segunda-feira, 12 de maio de 2025

Carta a um Cão e outros escritos


 

Carta a um cão que não era um cão

 

Querido Balú:

Escrevi-te em tempos uma carta em nome da Família, ainda estávamos confinados por causa da pandemia e, sem me teres respondido, mostraste-nos todos os dias como um cão pode ser um extraordinário ser humano, atento, amoroso e que cuida dos que lhe são próximos.

Vigiavas todos os nossos passos, ficavas triste quando não nos apetecia sorrir, abrias os olhos e balançavas as orelhas quando era a alegria que dominava o momento. Esperavas sempre por nós quando chegávamos a casa vindos do trabalho, adivinhavas quando estava o carteiro quase a tocar à campainha e tornaste-te um amigo para a vida de todos os que nos visitavam.

Após a tua partida, as mensagens de apoio solidário de tantos amigos não tardaram em chegar. Poderá ser absurdo enviar e receber mensagens de condolências pela morte de um cão? Pode. Mas tu não eras um cão: eras a imagem da amizade, da fidelidade, da paixão, da transparência, da socialização e da democratização das relações. Transformaste-te numa estrela ainda em vida, passeavas pelas redes sociais, sabias posar para as fotografias e viveste com esta tua Família de humanos durante doze bons anos, recheados de grandes momentos que, por vezes, inspiraram algumas das minhas histórias…

Eras tu o fiel companheiro que ficava comigo, madrugada dentro, quando, no silêncio da casa, lançava para o papel muitos dos escritos que circulam por aí. No silêncio da noite, debruçado sobre o computador, ouvia apenas o teu ressonar, leve e compassado. De vez em quando, acordavas, erguias a cabeça e levantavas o olhar, como que a dizeres: “Estamos juntos, aqui, na vida e na ficção”.

No meu último livro de histórias, Segredos de Vila Nova, és tu, querido Balú, que encerras aquele ciclo de acontecimentos ficcionais e é assim que quero recordar-te – à minha espera. À espera de todos nós:

O autor destas histórias não ouviu o som das conversas e dos risos que se avolumavam na sala e também já não ouviu o latido do cão, do Balú, que, impaciente, se preparava, como de costume, para o receber ao fundo das escadas. 

 

Por esta altura, apesar de pouco tempo passado, já estarás com saudades de todos nós, dos mimos, dos petiscos, das conversas, dos ralhetes, das sestas clandestinas no sofá, das festinhas prolongadas em que tu te viciaste. As saudades são um reduto onde ficamos presos porque queremos, porque quem ama… ama assim com mais força.  

E era impossível não amar este Balú dos olhos doces.

 

Almansor Reconquistado

 

Há dois anos, a 30 de Maio, encerrou o Almansor que conhecíamos. O Café que recebeu o nome do Rio e que, depois, deu nome ao Largo, e que albergou, durante décadas, dezenas de histórias de bons e maus tempos, dependendo da perspectiva de quem os viveu. Dias de poder e dias de indiferença. Dias de equilíbrio e de reajustes, que a Revolução, a partir daquele dia “inicial e limpo”, veio repor.

Fui cliente do histórico Café desde a minha tenra adolescência. Ali começámos a beber chá de limão e meias de leite, de início, para depois passarmos, descontraída,  ousada e corajosamente, a erguer à frente do nariz uma imperial gelada ou um licor, cuja marca não me paga para fazer publicidade, enquanto se puxavam as primeiras baforadas de um cigarro, fumado ali, longe da vista dos pais. Foi ali que criei amizades, reforcei relações, me aborreci com amigos e com eles fiz as pazes, sempre à volta dos petiscos extraordinários que saiam daquela cozinha mágica. Fui lá, nesse dia 30 de Maio, despedir-me. Deixei ficar dois exemplares do meu romance Sertório, história em que o José Maria e o Evaristo têm uma breve participação, logo no segundo capítulo.

No início de Abril, regressei ao velho Almansor, agora renovado. Aos icónicos proprietários sucedeu a Joana Pires e a sua jovem equipa, que, numa cozinha aberta e “laboratorial”, começam já a deixar a sua marca em todos os nossos sentidos. Da cozinha continuam a nascer os vapores da comida caseira, que degustamos lentamente e a matar saudades. 

A ementa é simples, sem que o cliente/amigo perca muito tempo com indecisões. E depois sabemos que o que pedimos está imbuído de qualidade e, ao mesmo tempo, de um pouco de exotismo. Comemos um “Bacalhau à Avó Guida”, porque as avós deixam sempre aos netos coisas boas, com sabor a infância, como se prolongassem através da sua comida o mimo que lhes dão e que fica a pairar-nos no pensamento como uma carícia permanente. 

Encontrámos todos estes ingredientes naquele “Bacalhau à Avó Guida”, no serviço impecável de cozinha, na face resplandecente de felicidade da Joana e no prazer desta visita ao velho Almansor… reconquistado.

 

 

Vai um Martini?

 

Há uns tempos, estive a relar as crónicas publicadas neste espaço entre 2019 e 2024 e decidi que já era altura de escolher algumas para pôr num livro a que viria a chamar O Martini das Onze e Meia. Vai ser servido no dia 7 de Junho, na Biblioteca Municipal da nossa cidade.

