Em tempos, escrevi um conto em homenagem a esse comunista de gema, baseado num dos muitos episódios da sua vida de luta abnegada, solidária e humanista. Depois de premiada e lida em cerimónia pública com a presença de João do Machado, o que muito me honrou, a narrativa foi incluída, com sua autorização (e gosto, devo acrescentar), no meu último livro – Outros Contos de Vila Nova (Ed. Tágide, Lisboa, 2010), com o nome “O Sinal”.
Quanto a este meu velho amigo havia mil volumes para escrever sobre a sua luta, o seu sofrimento e a alegria que sentiu naquela manhã de Abril de 1974. Quem quiser conhecer um pouco desse resistente pode ler a história que vem a seguir, onde o encontrará com o nome de Tomé e perceberá como, quase sempre, se torna fascinante (e por vezes doloroso) misturar a ficção com a realidade.
(A publicação deste apontamento imediatamente após o que leram antes é de uma coincidência jamais prevista pelo autor.)
O sinal
O que Zulmira não adivinhava, não podia adivinhar, era que nesse mesmo dia, já perto do lusco-fusco, iria entregar à polícia política o seu Tomé, o homem com quem tinha casado havia mais de um ano, a quem, diante do padre e de Deus, havia jurado nunca trair, fossem quais fossem as circunstâncias da vida. O seu Tomé, pai da Margarida, aquele pedaço de céu prestes a ficar sem os seus carinhos. Se Zulmira soubesse o que estava para acontecer, teria preferido que aquele dia nunca tivesse amanhecido.
Tomé, o do Monte da Luzia, levantou-se de um salto assim que o primeiro raio de sol, morno, tímido, lhe desenhou uma estrada de luz na face há dias por barbear. Não quis acordar a mulher que dormia ao seu lado, nem a filha, deitada num caixote a fazer de berço, aos pés da cama. Abriu a janela do quarto, pôs a cabeça de fora e respirou fundo. No Verão, a manhã é sempre uma festa de luz, à conquista de espaço, por cima daqueles montes nos arredores de Vila Nova. Recolheu-se, atravessou o quarto pé ante pé, abraçado à roupa e com as botas cardadas presas uma à outra pelos atacadores. Ia vestir-se lá fora. Não as queria acordar. Não dissera à mulher para onde ia. Nem tinha precisado. “Amanhã vou sair cedo. Há uma reunião.” Zulmira não lhe respondera. Para quê? Havia uns cinco ou seis domingos que era sempre aquilo. Não se contava um, em que ele não tivesse saído mais cedo do Monte em direcção à Vila, ou à casa do João Baptista, ou à do Zé Adelino, ou à de outro companheiro qualquer que não tivesse receio de disponibilizar uma mesa e três cadeiras. Uma vez, mostrara-se queixosa, uma lagrimita a assomar-se, envergonhada, que ela não gostava de chorar, fosse em frente de quem fosse. Foi logo a seguir ao nascimento da Margarida. Já nesse tempo Tomé andava metido na política.
“Nunca passas os domingos em casa. Andas sempre em reuniões, e eu sempre preocupada sem saber se voltas. Pensa em mim. Na tua filha, tão pequenina, a precisar de ti.” “Por causa dela é que eu ando nisto.” Era sempre assim o remate dele. Mas depois continuava: “Zulmira. Isto tem de dar o berro! Isto tem de acabar um dia...” “E pensas que tudo muda, só porque meia-dúzia de loucos como vocês quer mais justiça?” “Não são meia-dúzia, Zulmira. Isto já é o país inteiro. Ninguém está contente com a situação... As prisões estão cada vez mais cheias... As perseguições aumentam todos os dias. Anteontem foram buscar a Ti Maria da Venda lá ao monte dela. Revistaram a casa e deram com dois ou três jornais dos que a gente sabe e… pronto... Os filhos a chorarem... O marido a dizer que ele é que os tinha trazido. Depois, há amigos meus a serem torturados todos os dias...” “É esse o meu maior medo, Tomé... Que tu, um dia, não regresses a casa... E que sofras por uma causa perdida… Eu casei contigo para ser feliz. Para estar contigo e com a nossa filha. Quero dar-lhe uma vida melhor do que a que os meus pais, que Deus tem, me deram... Coitados... Eu não me importo de trabalhar no campo... De tratar dos porcos... De ir fazer as ceifas noutras herdades onde paguem melhor... Não me fazem impressão os ‘ratinhos’ que vêm de tão longe ganhar o pão. Eu quero é ter paz. E queria que tu nunca fosses preso... A nossa vida ia ficar despedaçada…”
Foi aí que a lágrima se soltara, leve, e se lançara lenta pela face, numa cascata de dor, em direcção ao lábio bem desenhado, fino, não de cruel mas de finura mesmo, que Zulmira até podia ter nascido do outro lado: a tez era clara, os cabelos negros. Negros e longos, caídos até ao meio das costas. Vinte e cinco anos. O corpo magro, esguio, como se cuidasse dele de propósito para agradar a Tomé. Mas não. Ela era assim mesmo: bonita, mulher feita aos quinze, cobiçada pelos rapazes que se juntavam depois do trabalho na venda do Ti Zé da Bica, à saída da Vila, mas que só conheceu homem depois de ter casado com o Tomé da Luzia, Monte afamado pelo morador e pelo pai, o Chico da Luzia, homem chamado a contas ainda Tomé era gaiato pequeno.
