(Foto: Manuel Filipe Vieira)
Excerto da minha intervenção na Homenagem a Vítor Guita:
Hoje, nesta
circunstância tão especial, vivo um verdadeiro momento de aflição quase
existencialista, porque tenho tantas coisas para dizer, outras tantas para
revelar, que vou receber discretamente um recado do presidente da sessão para
me calar, porque vou claramente ultrapassar o tempo que me é destinado. Pois
mesmo que haja essa dita repreensão, não me calarei enquanto não disser o que
me trouxe até aqui.
E o que eu
venho aqui dizer é, antes de mais, manifestar o privilégio que é privar, desde
há muitos anos, com o Vítor nas mais variadas vertentes em que ele se tem
envolvido ao longo da sua vida que, a ser contabilizada como devia, já daria
para umas três vidas, mais ano menos ano, de um qualquer cidadão normal.
O Vítor nunca
gostou de pantufas, nem de roupão, nem de sofá. O Vítor nunca gostou de mentir,
nem de fingir, nem de fugir aos que dele precisam.
Ora vamos lá
por partes: se falarmos de música, o Vítor está lá. Começou por aprender
violino (“Tive pena de não ter continuado”, confessou-me ele um dia). Mas não
foi por isso que a música deixou alguma vez de fazer parte da sua vida. Esteve
na fundação do célebre grupo de baile Quinteto Zeus+1, está no Coral de São
Domingos há 25 anos, é professor aqui, neste Convento, nos Cursos da
Universidade Sénior, orienta a Tuna dessa Universidade e anda agora a aprender
cavaquinho.
Se falarmos
de teatro, temos de recuar aos finais dos anos 70, quando o jovem Vítor Raul
esteve com um pé no Conservatório Nacional de Lisboa e o outro pé na
Universidade Clássica de Lisboa. Uma bifurcação que o obrigou a optar, não sei
se por razões de preferência. Depois de ter feito dois anos de Sociologia, em
Évora, foi cursar Letras e pôs de lado a ideia de se matricular naquela grande
escola da altura que era o Conservatório Nacional. Mas também não foi isso que
o levou a esquecer o teatro. Pelo contrário. Fez parte, desde sempre, de
diversos grupos cénicos em Montemor, como actor e encenador, vivendo a
adrenalina do palco e dos bastidores vezes sem conta.
E foi na Escola Secundária da
nossa terra, onde trabalhámos juntos como professores (hoje só lá estou eu. Eu
e outros), que o Vítor veio transformar o teatro, obrigatório nos programas
escolares de Português, peças sem o som dos actores e sem o indispensável pó de
palco, veio transformar esse teatro… meramente teórico e, arrisco-me a dizer,
por vezes, enfadonho, em peças representadas na Secundária de Montemor, em
diversas escolas do país, no Cineteatro Curvo Semedo, aqui com destaque para duas
grandes produções de saudosa memória, saídas da pena do Professor Carlos Cebola
e com encenação do próprio Vítor: João
Cidade e Tamar.
Depois do
Vítor, o teatro amador feito em Montemor começou a ser feito profissionalmente
por amadores, o que passou a ser totalmente diferente. Dos inúmeros jovens que
com ele trabalharam, alguns vieram a destacar-se, quer a nível local, quer
nacional, como os casos paradigmáticos dos actores e encenadores montemorenses Hugo
Sovelas e Carlos Marques. Impossível, também, esquecer a Associação Theatron da
qual ele faz parte como actor e em cujas produções representa com o mesmo profissionalismo,
quer as personagens mais secundárias, quer as de maior relevo nos dramas.
É curioso
recordar que o teatro foi para ele uma forma moderna, ainda antes do 25 de
Abril, de, pedagogicamente, reeducar os que, pelos mais variados motivos estavam
sob a sua responsabilidade na prisão do Alfeite, onde o tenente Vítor cumpriu o
serviço militar como fuzileiro, servindo o país, mas sempre desconfiado do país
que servia.