Nunca é suficiente o agradecimento ao jornal "O Montemorense", às Edições Colibri, à Câmara Municipal, à União de Freguesias Vila, Bispo e Silveiras e à equipa que esteve comigo desde o início deste projecto: Fernando Mão de Ferro, Manuel Filipe Vieira, Vítor Guita, Pedro Coelho, Tânia Grafino, Pedro Ferreira, Ricardo Feijão, Luís Marinho Sampaio, outros amigos dedicados e, claro, o pessoal cá de casa.

Vai um Martini? Com ou sem limão?


João Luís Nabo

In "O Montemorense", Maio de 2025

segunda-feira, 21 de abril de 2025

Francisco

 

 


 

Muito se escreveu sobre a vinda do Papa Francisco a Portugal e sobre a Jornada Mundial da Juventude. Já muito se tinha escrito sobre o Papa Francisco e sobre o dedo que ele começou a pôr nas feridas da Igreja, logo no início do seu pontificado. Veio, logo que foi eleito, parece-nos, escancarar a porta que João Paulo II tinha deixado entreaberta. Meio disfarçados até então, os escândalos de pedofilia no seio da Igreja são assumidos sem meias tintas e condenados por Bergoglio, que quer justiça para as vítimas e duras penas para os que vierem a ser condenados.

Mas não foi apenas com estes casos que o seu tempo na cadeira de Pedro se tem revelado inspirador e profícuo. A sua forma de entender os evangelhos, reescrevendo-os sempre que se pronuncia sobre a vida de todos nós, crentes e não crentes, mostra-nos que o tempo, as leis, as mentalidades no tempo de Cristo, e nos séculos antes da Sua vinda, não se podem aplicar e serem entendidos da mesma forma, à luz deste século XXI, que corre vertiginoso ao nosso lado. Francisco transformou o Deus Todo-Poderoso e vingativo do Antigo Testamento num Pai compreensivo e tolerante que eu não conheci quando, criança, andava na catequese. O Deus castigador, que, qual Big Brother de Orwell, andava sempre de olho nas nossas acções, nos nossos pensamentos e nos nossos desejos, é hoje, nas palavras de Francisco, um Pai que, como todos os bons pais, aceita todos os seus filhos, por muito desviados que possam andar dos caminhos que a Igreja decidiu classificar como os caminhos do Bem.

Se o Papa Francisco fosse Deus, personalizado e livre de todos os insondáveis mistérios com que, ao longo dos séculos, os homens da Igreja O cobriram, eu repensaria as minhas opções de fé e reformularia as minhas vivências espirituais. Mas enquanto na Igreja não houver uma real e generalizada prática dos ensinamentos deste verdadeiro homem de Deus… continuarei a admirá-lo, a defendê-lo e a seguir o seu pensamento… mas do lado de fora.


João Luís Nabo 

In "O Montemorense", Setembro de 2023

In O Martini das Onze e Meia, Edições Colibri, 2025 (no prelo)

quinta-feira, 17 de abril de 2025

Stabat Mater (porque estamos na Páscoa)


 Imagem do filme "A Paixão de Cristo" (2004) de Mel Gibson


A cruz pesava-lhe no ombro, mas já não tanto como no início. O corpo coberto de pústulas de sangue e suor misturadas com o pó seco do caminho, dando origem a uma espessa camada de lama avermelhada, começava a estar dormente, afastado do seu pensamento.

O sangue quente e vivo escorria-lhe da cabeça, e a coroa de espinhos continuava fortemente enterrada no crânio, parecendo ter nascido ali, com origem nos cabelos suados, castanhos e lodosos. O Sol a pino cegava-o e ele quase não conseguia ver para onde atirava os pés doridos, que as sandálias já não conseguiam proteger. O caminho era íngreme, pedregoso, difícil. Como difícil tinha sido a sua vida e a sua luta pela fé.

Jerusalém estava cheia de gente, por altura da Páscoa. Muitos tinham vindo de longe só para verem, com os próprios olhos, a condenação e a morte de um homem que dizia ser o rei dos Judeus. A multidão cercava-o selvaticamente, gritando, urrando, fugindo às investidas dos soldados e dos cavalos, acicatando alguns cães que se misturavam com a turba em êxtase. Ele ouvia todo aquele barulho ensurdecedor, mas não conseguia distinguir as vozes. Esforçava-se, desesperadamente, por escutar, de entre a confusão de palavras, a voz gentil de Maria, sua Mãe, que estivera sempre consigo, que o amava incondicionalmente, que sempre respeitara a sua vontade e as suas opções, que queria morrer por ele, se a deixassem. E Maria de Magdala, com o seu conforto e os seus olhos de avelã, doces e tristes, e João, o seu melhor amigo, o seu irmão, a sua paz. Mas o peso da cruz tirava-lhe a concentração, e desistiu. Sabia que estariam ali, a acompanhar o seu caminho derradeiro até ao Gólgota.

Sentiu que as forças lhe fugiam. Caiu mais uma vez. Mais uma vez os soldados romanos o levantaram a toque de lanças e de palavras sujas. Ergueu-se, as pernas a tremer e a garganta seca, seca, como as dunas do deserto da Judeia. Dobrou-se para abraçar a cruz e pô-la de novo sobre os ombros, já em carne viva. Não foi capaz. O corpo não obedecia ao cérebro cansado. O estômago ardia-lhe e o coração parecia querer sair-lhe do peito. Apercebeu-se de que alguém lhe punha a mão na face. Por entre o sangue quase em crosta e o suor enlameado, abriu mais os olhos para ver quem era. Não era a mãe. Não era João. Nem Maria de Magdala.