“Não gosto de te ver chorar. Diz o que quiseres, mas a chorar é que não.” “Eu sei que as minhas lágrimas não te aquecem nem arrefecem, mas ando sempre com o credo na boca. Sabes que já andam dois deles a rondar o nosso Monte. Todos os domingos, chegam, estão, e partem antes do fim da tarde… São sempre os mesmos. No dia em que tu faltaste ao trabalho, a uma segunda-feira, para ires ao médico, eles ali estavam, desconfiados… É um suplício. Nesse dia, se não fosse o sinal, tinham-te levado… A minha angústia nasce todos os dias, porque eu sei o que vai na tua cabeça de herói que quer mudar o mundo sem pensar nas consequências para si e para os seus... E tu, sozinho, não consegues nada...” “Não posso sozinho, mas posso contigo. Com a tua ajuda… Queres uma vida melhor para a nossa filha? Então, confia em mim. Protege-a quando eu não estiver. Protege-a. Com a tua própria vida. Com a minha própria vida. Ela é o nosso tesouro mais precioso… Está atenta. À mínima desconfiança, já sabes: descontraidamente sais de casa e fazes o sinal.” Zulmira lançou-lhe um olhar nervoso que disfarçou com um sorriso triste mas que o deixou mais sossegado.
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Saiu do Monte já o sol tinha aberto os olhos, dando ao olival um aspecto esguio, de sombras alongadas a baterem-lhe nas botas. Havia uma ligeira aragem mas já se sentia que o dia ia ser quente. Como todos os dias de Verão no Alentejo. Domingo é campo parado. As searas ali à volta estavam quase prontas para o corte. Mais um mês de espera... Para trás, a casa, o poço, a pocilga, feita por ele, o alpendre, o tanque onde Zulmira lavava à estorrina e um terreiro grande, largo, limpo de ervas e de pedras, onde a roupa era estendida, de frente para a Vila, virada ao vento, que lhe desalinhava os cabelos de azeviche, sempre que ali ficava à espera de Tomé.
“Quanto menos a família souber da nossa vida, melhor”, dissera-lhe uma tarde João Baptista, com ar grave, quase ameaçador. “Não podemos pôr em risco as nossas mulheres porque, se não regressarmos a casa, são elas que ficarão a tomar conta dos nossos filhos...” “Mas a minha mulher apoia a nossa causa. Não a posso deixar de fora… Ela sabe o que eu ando a fazer. Só desconhece é os sítios onde nos juntamos. Uma semana em casa de um... Outra em casa de outro. Eu sei que somos vigiados. Na vila, há gente que manda um telegrama para Lisboa todas as segundas-feiras a contar quem estava na reunião... Mas a mim nunca me apanham. Eu tenho um sinal com a minha Zulmira.” “Um sinal?”. “Temos um sinal. Um sinal, é só isso. Um dia conto-te, João. Um dia!”
Dali a Vila Nova era um saltinho. Pouco mais de meia légua. A reunião começava às oito em ponto. E hoje iam tomar-se decisões importantes.
Se Tomé da Luzia adivinhasse quem estava à espreita atrás da oliveira velha, a uns duzentos metros do monte, não teria mantido a sua postura decidida, nem se teria dirigido para a Vila, onde era esperado na casa do Zé Adelino. Se tivesse o poder de ver através das coisas, teria vislumbrado, de forma clara, não um homem mas dois. Daqueles que basta olhar para eles para se ficar a saber, lidos à primeira vista, quem são, o que querem e quem os mandou. Quando Zulmira os viu, já Tomé ia longe… Para não correr riscos, era melhor pôr o sinal de alerta a funcionar…
Passou o tempo, mas não passou o medo. Zulmira andou quase sempre com a filha ao colo, nervosa, com vontade de ir ter com Tomé, ou de mandar um recado por alguém… mas por quem? Sabia, contudo, o que lhe dava um certo alívio, que o marido não se aproximava do Monte enquanto lá estivesse o sinal… Mal almoçou, tal era a agonia.
