Não me agrada escrever textos sobre amigos que
partiram. Penso sempre que os deveria ter escrito (ou dito) com eles à minha
frente, olhos nos olhos, a dizer-lhes o bem que penso deles, como os admiro e
amo. Com o Professor Carlos Cebola deveria ter sido assim. Só que há o embaraço
da escolha das palavras, o tempo que nunca chega para estarmos juntos, o momento
que nos foge, sempre in extremis.
Partiu Carlos Cebola. Partiu o Homem. Ficou a obra do
Poeta, do Ensaísta, do Dramaturgo, do Contista, do Melómano. As nossas
primeiras palavras foram trocadas por volta de 1992, quando Carlos Cebola, a
convite de Manuel Filipe Viera, hoje um dos grandes conhecedores de toda a sua
obra, começa a colaborar no jornal “Folha de Montemor” com um conjunto de
poemas – “Romagem a Montemor” –, primeiro passo de muitos que daria, depois, ao
lado do jornal e, porque seria inevitável, ao lado do grupo de cantores que começou
a admirar - o Coral de São Domingos.
No Natal passado, já o professor se encontrava
fragilizado, Filipe Fernandes, Vítor Guita e Bernardino Samina, na minha
opinião, declamadores maiores da obra poética de Carlos Cebola, disseram, na
Igreja da Misericórdia, em jeito de homenagem, dois dos seus poemas de Natal,
inéditos, escritos para os Cantares ao Menino em anos anteriores. Porque em
2019 já não tivemos o prazer inenarrável de ter nas nossas mãos mais um
original que iria fazer parte da colecção de poemas, escritos especificamente
para o Coral.
Vítor Guita, um dos nossos amigos comuns, costuma
dizer amiúde que a melhor forma de homenagear um autor é ler-lhe a obra. Lembrei-me
destas suas palavras tão certas, que ele insiste em repetir sempre que pode, e
fui ao meu arquivo para trazer de lá esta pequena crítica à última peça de
teatro escrita pelo professor para o Theatron e que nos revelou, de facto, o
verdadeiro espírito de Carlos Cebola, enquanto contador de estórias e criador
de sonhos: todos os seus textos partem da natureza humana e a ela regressam,
após sérias reflexões sobre a vida, a morte e o prazer e a dor que se retiram da
existência.
Fiquem, então, com este artigo, escrito a 30 de Maio
de 2009, já em casa, após uma monumental bebedeira de grande teatro:
“Se Bertolt Brecht tivesse passado o serão de ontem no
Cine-teatro Curvo Semedo, sentir-se-ia vítima da sua própria receita e teria
dito: “Este Carlos Cebola é um jovem criador que sabe do ofício.” Se
Roland Barthes tivesse igualmente dado uma volta por lá, era capaz de ter
concordado com esse mestre do teatro moderno alemão, falecido em 1956. Se
outros autores e teóricos da literatura e do drama pudessem ter visto e ouvido
o mais recente texto para teatro de Carlos Cebola – In(e)vasões –,
iriam querer tirar dividendos das múltiplas influências que afirmariam ter tido
na escrita do autor.
Se o texto literário, tal como refere Barthes, é um
entretecer de inúmeros textos, palimpsestos impossíveis de distinguir, produto
de uma sobreposição de culturas e de conhecimentos, o autor da peça ultrapassou
essas teorias e colocou actores e texto a um nível dramatúrgico que,
aparentemente de difícil execução, resultou numa perfeita lição de teatro. E
nada mais modernista do que pôr o texto a falar dele próprio, os actores a
comunicarem como seres humanos e não como seres de papel decalcados num
cenário, com a encenação a ajudar, dando esta ênfase a um equilibrado misturar
de tempos, de épocas e de ritmos. Assistiu-se ao teatro a prestar uma homenagem
a si próprio, piscando o olho direito ao público, que se entregou ao jogo desde
o primeiro momento, e o esquerdo a Brecht (desculpem a insistência), um dos
primeiros a escrever e a encenar um tipo de representação teatral que, de
quando em vez, tornasse o espectador consciente de que o que via não era mais
do que uma representação.
Mas a peça, logo definida de início com um
“exercício”, vai muito longe, muito para além desse humilde desiderato. O
carácter metaliterário e provocador de In(e)vasões torna-se
visível de imediato quando, perversamente, as personagens se tratam pelo nome
próprio dos actores, situação improvável num texto clássico. Sabemos que o
transtornado Hamlet nunca se chamou em palco Laurence Olivier ou Kenneth
Branagh, nem a calculista Lady Macbeth responderia pelo nome de Sarah
Bernhardt.
Que o Theatron tivesse sabido dar
vida às palavras de Carlos Cebola, já eu calculava que era possível. Que Vítor
Guita, a respirar o pó do palco uma vida inteira, seja um especialista nas
encenações daquele autor de Niza, naturalizado montemorense, também foi uma
constatação. Que Maria João Crespo manifeste perfeito
conhecimento das capacidades e limites dos seus colegas actores da Associação
Theatron, foi igualmente fácil de perceber. O que me deixou profundamente
fascinado foi Carlos Cebola, com mais de sete décadas de vida,
ter concebido um texto com uma estrutura que parece ter saído da mais moderna
escola europeia (ou americana) de guionistas, mostrando de forma inteligente,
como aliás é hábito, o seu espírito rebelde e desafiador das normas para,
imaginem, enganar o público, fingindo dizer a verdade, fazendo lembrar, ao de
leve, um certo texto de Almeida Garrett.
Avisado pelos actores-personagens, por mais do que uma
vez, que não iria assistir à representação de uma peça de teatro, pois não viu
o público outra coisa, com os nomes das personagens a confundirem-se
maliciosamente com os dos actores, com Montemor ao fundo, em imagens, ouvindo
referência aos nomes dos sítios e das ruas no decorrer da “narrativa”. Um
“simples exercício” não pode ter a profundidade que o texto foi revelando aos
poucos, em crescendo e com um fantástico e propositadamente ofensivo
anti-climax. O recheio, fundo e espesso, do qual a caneta (agora o teclado) de
Carlos Cebola nunca abdicou nestas largas décadas de escrita, esteve lá, mais
uma vez mostrando o Homem como o centro da intriga, mas simultaneamente como o
último reduto da esperança, o lugar derradeiro onde pode haver solução para os
seus problemas, uns mais metafísicos, outros de pura condição humana.
E a lição que tirámos desta vez é a continuação do que
já sentimos em alguns dos seus textos dos anos 50/60 (Três Tardes de Três
Outonos, A Cigarra e a Formiga, A Acácia no Quintal ou Quinto
Mandamento) e noutros mais recentes (João Cidade e Tamar):
para o dramaturgo, nada é completamente branco, nada é completamente preto. Há
sempre que dar lugar ao cinzento. Ou a outra cor qualquer. É isto, para além
daquilo que já escrevi e do muito que fica por dizer, que faz de Carlos Cebola
um autor modernista, tendo-o já começado a ser, avant la lettre, há
mais de meio século.”
Quero acreditar que, mais tarde ou mais cedo, se fará a
divulgação da extensa e multifacetada obra de Carlos Cebola, para que ela possa
vir a ser estudada e interpretada nas escolas e universidades deste nosso país.
Até um dia, Professor Carlos.
Um abraço.
Apertado.
João Luís Nabo
In "O Montemorense", Fevereiro de 2020
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