“Chamo-me Simão. Vou ajudar-te”. E empurrado pelos soldados, após um brusco aceno de cabeça do centurião, o homem, já idoso, natural de Cirene, carregou a cruz durante uns bons metros. Os suficientes para aliviar um pouco o condenado. Este aproveitou para semicerrar os olhos e tentar ver, pela centésima vez, onde estavam os amigos. Escondidos, decerto. Amedrontados, como seria de esperar. A protegerem a própria vida.

Quando, com um esgar de sofrimento, se preparava para aceitar a cruz de volta, das mãos do Cireneu, viu uns olhos muito azuis, muito abertos, rasos de lágrimas, incrustados num rosto claro de tanta luz e triste de tanta dor. Era a Mãe. Era a sua Mãe que lhe estendia a mão frágil, como se com aquele gesto pudesse carregar também aquela cruz ensanguentada. Inspirado pelo olhar incomparável daquela mãe, incomparável como o de todas as mães, o condenado mostrou-se mais vigoroso, mais preparado para o resto do caminho em direcção ao monte.

Agarrou na cruz, e nem as dores dos espinhos, nem os golpes das vergastadas lhe ardiam. Nada o segurou ou impediu de cumprir o fim da mais difícil oração da sua vida. Muito menos as memórias do que tinha sofrido havia poucas horas. Pelo seu olhar perpassou o manto cor de púrpura e os risos dos que, no Sinédrio, gozavam com ele, a cana a servir de ceptro, o seu rosto cansado, cuspido pelos soldados, as injúrias e os impropérios, a libertação de Barrabás, os gritos do povo enlouquecido, “Crucifica-O, crucifica-O!”, as mãos de Pilatos mergulhadas na bacia e, depois, pingando para o chão a água da indiferença…

Olhou em frente e viu o monte. O Gólgota. O Monte da Caveira. Onde eram crucificados os que punham em causa o que não podia ser posto em causa. Seria ali, dentro de poucas horas, o lugar da sua morte. E ele sabia-o. Desde o tempo dos profetas que tudo isto se sabia. Nada era novidade para ele. Então, nada havia a fazer para contrariar a vontade dos homens que o tinham condenado, o desinteresse dos homens que não o defenderam, e a frieza do Pai, que iria aparentemente abandoná-lo no momento mais extraordinariamente difícil da sua vida. E também sabia que as suas roupas iriam ser jogadas à sorte entre os soldados e que lhe iria ser dado vinagre e fel, pelos mesmos que lhe iriam perfurar o lado para se certificarem da sua morte. Todas estas provações seriam muito mais difíceis de aceitar se a Mãe não estivesse com ele, quando tudo terminasse. Essa era a sua grande certeza: a Mãe iria recebê-lo nos braços, junto ao coração, num aperto derradeiro, único e doloroso. E lá estaria também a irmã dela. E João. E Maria de Magdala.

Assim se cumpriu.

Depois da hora nona, as trevas invadiram a Terra. O condenado, à beira do fim (ou do princípio), invocou o nome do Pai e, em paz, depois de tudo estar consumado, entregou o espírito.

O Sol eclipsou-se, o véu do templo rasgou-se em dois e a Terra tremeu, tal como tinha sido narrado pelos profetas.

…………………………..

Aos pés da Cruz, o regaço de Maria recebeu, finalmente, este Menino de Sua Mãe, exangue, coberto de chagas, retalhado, sujo, semi-nu, abandonado, morto, mas vivo para toda a eternidade. 


João Luís Nabo

In "O Martini das Onze e Meia", Edições Colibri, 2025 (no prelo)

  

quarta-feira, 9 de abril de 2025

Reconquistas

 




Reconquistemos Abril

 

Os cravos parecem começar a murchar. Os que os regavam diariamente vão desaparecendo aos poucos. Ou porque partem para outra dimensão, obrigados a isso pela lei da vida e da morte, ou porque tais flores, símbolo dos novos tempos que vieram depois das trevas, não atraem os que  nunca viveram o tempo da ditadura, das prisões, das torturas, do terror e da morte.

Não é necessário escrever muito mais. Partidos que nasceram num espectro que de  democrático nada têm começam, de forma absolutamente descarada, a conquistar um espaço que deveria continuar a ser preenchido por gente boa, com sentido democrático, defensores e praticantes activos da justiça e da tolerância, e criadores de um mundo onde não se instale o medo e a desconfiança permanentes.

A Revolução de Abril trouxe-nos algumas incertezas, mas acabou com a guerra colonial e com os presos políticos, para além de, definitivamente, nos permitir falar, escrever e pensar sem medo. É neste patamar que pretendemos permanecer até ao fim.

Foi disto que falámos com os meus alunos Catarina Neves e Santiago Batista e o Professor Vítor Guita, nas gravações para o programa infanto-juvenil Radar XS, da RTP. Para que a memória permaneça e o passado nunca regresse.