Entraram em casa como uma sombra, os dois homens. Margarida dormia descansada e ausente, no caixote, no quarto, aos pés da cama. Pouco passava das seis da tarde e Zulmira, que estava na cozinha, não os viu. Subitamente, um choro assustado encheu-lhe a alma e quando se dirigiu, a correr, para o quarto, já um deles vinha a sair com Margarida ao colo. Zulmira soltou um grito e atirou-se ao desconhecido… Este, bastante mais alto que ela, ergueu o bebé acima da cabeça, enquanto a mãe era brutalmente agarrada pelo braço esquerdo do segundo homem enquanto que, com o direito, fechava as portadas da janela da cozinha.
“Acalma-te, mulher”, disse o primeiro. “Fica sossegada que tudo se resolve… Não grites, não estrebuches que ainda assustas a criança…” “Quero a minha filha”, gritou ela, não acreditando no que lhe estava a acontecer… “E vais tê-la. Mas, para isso, tens de nos fazer um pequeno favor…” E o primeiro, o que segurava Margarida, fez um gesto ao segundo para que afrouxasse o abraço e a deixasse mais folgada. “O que querem, então?”, perguntou num misto de medo e de fúria. “Vais começar por nos dizer onde está o teu marido”, replicou o primeiro que, pelos ares, parecia o chefe do outro. “O meu marido foi ver a mãe ao monte. Anda adoentada e a idade já é muita e…” Não acabou a frase. A mão do segundo homem voou, furiosa, em direcção à face direita de Zulmira que não soltou um grito mas que sentiu a raiva a descer com as lágrimas. “Não sejas mentirosa. O teu marido está em Vila Baixa, numa reunião. Nós sabemos de tudo. Não tentes mentir. Não vale a pena. E podes piorar as coisas.” Sorriu para o chefe que batia suavemente com a mão direita nas costas de Margarida… “Podes piorar muito as coisas.” E prolongou o “muito”, com um esgar animalesco. “Se sabem tudo, por que perguntam? Vão buscá-lo! …”, gritou. Ela sabia que não iam. E se fossem não o encontrariam, porque era regra sagrada acabar as reuniões sempre antes das seis da tarde, mesmo que as discussões estivessem a meio… “Não é preciso ir buscá-lo. Vamos esperar aqui por ele”, respondeu o que segurava em Margarida que, apesar das vozes e dos gestos, tinha parado de chorar. “Dê-me a minha filha. Ela está assustada… Não tem o direito de fazer isso…” “Eu dou, eu dou… Mas a seu tempo. Ainda não nos fizeste o tal favor…” “Mas que favor?” “Quero que vás apanhar a roupa que está lá fora no estendal…”
Zulmira sentiu um estremeção no baixo-ventre e ficou com a cabeça às voltas. Encostou-se ao guarda-louça para não cair.
“Faz o que te mando e nada acontecerá à tua filha. Ficará contigo depois de tudo terminado”, insistiu.
Muda de medo, em luta profunda consigo, numa agonia interminável, Zulmira olhou para aquele homem e os lábios finos quase desapareceram, tal a força e a raiva que se queriam soltar. Este, percebendo que as ordens corriam o risco de não serem executadas, acrescentou num tom de voz mais duro:
“Não resistas, mulher! Vai apanhar a roupa e sem pressas…”
Secretamente, Zulmira ainda julgava dominar toda a situação. Se eles queriam que ela apanhasse a roupa, muito bem, ela não tinha qualquer problema em fazê-lo.
Pegou num alguidar vazio e encaminhou-se para a porta. Lá fora, meia-dúzia de peças tinha secado ao sol e ao vento. Zulmira esticou-se e, tirando as molas uma por uma, foi desnudando o arame, deixando lá à ponta, ainda a esvoaçar, uma camisa de cor vermelha. Entrou em casa e viu o segundo homem a espreitar o terreiro pela janela da cozinha. Olhou para o chefe e fez um gesto de desagrado. O primeiro, sem nunca largar Margarida, revolveu o alguidar e zuniu-lhe com uma voz lenta mas furiosa:
“Voltas lá fora a apanhas também a camisa!”
Tomé tinha chegado antes das seis. Como viu o sinal, ficou-se por ali, à distância, a espreitar, atento a qualquer ruído ou movimento. Já estava a ficar impaciente quando, ao longe, viu a mulher, em bico de pés, a apanhar aquela bendita camisa vermelha. “Já não há perigo. Posso ir…”, pensou. Na cabeça dela ecoava uma voz que lhe fazia correr a água cara abaixo: “Protege-a quando eu não estiver. Protege-a. Com a tua própria vida. Com a minha própria vida. Ela é o nosso tesouro mais precioso…”
Num andar calmo, Tomé dirigiu-se para casa onde, julgava ele, o esperavam, como habitualmente, Margarida, Zulmira, a ceia e umas boas horas de sono.
João Luís Nabo
(in Outros Contos de Vila Nova, Ed. Tágide, Lisboa, 2010)