altura, já está muito parecido com o gel que usámos para limpar o fogão eléctrico. Não há imagens minhas a ver as séries, nem poderão ver a minha cara de horror quando ouvi a Cristas a dizer que quer ser primeira-ministra, nem admirar o rosto seráfico da minha mulher a fingir que não percebeu o Jerónimo de Sousa que esteve, há pouco, há poucochinho, a falar contra o capitalismo, contra o capital, em defesa dos trabalhadores, do proletariado e de um país mais igualitário. Coisa que ele raramente faz.
Os filhos distribuíram-se pelos seus afazeres do serão, sem necessidade de fotos, nem em pose, nem sem ser em pose. Também não achámos bem fazermos imagens do pessoal em pijama, já mais tarde, a comer um iogurte com cereais, antes de subir para a caminha. Nem sequer ficámos com uma imagem da colher ou sequer das pantufas da Joana que são cinco estrelas, fofinhas e quentinhas que até apetece dormir lá dentro.
Acordei a Fofa, ainda a sonhar com o Jerónimo de Sousa, e lá fomos nós para a cama. Não há fotos da cama, nem dos últimos momentos antes de adormecermos. Ainda li umas páginas de um romance, pensei noutro que poderia muito bem começar a escrever e… apagámo-nos durante umas horas.
Como vês, Facebook, o meu dia foi o de um cidadão normal, igual a tantos outros, pacífico e sem nenhuma tendência para grandes chatices.
O que queres tu que mais te diga?
João Luís Nabo
In "O Montemorense", Março de 2018