 

Para reforçar essa ideia, fica aqui este excerto de uma obra de ficção, embora baseada em factos reais, um modesto contributo para que a História nunca seja falsificada e para inspirar todos, sobretudo os jovens, para que a luta permaneça, de modo a que Portugal seja sempre um país liberto de todas as amarras e sem ameaças vindas de um passado que tem rosto e que não queremos de regresso: “Sem perder tempo, o outro pide deu-me um pontapé no estômago que me fez dobrar em dois e cair. Fiquei deitado, de costas para o Simplício que me aplicou dois pontapés no peito. Senti os ossos a quebrarem. Comecei a deitar sangue pela boca (…) Não o vou maçar com esta narrativa sobre as horas que passámos os dois, na mesma cela, juntos, dois homens feitos, um a transformar-se aos poucos num farrapo, após dezenas de horas sem dormir (Sertório foi substituído a meio da noite) e outro a usar o seu poder para dar liberdade às suas fantasias mais sórdidas. Fui ‘ferrado’ várias vezes ao longo da noite, por vezes esmurrado e, até, sovado com um cavalo marinho.”[1]

           

Almansor Reconquistado

 

Há dois anos, a 30 de Maio, encerrou o Almansor que conhecíamos. O Café que recebeu o nome do Rio e que, depois, deu nome ao Largo, e que albergou, durante décadas, dezenas de histórias de bons e maus tempos, dependendo da perspectiva de quem os viveu. Dias de poder e dias de indiferença. Dias de equilíbrio e de reajustes, que a Revolução, a partir daquele dia “inicial e limpo”, veio repor.

Fui cliente do histórico Café desde a minha tenra adolescência. Ali começámos a beber chá de limão e meias de leite, de início, para depois passarmos, descontraída,  ousada e corajosamente, a erguer à frente do nariz uma imperial gelada ou um licor, cuja marca não me paga para fazer publicidade, enquanto se puxavam as primeiras baforadas de um cigarro, fumado ali, longe da vista dos pais. Foi ali que criei amizades, reforcei relações, me aborreci com amigos e com eles fiz as pazes, sempre à volta dos petiscos extraordinários que saiam daquela cozinha mágica. Fui lá, nesse dia 30 de Maio, despedir--me. Deixei ficar dois exemplares do meu romance “Sertório”, história em que o José Maria e o Evaristo têm uma breve participação, logo no segundo capítulo.

 

João Luís Nabo

In "O Montemorense", Abril de 2025

[1] In Sertório, uma história de Vila Nova, Edições Colibri, 2021.

terça-feira, 11 de março de 2025

Três dúvidas (ainda) sem resposta

 




1

A relação a três, entre Trump, Zelensky e Putin, jamais poderá correr bem, tal como outras milhentas relações a três que conhecemos. Há-de haver sempre alguém a perder. E não será Putin. Ou Trump. Porque estes agem sobre os outros em clima de medo e intimidação.

No momento da redacção desta breve nota, está tudo em aberto à espera da decisão do presidente ucraniano em relação ao acordo com os Estados Unidos sobre a exploração das terras raras na Ucrânia. Trump é uma amante cara e Putin um zelador exigente, que também não vai ficar de mãos a abanar. Assim, a ser assinado, o acordo será um passo em frente para a diplomacia norte-americana pressionar o Kremlin ainda com maior foco, ajeitadas que vão ficar as vantagens para cada um destes chantagistas políticos.

Que venha a paz. Poderá dizer-se “que venha, mas não a qualquer custo”. Contudo, Zelensky já pouco pode pedir, depois da humilhação de que foi alvo na Sala Oval e, mais humilhante ainda, ser obrigado a aceitar o que os outros dois lhe querem oferecer. Apenas quer que termine a guerra para que se possam chorar com tranquilidade os milhares de mortos e estropiados que a estupidez humana causou.

Chamo-lhe “guerra”, tal como (quase) toda a gente lhe chama. Digo “quase”, porque as chefias e os militantes comunistas do nosso país preferem referir-se a esta guerra criminosa como uma “acção” ou “intervenção militar”.  Continuam, pois, agarrados com muitas saudades a um passado que nada tem a ver com os tempos de hoje, mas que, na mística comunista, é sempre associado à Grande Mãe Rússia, noutros tempos, dos czares, estes assassinados pelos líderes bolcheviques que, dando poder a Estaline, viram assim prolongado o sistema de que nunca se livrariam (excepto, talvez, durante uns anos, no tempo de Gorbachev e Ieltsin): o da obediência cega e estupidificante a um chefe, senhor da terra, dos corpos e das mentes dos seus eternos súbditos.

Basta de anacronismos. Basta de guerra. Basta de violação dos direitos humanos. Basta de fascismo disfarçado por eleições ditas democráticas. Serve o recado para Putin, para os camaradas que o veneram e para o outro miúdo inconsequente que vive e vomita ódio do outro lado do Atlântico.

A dúvida, contudo, subsiste: que futuro nos reserva o futuro?

 

 

2

 

No decorrer da votação da moção de confiança apresentada por Luís Montenegro na Assembleia da República, limito-me a descrever numa frase o estado da nação em que vivemos e trabalhamos: somos um caos, sem rei nem roque. Os partidos representados na Assembleia assemelham-se a umas baratas tontas, cheias de dúvidas, truques e contradições, sem capacidade para decidir qual a cor que melhor lhes garanta o acesso ao poder, sobretudo ao poder no hemiciclo onde tudo se decide. As alianças serão tantas e mudarão tão rapidamente de uma hora para a outra, que continuarão a ser esquecidos os verdadeiros problemas do país e as verdadeiras pessoas que dele precisam.

E o resultado foi o esperado: o Governo caiu porque… Montenegro vai ter de se apresentar na Comissão Parlamentar de Inquérito requerida pelo PS. Pouco mais há a escrever. O debate de hoje na Assembleia da República foi um péssimo serviço à democracia e uma falta de respeito pela nossa inteligência.

