Ideias velhas, recicladas a bem do ambiente intelectual português. (E algumas intimidades partilháveis)
segunda-feira, 29 de setembro de 2014
quinta-feira, 11 de setembro de 2014
Para a minha Mãe (in memoriam)
Do tempo e das vozes
Fervilhar.
É
o
verbo
que
se
passeia
pela
memória
dos
dias
quando
me
olho,
através
do
tempo,
a
atravessar
o
jardim
com
a
minha
mão
esquerda,
pequenina,
embrulhada
na
da
minha
mãe.
Cinco
anos
de
quotidianos
felizes
a
ansiar
pelos
sábados
de
manhã
para
agarrar
no
cesto
e
partir
à
descoberta
neste
templo
onde
as
estações
do
ano
comandam
as
modas
e
os
paladares
de
quem lá entra.
Fervilhar.
É
som
que
não
é
som.
É
um
sentimento
que
começa
ainda
o
dia
não
passa
de
duas,
talvez
três,
pinceladas
de
madrugada.
Primeiro,
vozes
soltas,
meio
sozinhas
ainda,
neste
espaço
vazio,
gemendo,
impando,
dando
ordens…
Depois,
mais
vibrantes,
frescas,
timbres
em
contraponto
dos
vendedores
que,
num
aumento
gradual,
ali
misturam
os
duros
dias
ao
sol, à
chuva,
ao
frio,
no
campo,
na
lota,
no
matadouro,
com as
dores
e
os
caprichos
das
donas
de
casa,
as
exigências
das
avós
que
vão
à
hortaliça
para a
sopa
dos
netos,
os
pedidos
das
criadas
que
não
querem
ouvir
ralhar
as patroas…
É
um
labirinto
de
cores,
um
caleidoscópio
de
caras.
De
novidades
iguais e diferentes.
De sorrisos,
de esgares,
da vida de todos os dias.
Onde me
perdia
vezes
sem
conta,
porque
um
quadrado
confunde
toda
a
gente,
mesmo
que
se
visite
amiúde
e
se
conheça
cada
erva
que
nasce
por
entre
as
lajes
de
granito
pisado
mil
vezes.
Estranho
este
labirinto,
que
não
tem
nem
corredores,
nem
passagens
secretas,
espaço
aberto
onde
todos
sabem
de
todos,
porque
todos
ouvem
todos.
Mas
onde
me
perdia
constantemente…
Acabando por sair sempre pela porta
por onde não entrara…
Talvez
o
lago,
ao
centro
―
uma
taça
de
mármore,
com
uma
coluna
ao
meio
a
equilibrar
uma
bola
fantástica
a
apontar
para
o
azul,
quando
o há
―,
fosse
responsável
por
tal
perda
de
referência.
A
perseguição
aos
peixes
vermelhos,
que
se
bandeavam
nas
águas
claras
e
frias,
era
sempre
o
primeiro
e
único
exercício
físico
possível
naquele
lugar.
Depois
de
umas
quantas
voltas,
ora
para
um
lado,
ora
para
o
outro,
para
não
entontecer,
eis
que acabava
perdido,
sem saber onde tinha pousado o cesto,
sem saber da minha
mãe,
sempre
atenta
no
olhar
e
nas
palavras,
entretida
a
falar
com
a D.
Carlota
do
Julinho
dos
presépios,
dos
comboios
eléctricos
e
dos
balões
coloridos,
mal pairavam
os primeiros acordes do Natal.
E,
quando,
a
troco
de
um
tostão,
os
vendedores
me
enchiam
o
pequeno
cesto
com
duas
ou
três
cenouras,
três
ou
quatro
vagens
de
feijão-verde,
um
molho
de
salsa
e
outro
de
hortelã,
que
deixavam
um
rasto
de
sabores
adivinhados,
eu
sentia-me
o
petiz
mais
importante
do
planeta,
talvez
o mais
feliz do universo.
Agarro
com
força
estas
memórias,
como
se
fossem
a
mão
da
minha
mãe,
porque
me
sinto
protegido,
aconchegado,
fascinado
com
o
tal
barulho
das
vozes
que
continuam
a
misturar-se
em
contracantos,
salmodias
e
pregões.
Sem
nesse
tempo
perceber
porquê,
sentia
que
aquelas
melodias
iam
fazer
parte
da
minha
vida
e
que
se
prolongariam
muito
mais
do
que
durante
aquela
breve
meia
hora
matinal.
Só
depois
vim
a
entender
o
poder
daquelas
vozes,
mais
puras,
mais
belas,
mais
sinceras
e
convincentes
do
que
muitas
que
mais
tarde,
por
gosto
ou
missão,
viria
a
escutar
nas
mais
divulgadas
oratórias,
nas
mais
sublimes
árias,
em
tantas
óperas,
densas
e
dramáticas,
e no
esplendor das cantatas de um tal senhor Bach.
A
minha
mãe continua
fiel
às
orações da manhã:
― Quanto é este
molho de espinafres?
― E
o
carapau
do
alto?
–
pergunta
ainda,
de
banca
em
banca,
porque
a
tradição
vive
naqueles
olhos
e
naquela
vontade
sábia
de
continuar
simples,
a
gostar
das
coisas
simples.
Sei
que
ainda
me
dá
a
mão,
como
se
eu,
homem
feito,
diminuísse
de
tamanho
todos
os
dias,
pegasse
no
cesto
que
ela
me
dera
e,
de
moeda
em
punho,
fosse
eu
o
responsável
pelas
ervas
de
aroma
que ainda hoje lhe enchem
a casa de cheiros
e de sonhos…
Nabo, João
Luís, Outros
Contos de Vila Nova.
Editorial Tágide, Lisboa, 2010
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