A leitura e a escrita são dois actos de sobrevivência que me acompanham desde a mais tenra idade, por abençoada culpa da minha Mãe, que decidiu, a certa altura, ensinar-me a arte de juntar as letras e as palavras, tanto no abstracto do meu pequeno cérebro, como no concreto de uma folha de caderno de duas linhas. Ler e escrever foram, desde os quatro anos de idade (estávamos em 1965), a minha forma mais directa de contacto com os outros, com os seus pensamentos e as suas formas de estar. Tornou-se, pois, um vício, um hábito, uma necessidade, um prazer, encontrar as palavras certas para os momentos adequados, lê-las e degustá-las em grandes autores, sugá-las de incomensuráveis pensadores, mastigá-las num torpor prolongado para definir com acuidade o seu sabor, o seu sentido, para, depois, cair voluntariamente nas armadilhas que me ofereciam; mais ainda, tentar escrevê-las por aqui e por ali, sofrer com cada adjectivo, saborear cada advérbio, multiplicar cada verbo por mil, porque o verbo é, e será sempre, o motor do texto e, juntamente com o amor, o motor da vida.
É
por isso que, em cada apresentação pública dos meus livros, sinto uma profunda
e carinhosa necessidade de agradecer à minha Mãe, que acabou por livrar-se de
um puto insistente e incomodativo e passou a ter tempo mais livre para as suas
próprias leituras; à minha professora
primária, porque me ajudou a desenvolver e a aprofundar esta apetência; aos
meus professores de Português e de Literatura, que perceberam que eu podia ir
mais além, e aos leitores de várias dezenas de anos e aos mais recentes, aos
mais velhos e aos mais jovens, que seguem curiosos o que a escrita continua a revelar
do pensamento de quem a produz.
Escrever,
hoje em dia, em Portugal ou em qualquer outro país de uma Europa cada vez mais
politicamente correcta, é um dos exercícios mais perigosos que alguma vez
pudesse ter existido. Mais do que uma espada, uma pistola ou um canhão, muito mais
do que uma bomba atómica ou um discurso de Trump ou de Bolsonaro (a quem,
felizmente, pouca gente já passa cartão), a escrita tornou-se uma porta aberta,
não para os que escrevem poderem fazer sair o seu estado de alma, as suas
ideias cívicas e morais, o seu sentido de justiça e tolerância, mas para dar
entrada aos intolerantes, aos perversos, aos que não gostam que as verdades
sejam ditas através das suas reais designações, com as palavras certas nos
textos ou nos momentos que eles, do alto da sua intocável importância,
consideram mais inoportunos.
Longe de um lamento caquético e miserabilista, este
alinhavar de ideias a que me propus hoje é tão somente a constatação do aumento
crescente de cidadãos que, indiferentes aos reais problemas do mundo, do país ou da sua terra, têm como
artimanha cortar cerce os pensamentos dos seus semelhantes, acusando-os com qualquer
epíteto que esteja à mão, com o objectivo apenas de os fazer desacreditar
perante a opinião pública, de os enfraquecer, de ridicularizar as suas sugestões,
ideias ou os seus compromissos para consigo próprios e para com o público
leitor. O que estou a narrar não será
novidade para nenhum de vocês. Muitos dos que me lêem também praticam o
exercício da escrita. Poderá não ser com a mesma regularidade, mas também já
foram alvo preferencial (não utilizei a palavra “vítimas”) de radicais com
instinto de matadores, que desdizem, desmontam, desconstroem, com espírito de
malvadez e, tantas vezes, falta de conhecimentos, as ideias que todos têm o
direito de propagar em jornais, revistas ou nas redes sociais,
independentemente das suas cores partidárias, futebolísticas ou religiosas.
A publicação de uma ideia, de um pensamento, com maior ou
menor ironia, com maior ou menor impacto, nas redes sociais, por exemplo, todas
elas cheias de armadilhas e subterrâneos, nunca será aceite, sobretudo pelos
visados e quando esses visados sabem que em termos de razão nada têm a ganhar.
Comentar, hoje em dia, de forma livre e descomprometida, uma decisão do Governo,
uma informação os sindicatos, um discurso de um líder partidário, pode ser útil
para compreendermos o verdadeiro íntimo de quem nos lê, mas transforma-se numa
carga de trabalhos para explicarmos às virgens ofendidas a nossa verdadeira
intenção e, sobretudo, a liberdade que todos devemos ter para exercer a arte da
escrita como reflexo da nossa forma de pensar e de viver.
Porque
se confunde transparência e rigor com caça às bruxas, vontade genuína de
partilhar ideias e de descobrir a verdade com vontades obscuras e terríficas de
conspirar contra o que é novo e irreverente, os arautos defensores da raça ideal,
da religião adequada, dos corpos modelo, dos partidos salvadores e de uma nova
Ordem, atacam sem lei nem regra os que lhes apontam os erros, lhes mostram o
anacronismo dos seus compromissos, e não toleram as verdadeiras intenções dos
seus planos altamente maquiavélicos. Escrever sobre isso, contudo, revela-se cada
vez mais complicado, não pela incapacidade de chegarmos, ou de tentarmos
chegar, à verdade e, sem medo, expor o que pensamos e sentimos sobre
determinada gente e seus apoiantes, mas porque, à imagem do que acontecia antes
de Abril de 74, há delatores, conspiradores, informadores, telefonemas de aviso
e mensagens ameaçadoras que começam a fazer esmorecer muitos dos que sempre se
bateram pela verdade e pela transparência.
Em
forma de agradecimento a todos os que, antes de Abril, lutaram e morreram em
nome da liberdade e para que nunca mais se sentisse medo neste país, nem nesta
terra, está terminado e em preparação editorial o meu primeiro romance (é um
privilégio partilhar em primeira mão com os leitores esta notícia) que será
publicado pelas Edições Colibri e tem prefácio da historiadora Teresa Fonseca.
Chama-se Sertório - uma história de Vila Nova e, acredito, irá ficar no
vosso coração e na vossa memória.
João Luís Nabo
In "O Montemorense", Janeiro 2021