Se Costa teria caído, alegadamente, por causa de um parágrafo escrito pela Procuradora-geral da República, na sequência do processo Influencer, resta saber quem terá feito cair Montenegro. Se ele próprio, se um conjunto de factores bem cozinhados entre algumas forças obscuras, para que o país continue neste Carnaval sem fim, que nos enoja e preocupa a todos.

E a dúvida cá continua: que futuro nos reservam os políticos nacionais, sempre ameaçados e chantageados pelo tal partido de extrema-direita, que já irrita pela sua arrogância e déficit democrático?

  

 3

 

Anunciada oficialmente a candidatura de Carlos Pinto de Sá à Câmara Municipal de Montemor-o-Novo, o actual presidente terá naturalmente de precaver-se perante o regresso deste peso-pesado da política autárquica, que tem sempre encontrado a sua base de apoio oficial e oficiosa não só em militantes comunistas (com os da velha guarda cada vez em menor número), mas em cidadãos com outras filiações ou simpatias partidárias. Pois, Pinto de Sá, presidente da autarquia montemorense entre 1994 e 2012 e quase ex-presidente da Câmara de Évora, regressa da capital do distrito a um concelho que conhece como ninguém, e a um terreno de combate político que foi o seu durante muitos anos. Desta vez, a sua estratégia será ligeiramente diferente, já que vai encontrar um candidato socialista com experiência autárquica em termos de gestão, com alguma obra feita e que derrotou os comunistas nas autárquicas de 2021.

Olímpio Galvão vai, naturalmente, passar uma revista às mudanças operadas no concelho no decorrer do seu mandato, analisará o que não foi concretizado, vai perceber  as razões, vai congratular-se com as conquistas alcançadas, pôr tudo nos dois pratos da balança e preparar-se para a luta.

Várias questões começam a colocar-se, à luz da psicologia comportamental: querem os montemorenses continuar a garantir o lugar a Olímpio Galvão e à sua equipa, com um voto de confiança para mais quatro anos, ou entendem que a candidatura de Pinto de Sá simboliza o regresso do D. Sebastião, que a Oposição ao actual presidente tanto ansiava?

Fica aqui a última dúvida que me apoquenta: se Carlos Pinto de Sá tivesse anunciado a sua candidatura a Montemor, por exemplo, há um ano, teria o actual executivo camarário, e principalmente Olímpio Galvão, feito um caminho diferente, mais cauteloso, menos descontraído, perante o candidato comunista que acaba por representar, pelo menos teoricamente, uma ameaça séria aos socialistas?

Esta dúvida será, talvez, aquela que, de todas, terá uma resposta clara e certa. Basta esperarmos por Setembro ou Outubro.


João Luís Nabo

In "O Montemorense", Março de 2025

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

Incidentes dignos de nota

 

                                                         


          (Foto: Paulo Moreira)

                                                                                                                                                              

O Martini das Onze e Meia

 

Começo por apresentar, desde já, a minha declaração de interesses e informo os meus oito leitores de que, lá para o mês de Junho, o mês em que o céu estará mais azul e o tempo menos frio, irei convidar toda a gente, os meus oito leitores e todos os restantes amigos, a dar um breve salto à Biblioteca Municipal Almeida Faria para ficarem a saber da próxima publicação deste rapaz que, ansioso por estar sem nada para fazer, não consegue estar sem fazer coisas que o encantem. E a escrita é uma delas. As crónicas publicadas no jornal “O Montemorense”, de 2019 a 2024, foram relidas e devidamente seleccionadas para saírem num belo livrinho abençoado pelas Edições Colibri e com a colaboração da equipa da casa. Vai chamar-se O Martini das Onze e Meia, terá à volta de 250 páginas e é uma viagem pela política e sociedade local, nacional e mundial, num estilo de quem parece ter a solução para mudar o mundo mas que, afinal, sente que muito mais é necessário do que simples palavras, ainda que cruas e, por vezes, acintosas. Os agradecimentos aos que estão no projecto serão respeitosa e devidamente feitos no momento certo.

E parecia mal se ficasse por aqui sem sublinhar a terapia que o acto da escrita representa para quem anda sempre com pensamentos esquisitos e que sempre que lhe apetece fazer asneira… escreve metodicamente para expulsar os demónios e deixar entrar os anjos e outros fantasmas do bem.

Stephen King (sim, eu também cito grandes autores) referiu no seu longo ensaio On Writing que quando escrevia contos ou romances, escrevia sobre ele próprio e que a escrita evitava que pegasse numa caçadeira e desse azo ao seu desejo de eliminar os indesejáveis (1) (tradução livre).

 

Máti a  insubmissa

 

Máti é o nome da heroína do livro mais recente de Carlos Rafael Picamilho, montemorense, designer, autor e ilustrador, que insistiu no prolongamento dos seus sonhos de infância e adolescência e criou vários personagens de banda desenhada onde deu asas à sua imaginação e aos seus desejos mais aventureiros. Máti parece ser a menina dos seus olhos, dada oficialmente a conhecer no dia 15 de Fevereiro, na Biblioteca Municipal Almeida Faria.

Para falar de uma personagem como Máti, basta falar connosco próprios quando tínhamos a sua idade, ir ao encontro dos nossos medos da altura (alguns que se estenderam até hoje) e, claro, recuperar a vontade permanente de saber o que se passa à nossa volta e, mensagem absolutamente fundamental e incontornável presente ao longo da obra, procurar a solução para os problemas mais complexos e ajudar, ajudar sempre, os que precisam de nós. Curiosidade, solidariedade, amizade, imaginação, sonho, uma pequena dose de loucura e o desejo de nunca crescer completamente são sentimentos e sensações que se passeiam no decorrer da narrativa, com desenhos dinâmicos que parecem mexer-se em cada quadradinho, que voam de vinheta em vinheta em defesa do Bem e a perseguir o Mal. Se, como disse Stephen King, o escritor escreve sobre ele próprio, mesmo que não o assuma, a Máti tem tudo o que tem o seu autor: audácia, inteligência, criatividade e amor pelos outros.

