Carta a um cão que não era um cão
Querido Balú:
Escrevi-te em tempos uma carta
em nome da Família, ainda estávamos confinados por causa da pandemia e, sem me
teres respondido, mostraste-nos todos os dias como um cão pode ser um
extraordinário ser humano, atento, amoroso e que cuida dos que lhe são
próximos.
Vigiavas todos os nossos
passos, ficavas triste quando não nos apetecia sorrir, abrias os olhos e
balançavas as orelhas quando era a alegria que dominava o momento. Esperavas
sempre por nós quando chegávamos a casa vindos do trabalho, adivinhavas quando
estava o carteiro quase a tocar à campainha e tornaste-te um amigo para a vida
de todos os que nos visitavam.
Após a tua partida, as
mensagens de apoio solidário de tantos amigos não tardaram em chegar. Poderá
ser absurdo enviar e receber mensagens de condolências pela morte de um cão? Pode.
Mas tu não eras um cão: eras a imagem da amizade, da fidelidade, da paixão, da
transparência, da socialização e da democratização das relações. Transformaste-te
numa estrela ainda em vida, passeavas pelas redes sociais, sabias posar para as
fotografias e viveste com esta tua Família de humanos durante doze bons anos,
recheados de grandes momentos que, por vezes, inspiraram algumas das minhas
histórias…
Eras tu o fiel companheiro que
ficava comigo, madrugada dentro, quando, no silêncio da casa, lançava para o
papel muitos dos escritos que circulam por aí. No silêncio da noite, debruçado
sobre o computador, ouvia apenas o teu ressonar, leve e compassado. De vez em
quando, acordavas, erguias a cabeça e levantavas o olhar, como que a dizeres:
“Estamos juntos, aqui, na vida e na ficção”.
No meu último livro de histórias,
Segredos de Vila Nova, és tu, querido Balú, que encerras aquele ciclo de
acontecimentos ficcionais e é assim que quero recordar-te – à minha espera. À
espera de todos nós:
“O autor destas histórias não ouviu o som das conversas e dos risos que se
avolumavam na sala e também já não ouviu o latido do cão, do Balú, que,
impaciente, se preparava, como de costume, para o receber ao fundo das escadas.
Por esta altura, apesar de
pouco tempo passado, já estarás com saudades de todos nós, dos mimos, dos
petiscos, das conversas, dos ralhetes, das sestas clandestinas no sofá, das
festinhas prolongadas em que tu te viciaste. As saudades são um reduto onde ficamos
presos porque queremos, porque quem ama… ama assim com mais força.
E era impossível não amar este
Balú dos olhos doces.
Almansor
Reconquistado
Há dois anos, a 30 de Maio, encerrou o Almansor que
conhecíamos. O Café que recebeu o nome do Rio e que, depois, deu nome ao Largo,
e que albergou, durante décadas, dezenas de histórias de bons e maus tempos,
dependendo da perspectiva de quem os viveu. Dias de poder e dias de
indiferença. Dias de equilíbrio e de reajustes, que a Revolução, a partir
daquele dia “inicial e limpo”, veio repor.
Fui cliente do histórico Café desde a minha tenra
adolescência. Ali começámos a beber chá de limão e meias de leite, de início,
para depois passarmos, descontraída,
ousada e corajosamente, a erguer à frente do nariz uma imperial gelada
ou um licor, cuja marca não me paga para fazer publicidade, enquanto se puxavam
as primeiras baforadas de um cigarro, fumado ali, longe da vista dos pais. Foi
ali que criei amizades, reforcei relações, me aborreci com amigos e com eles
fiz as pazes, sempre à volta dos petiscos extraordinários que saiam daquela
cozinha mágica. Fui lá, nesse dia 30 de Maio, despedir-me. Deixei ficar dois
exemplares do meu romance Sertório, história em que o José Maria e o
Evaristo têm uma breve participação, logo no segundo capítulo.
No início de Abril, regressei ao velho Almansor, agora
renovado. Aos icónicos proprietários sucedeu a Joana Pires e a sua jovem
equipa, que, numa cozinha aberta e “laboratorial”, começam já a deixar a sua
marca em todos os nossos sentidos. Da cozinha continuam a nascer os vapores da
comida caseira, que degustamos lentamente e a matar saudades.
A ementa é simples, sem que o cliente/amigo perca muito
tempo com indecisões. E depois sabemos que o que pedimos está imbuído de
qualidade e, ao mesmo tempo, de um pouco de exotismo. Comemos um “Bacalhau à
Avó Guida”, porque as avós deixam sempre aos netos coisas boas, com sabor a
infância, como se prolongassem através da sua comida o mimo que lhes dão e que
fica a pairar-nos no pensamento como uma carícia permanente.
Encontrámos todos estes ingredientes naquele “Bacalhau à
Avó Guida”, no serviço impecável de cozinha, na face resplandecente de
felicidade da Joana e no prazer desta visita ao velho Almansor… reconquistado.
Vai um Martini?
Há uns tempos, estive a relar as crónicas publicadas
neste espaço entre 2019 e 2024 e decidi que já era altura de escolher algumas
para pôr num livro a que viria a chamar O Martini das Onze e Meia. Vai
ser servido no dia 7 de Junho, na Biblioteca Municipal da nossa cidade.
Nunca é suficiente o agradecimento ao jornal "O Montemorense", às Edições Colibri, à
Câmara Municipal, à União de Freguesias Vila, Bispo e Silveiras e à equipa que
esteve comigo desde o início deste projecto: Fernando Mão de Ferro, Manuel
Filipe Vieira, Vítor Guita, Pedro Coelho, Tânia Grafino, Pedro Ferreira, Ricardo Feijão, Luís
Marinho Sampaio, outros amigos dedicados e, claro, o pessoal cá
de casa.
Vai um Martini? Com ou sem limão?
João Luís Nabo
In "O Montemorense", Maio de 2025