Se falarmos
na escrita, somos forçados, com prazer, a relembrar a forma quase queirosiana
com que nos delicia, descrevendo nas suas crónicas nos jornais da terra, os
quotidianos, os vícios e as virtudes de Montemor e dos montemorenses de outros
tempos. O seu olhar crítico, a sua escrita cuidada, sem dar tréguas ao laxismo
ou às palavras ao acaso, com o seu adjectivo exacto para o substantivo
absolutamente oportuno, fazem da sua escrita um rendilhado de bilros, uma
aguarela de Cézanne ou de Monet ou um quadro futurista de Paula Rego. E teremos
de referir a sua enorme paixão por Montemor e por escritores de Montemor: por Curvo
Semedo, cuja memória ele reabilitou nos 150 anos da sua morte, em 1998; por Almeida
Faria e, sobretudo, pelo seu grande amigo de sempre, o saudoso João Alfacinha
da Silva, o Alface, que ele recorda publicamente sempre que pode e sempre,
sempre com um brilho feliz no olhar. Um brilho que é um misto de gozo secreto, de
saudade e de cumplicidade para além da morte.
Falámos da
música, do teatro e da escrita. Ainda não falámos das três dezenas de anos que
o Vítor passou a ensinar Francês, Português e Literatura a centenas e centenas
de jovens que hoje, e já nessa altura, o consideravam um dos grandes professores
que passou pela Escola Secundária de Montemor. O Vítor não ensinava só o que vinha
nos livros (aliás, o Vítor nunca teria precisado de livros. Bastar-lhe-ia uma
sala, um quadro e uma turma para fazer daquele tempo de aprendizagem uma
aventura de saber e de conquista sem igual). O Vítor nunca olhava só para o
aluno. Olhava, qual Blimunda de Saramago, para dentro dele e tentava perceber
onde estavam os seus pontos fortes para os realçar ainda mais, no decorrer das
aulas, nos ensaios de teatro ou em conversas de amigo. O Vítor nunca obrigou
ninguém a coisa nenhuma. As palavras do Vítor não se escutam. Bebem-se. O Vítor
foi e é assim: aponta caminhos, mostra o que sente, e depois que cada um que
faça como achar melhor.
Ao falarmos dos quatro vértices deste quadrado
perfeito - Música, Teatro, Escrita e Ensino - ficámos com o interior desse
quadrado disponível para falamos também do Homem, do Pai e do Marido que tem
arrastado consigo, no bom sentido claro, a Maria Emília e a Vera que, mais
visivelmente ou mais nos bastidores, dão sequência ao seu trabalho, são o seu
apoio, o seu consciente e o seu alter-ego. Não estão, nem atrás, nem à frente
dele. Estão ao lado. Exactamente no meio do quadrado. Atentas ao Homem e aos
seus quatro vértices. Estiveram lá sempre. E hão-de continuar a estar.
Durante
muitos anos, em muitas ocasiões, tenho humildemente tentado corresponder às solicitações
do Vítor. Porque a um Amigo que nunca diz que não a ninguém, também nunca lhe
podemos dizer que não. Mas não é só por isso. É que, trabalhar ao seu lado, a
dirigi-lo ou a ser dirigido por ele, são sempre momentos em que recebemos da
sua parte uma enorme generosidade e uma sólida aprendizagem, porque ambos damos
tudo o que temos, o melhor que sabemos, com o coração nas mãos e sem pedir nada
em troca um ao outro. A nossa amizade é o suficiente.
Antes de
terminar, não resisto em falar em mais um dos muitos prazeres que o Vítor
retira da Vida. O prazer da Mesa. Da mesa farta. Repleta de iguarias, sobretudo
alentejanas, magistralmente confeccionadas pela Maria Emília. Uma mesa farta
também de Amigos de todas as nacionalidades, raças, religiões e estratos sociais
que vão fazendo da sua casa, uma espécie de sucursal das Nações Unidas. Mas
unidas. Mesmo.
Agora sim, à
laia de final e para que conste, e porque há muita gente ainda que não o sabe,
o nome do homenageado é Vítor Raul. Não é Vítor Abdul. O nome Abdul ganhou ele
de quem era amigo do seu saudoso pai, Abdul Salgado Guita, de quem também tive
o privilégio de, ainda adolescente, conhecer e ser amigo. Mas quando se referem
ao Vítor como Vítor Abdul, ele também nunca disse que não era esse o seu nome. Porque,
afinal, há filhos que dos pais até o nome herdam mesmo que o seu seja outro. É
uma forma de ficarem eternamente juntos.
Parabéns,
Vítor e Obrigado.