Obrigado, Carlos Rafael, pelo teu talento.  

 

 

A Loucura das presidenciais

 

Parece que não há mais nada neste país para tratar que não sejam as eleições presidenciais, que vão acontecer, imaginem, lá para Janeiro de 2026. Este país é um torrão de açúcar amarelo, sublime, angélico, pacífico, delicodoce, com ministros que mais parecem os reis magos, com ar perdido, atrás de uma estrela que não existe, cheios de prendas que não servem para nada. Entretanto, outras figurinhas andam já à bulha, os pequeninos, os grandes, os médios, a tentar convencer o povo de quem é o melhor para substituir o nosso fofo Zé das Selfies.

A forma como as televisões estão a tratar o tema é absolutamente estranha e interessante. Já sabemos que canal promove quem e até é fácil saber quem vai ser o dono das próximas selfies. Eu sei, mas não digo.

 

 

O Rio, ainda o Rio

 

Há pessoal amigo a publicar fotos do Rio Almansor nas redes sociais, depois de umas boas chuvadas, para vermos como ele corre, barulhento e feliz. São fotos enganadoras, claro, porque sabemos que, terminada a chuva, o curso de água volta a empobrecer, a perder-se nas atabuas de mil metros de altura e a ficar outra vez a cumprir os serviços mínimos que, como sabemos, não dão para nada. A fauna desapareceu e torna-se necessário proceder a um repovoamento das suas águas, de forma a que os ecossistemas voltem a encontrar o seu equilíbrio. Mas para lá pôr os peixes é preciso água e para haver água é preciso resolver a questão a montante. Não entendo de regadio, nem de nascentes, nem de rios, mas creio haver uma forma que manter o Almansor vivo, a correr e, sobretudo, sem os despejos de esgotos, denunciados e a merecerem recentemente uma reportagem na RTP1.

O Presidente da Câmara falou recentemente, já não sei em que circunstância, na possível construção de passadiços ao longo do Almansor. Farão sentido (embora seja discutível o contraste que vão exercer na paisagem) se houver Rio para ver. Por isso, há que mexer – mexer, mesmo – no leito do Rio, construir açudes, presas, espelhos de água, enfim, o que for necessário para que ele tenha água de forma permanente, já que é a água o elemento essencial para que haja Rio.

E para que haja vida.  

 

O Pan-americanismo de um puto lunático e endinheirado


Na entrega dos Prémios Goya de cinema, em Granada, há uns dias, o actor norte-americano Richard Gere afirmou: “Começa a dominar-nos um tipo de tribalismo idiota onde somos levados a pensar que estamos separados uns dos outros… Infelizmente,  elegemos líderes que não nos inspiram como queremos. Venho de um lugar muito sombrio na América, onde temos um fanfarrão e um bandido que é presidente dos Estados Unidos.” E está rodeado de “palhaços perigosos. São tempos sombrios para o meu país.”

Pensei escrever uma ou duas linhas sobre o indivíduo a que Gere se refere. Considerei desnecessário. Stephen King descreveu estes tempos em muitos dos seus romances, ainda antes de o Poder ser dominado por tais agentes do Mal.

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(1) Stephen King, On Writing, p. 70

João Luís Nabo

In "O Montemorense", Fevereiro de 2025

terça-feira, 14 de janeiro de 2025

A propósito de coisa nenhuma...

 


A propósito

Não entendo muitas publicações nas redes sociais, e até em alguma comunicação social local, daqui ou doutros lugares pequenos como o nosso, quando os autores dos textos se debruçam a fundo sobre questões nacionais que já foram abordadas noutros meios de âmbito nacional e que em nada adiantam nem atrasam com os seus sábios comentários e doutas opiniões.

            Quando, em tempos muito idos, o comum dos mortais tinha dificuldade de acesso às notícias sobre os acontecimentos do seu país ou do planeta onde habita, era absolutamente normal e útil – e muito útil – que, nos jornais locais, ou mesmo naquelas publicações de carácter regional, se focasse, com maior ou menor profundidade, os temas que preenchiam os ecrãs das televisões ou as páginas centrais dos grandes jornais nacionais e, até, europeus. Replicar, ainda que com algumas alterações, notícias sobre a guerra entre Israel e a Palestina, sobre a criminosa invasão da Ucrânia pela Rússia ou sobre os fogos que dizimaram a região de Los Angeles, e ainda sobre os óscares que se preparam para provocar mais uns risos e algumas lágrimas, não será de todo de grande valor ou importância. Tudo isso pode ser lido e escrito noutros órgãos à nossa disposição.

            Também o autor destas linhas faz, por vezes, reflexões baseadas nos acontecimentos ou nos protagonistas nacionais e mundiais, mas reconhecendo que teria mais valor o seu texto se descrevesse o que nos preocupa como montemorenses, de facto a vivermos numa aldeia global, que é este planeta, mas que teremos sempre mais a ganhar se mostrarmos aos nossos patrícios e aos nossos autarcas o que nos vai na mente.

            Veio este palavreado a propósito de muita coisa e de coisa nenhuma.

