sexta-feira, 16 de outubro de 2020

Ditadura Profiláctica





As coisas ficaram agora mais sérias. Muito mais sérias. Porque quando o Chefe do Governo,
alegando boas intenções, sai de uma reunião do Conselho de Ministros com propostas de interromper a democracia em Portugal, então isto não está mesmo nada para brincadeiras. Quando Costa afirmou, com um sorriso maroto, que “não gostaria de ser autoritário”, fez-me lembrar Manuela Ferreira Leite, então triste líder do PSD, quando, em Novembro de 2008, afirmou que, para se fazerem reformas em Portugal, o melhor seria suspender primeiro a democracia, fazer as reformas e, depois, reactivá-la. Os socialistas de então gritaram “Aqui d’el Rei!” e iam crucificando a pobre senhora que só estava a querer ajudar o país, já a entrar, nessa altura, numa das suas maiores crises económicas e sociais de sempre depois do 25/4 (ninguém sabia que ainda viria o Covid).

Quando ouvi o Primeiro Ministro, em directo e sem rede, debitar as oito “reformas” urgentes a tomar para travar a pandemia, comecei, confiadamente, a aplaudir. O aplauso ficou, porém, em suspenso a partir daquele fatídico momento em que o ouço falar da “obrigatoriedade” de descarregar no telemóvel a tal aplicação Stayaway Covid e, isto é que me aborreceu, da possibilidade de haver fiscalização por parte das forças da autoridade em relação a esse mesmo download. (Mas esta ideia peregrina ainda não foi a piorzinha de todas. Já lá vamos.) Se querem que lhes diga, eu não estou a imaginar que autoridade tem força suficiente para me obrigar a ter um telemóvel compatível com a aplicação, para me obrigar a fazer o download da coisa, para me obrigar a ter o bluetooth ligado, para me obrigar a introduzir o código do meu eventual teste positivo à Covid 19.

Como é que vou reagir? Vou recusar-me claro. E, depois, fazem-me o quê? Prendem-me? Levam-me ao juiz? Passam-me uma multa? E eu? Pago a multa? E a minha tia Justina que tem 96 anos e tem um velho Nokia de 1989? Compra um telefone modernaço com que dinheiro? Com o dinheiro da reforma que lhe paga o Costa? Não, senhor Primeiro Ministro. O senhor, quando falou nestas coisas todas, não estava bem a pensar nas palavras que lhe traíram o pensamento. Ora passe lá as imagens para trás e diga-me o que vê: um Primeiro Ministro em pânico, que aliviou as medidas de restrição quando não devia, e que, prestes a perder o controlo de toda a situação (viu a triste entrevista de Marta Temido no dia seguinte?) ameaça suspender a democracia para que todos sejam obrigados a cumprir o que o Governo bem entende. Sei que é para travar a pandemia. Sei que é para não pôr Portugal em confinamento e assim arruinarmos o pouco que já temos. Sei disso tudo, porque as suas preocupações também são as minhas.

Contudo, se a apreensão é assim tanta, por que não impediu atempadamente os encontros de carácter político e religioso? Pensou que o cancelamento de concertos (milhares) e de eventos desportivos e sociais (outros milhares) teria sido suficiente para travar a pandemia? Por que abriu as praias? Por que mantém as escolas abertas, independentemente do número de infectados? Por que decidiu agora ser ditador e ainda por cima um mau ditador? Se fosse apenas a questão da aplicação Stayaway Covid, eu ainda tinha uma margem para o poder desculpar: é o stress, a angústia, a preocupação que não lhe permitiram que as ideias corressem de forma fluente.


Mas houve um “pequeno” pormenor (e vamos retomar aquela ideia de há pouco) que me inquietou ainda mais: li uma frase em rodapé, enquanto o senhor discursava sobre estas tristezas, que dizia (e puxei para trás para verificar se tinha lido bem ou se eram as progressivas destes velhos óculos que me estavam a trair) que as forças de segurança tinham poder e autorização para entrarem nas nossas casas sem mandado judicial, de modo a poderem fiscalizar quem estava e quem não estava em casa, quem tinha Covid e quem não tinha, se estava tudo devidamente postado na aplicação, se as normas de higiene estavam a ser cumpridas… Na nossa casa? Sem a nossa permissão mas com a autorização do Estado? Oh, senhor Primeiro Ministro, mais valia ter ido desenterrar os Pides mais sanguinários, mais abstrusos, mais criminosos, mais requintados, mais masoquistas e sedentos de sangue, para fazerem essa tarefa. Aí, sim, o senhor e os seus ministros, de camarote, iriam assistir ao maior retrocesso da democracia e ao triste regresso aos repressivos tempos de Oliveira Salazar e do seu delfim Marcello Caetano, que tantas centenas de homens e mulheres puseram na prisão e assassinaram por não cumprirem as regras de um governo fascista e sem futuro.

Sem futuro? Isso julgava eu há poucos dias. Sem futuro? Pois, olhe, parece que não! E já agora, para a coisa ficar completa, o Ministério do Interior, perdão, da Administração Interna, deveria, em conjunto com o Ministério das Finanças, instituir um subsídio (dantes chama-se gratificação, porque era por baixo da mesa) para pagar a todos os denunciantes (dantes chamavam-se bufos) que apontem o dedo ao próximo, para os lambe botas, para os bajuladores, para os nojentos que queiram ganhar alguns trocos e uma ou outra regalia junto do Poder, a denunciar o vizinho ou o amigo que não tem aplicação ou que testou positivo mas não avisou a Dra. Gracinha.

Que a Oposição se una e não deixe que o Parlamento aprove estas medidas salazarentas, uma grave ofensa à nossa democracia, à nossa liberdade e à nossa vida. Resolva o problema da pandemia mas de outro modo. Com métodos e estratégias concertadas. Com gente suficiente nos hospitais. Com gente suficiente nas escolas. Com menos dinheiro para a ladroagem dos bancos e de outras entidades que têm levado o país à ruína. Que Marcelo Rebelo de Sousa se deixe de afectos e de abracinhos (agora virtuais para grande dor das suas fãs) e espete de vez um murro na mesa para que o senhor, senhor Primeiro Ministro, caia em si e comece a governar este país como de facto deve ser governado: com firmeza mas sem ditaduras profilácticas ou de outra espécie qualquer.

João Luís Nabo

In O Montemorense, Outubro de 2020

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