   

                                                           Autárquicas outra vez

            Ainda falta um tempo, mas temos de ir pensando no que iremos fazer em Setembro ou Outubro (ainda não se encontram agendadas) de 2025. O balanço deve ser feito com a máxima consciência e exactidão possíveis, a pensar em Montemor e no futuro. O mandato de quatro anos do presidente actual deve ou não ter o aval dos munícipes e merecer a confiança da maioria dos que vivem e trabalham no concelho?

            Os comunistas tiveram a confiança da maioria dos montemorenses para poderem, ao longo de 40 anos, planificar, orçamentar e executar tudo o que se referia a obras públicas, questões sociais, de cultura e desporto. A equipa bipartidária do socialista Olímpio Galvão acabou, temos de admiti-lo, por levar a bom porto muito do que estava decidido e planeado pela anterior equipa de Hortência Menino. Não houve tempo útil, e aceitamos essa condição, para trazer novidades de monta à forma de gerir o concelho. Houve, contudo, outro tipo de abertura e fomos confrontados com uma forma mais descontraída, menos “partidarizada”, de fazer política local. A questão importante é perceber qual a eficácia desta nova maneira de fazer política, menos formal, mais próxima dos eleitores, com aberturas ideológicas a outras forças políticas, situação raramente vista no período pré-Olímpio. É, sem dúvida, algum do material de que vai ser feita a nossa reflexão.

Em relação aos partidos mais conotados com a direita do espectro político, estes estão ainda meio diluídos e as suas intervenções surgem num contexto misto de esquerda e direita e, por isso, talvez seja difícil manifestarem, para já, um verdadeiro plano, concreto e exequível, para a gestão do concelho. Resta-nos aguardar.

 Posto isto, termino. Debates acesos terão lugar em tempo próprio. Para já, analise você, caro leitor. Vá observando, pensando e… quando for a altura, decida.

Não posso nem devo manipular o que lhe vai na alma.

  

Outra vez arroz…

             Há uma forte ameaça vinda dos Estados Unidos da América que, quando o caro leitor estiver a ler este texto, já terá tomado posse para grande terror dos países democratas e habituados a uma utilização da política para o bem comum. A ameaça tem rosto e nome. Chama-se Donald e tem a cara de alguém em que ninguém poderá confiar. Outros ditadores subiram ao poder de forma mais discreta.

Com o seu amigo Elon, o tipo mais rico do mundo, Don armou uma parelha de palhaços ricos que jamais entenderão as agruras e as angústias por que passam os palhaços pobres. O que tenciona, à partida, levar a efeito, pode transtornar de forma irreversível as relações entre vários países do mundo e, mais grave que isso, contaminar com as suas ideologias fascistas, discriminatórias, racistas, xenófobas e misóginas, muitos estados e partidos políticos, contra cidadãos e os direitos já garantidos por assinaturas, convénios, tratados e resoluções.

Ventura foi convidado para a tomada de posse de Trump. Trump há-de vir a Portugal à tomada de posse de Ventura, quando ele for, daqui a 11 anos, presidente da república. Escrevam o que eu digo.

 

Iliteracia literária

 

As obras literárias obrigatórias na disciplina de Português no ensinos básico e secundário, a serem lidas e analisadas por alunos entre os 13 e os 17 anos, há muito que não são devidamente absorvidas pelas diferentes gerações por dois motivos fundamentais que são cada vez mais notórios e difíceis de combater:  os alunos não têm conhecimentos suficientes de História de Portugal para entenderem obras como Os Lusíadas, Mensagem, Livro do Desassossego, Memorial do Convento, O Ano da Morte de Ricardo Reis, Frei Luís de Sousa, Sermão de Santo António aos Peixes, Os Maias, Amor de Perdição, entre mais algumas; os alunos não têm conhecimentos suficientes de vocabulário, nem de conceitos filosóficos e psicológicos, para entenderem na íntegra e em profundidade a mensagem veiculada por tais obras. Os conhecimentos sobre Camões, Pessoa, Saramago, Garrett, Vieira, Eça, Camilo ficam quase sempre muito aquém do que os professores de Português e Literatura gostariam, apaixonados que são, há tantos anos, por estas temáticas.  

Solução: alterar, com urgência, o programa da disciplina de Português (e de outras disciplinas, já agora). Como e com que alternativas? Não faço ideia. Estou quase a reformar-me. Digam-me vocês.


João Luís Nabo

In "O Montemorense", Janeiro de 2025

segunda-feira, 9 de dezembro de 2024

O Coralista, esse Soldado Desconhecido... e outras notas

 





Nota prévia: o texto podia, com ligeiras alterações, ter como título “O Filarmónico, esse Soldado Desconhecido”.

Aos meus amigos filarmónicos da Banda da Sociedade Carlista, da Banda Simão da Veiga, de Lavre, da Banda da Casa do Povo de Cabrela, da Banda Filarmónica Municipal de Redondo e da Banda Musical de Freixo de Numão (Vila Nova de Foz Côa), também a minha homenagem.

                                                                                        

O Coralista, esse soldado desconhecido

             Um Coralista é um soldado desconhecido, um ilustre anónimo, um herói sem coroa de louros, que dá tudo o que tem sem nada pedir em troca, a não ser o sucesso do Coro do qual faz parte integrante.

            Construir uma obra de raiz, seja mais clássica, mais popular ou mais contemporânea, exige tempo, esforço, entrega e substância, essa massa interior que se transforma em arte. Para isso, precisa de um Coralista generoso, empenhado, altruísta, paciente. Um ser humano abnegado que ofereça a voz, o tempo, a disponibilidade, a boa vontade. Esse Coralista, que todos vêem mas ninguém conhece, coloca o Coro à frente de outros interesses, tem a coragem de deixar temporariamente a família, a casa, outros amigos, várias vezes por semana, para, imaginem só o desplante, ir para os ensaios e cantar em coro. Essas apresentações fazem-se, não poucas vezes, em palcos espalhados um pouco pela geografia do nosso mundo, em igrejas, templos que albergam por momentos o ritual dos sons e das melodias que constituem esta religião especial e única chamada Música e que tem milhões de fiéis em todo o planeta.

O Coralista vive momentos únicos, respira em uníssono com mais vinte ou trinta como ele, e liberta emoções          que só a prática do canto em grupo pode proporcionar. Depois de cada concerto, após minutos gloriosos de muito trabalho e total entrega, surgem os aplausos do público, dirigidos não ao Coralista Desconhecido mas ao colectivo, ao grupo. Então, o Coralista, discretamente, em silêncio, mede a plateia com o olhar e com o coração, agradece em segredo o entusiasmo dos aplausos, sabendo que nunca ninguém vai saber um dia o seu nome. Porque outro nome se eleva nesse momento e sempre mais alto que todos os nomes: o do Coro a que pertence.

Quando, nos tempos que correm, o ser humano se expõe e exibe voluntariamente nas redes sociais, com fotos, vídeos e textos centrados na sua imagem, nos seus êxitos, nas suas escolhas gastronómicas e turísticas, no seu nome e no restante da sua vida privada, o Coralista, pelo contrário, anula-se voluntariamente em cada concerto, pensando apenas no grupo, no resultado final e na melhor forma de fazer do seu coro o melhor Coro do Mundo.

Ao pensar sempre nos outros, esquecendo-se de si próprio mas oferecendo o melhor de si, um Coralista será sempre um Soldado Desconhecido, um Anónimo Feliz, a fazer do seu Coro o melhor Coral da Rua Direita.

  

A Guerra ali à esquina


O Mundo vive e respira longos momentos de incerteza e angústia, dependente que está das intenções, dos interesses dos senhores da guerra e da sua inabalável fome de vingança pelos graves solavancos da História – o colapso da União Soviética, a implosão dos regimes comunistas, a ingerência dos Estados Unidos nos Governos e nos Estados do Médio Oriente e da América Latina, ocupações, invasões, questões territoriais, raciais e religiosas que levaram a dramáticas crises humanitárias ininterruptas.

Meia dúzia de cérebros doentes decidem quem vai morrer e quem vai viver. Um cidadão comum é, quase sempre, julgado e condenado pelos crimes cometidos. Os senhores da guerra já o deveriam ter sido. A ONU, a EU e outras entidades e organismos não têm, claramente, o poder e a força, a capacidade diplomática de levar a efeito a hercúlea tarefa de convencer as partes beligerantes a assinarem protocolos e acordos que tornem o Mundo mais seguro.

Não sabemos até quando poderemos dormir tranquilamente nas nossas camas, em nossas casas, nesta Vila Nova e em todas as vilas novas deste país.

 

Lá vamos nós outra vez… mas com classe!


Chegada esta altura, fatal como o destino, e lá vai o pessoal começar a gastar mais dinheiro em prendinhas de Natal. Detesto a expressão “prendinhas de Natal” ou “Vá lá, é apenas um apontamento simbólico. O que conta é a intenção.” Não gosto desta forma de ver as coisas. Cá em casa não passamos por essa vergonha, nem que os ambientes familiares e de amigos nos obriguem. Não. Nem pensar. Temos alguns pergaminhos a defender! Reparem os meus oito leitores se não gostariam de pertencer à minha família e aparecer, tal como nós, em tudo o que é revista!?

Os presentes de Natal (“prenda” é um regionalismo da periferia) já estão todos comprados: um carro novo, de alta cilindrada, para cada um dos três filhos, vinhos caros (200 €/garrafinha, no mínimo), para todos os amigos e familiares, vouchers no valor de 1.000 € para cada sobrinho(a), colecções completas de jogos para o(a)s sobrinho(a)s pequeninos(as), uma semana numa cidade europeia à escolha para o autor destas linhas e sua discreta esposa e, last but not least, a oferta de um osso de ouro (24 kilatezinhos) ao melhor Balú do planeta…

 …Vou parar a escrita. Estou a sentir um toque, ligeiro e fofo, no ombro direito, um abanãozinho, breve e tímido, no braço do mesmo lado, uma carícia, lenta e escorregadia, no farto cabelo grisalho: “Acorda, amor! Vai começar o telejornal!”

Era a Fofa, que se sentou ao meu lado depois de acrescentar mais um pauzinho na lareira, fazendo, de passagem, uma festa ao Balú adormecido. E acrescentou: “Comprei as prendinhas para os amigos e família. São só uns apontamentos simbólicos. O que conta é a intenção…”

Abri o olho esquerdo, depois o direito, e voltei a fechá-los com força, determinado a continuar a minha soneca até à chegada dos Reis Magos. O Balú, esse nem deu pelo terror que habitava a minha alma[1].


João Luís Nabo

In "O Montemorense" Dezembro de 2024

[1] “The terror is not of Germany, but of the soul” (Edgar Allan Poe, in Tales of the Grotesque and Arabesque)

Distraídos crónicos...


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