domingo, 18 de maio de 2025

O despertar do Monstro

 



 

 Ficou adormecido durante mais de quatro décadas o maior dos monstros que tinha transformado o nosso país numa quinta, gerida durante 48 anos por um capataz de fala mansa e com mão de ferro. Eram as trevas o seu meio ambiente preferido, onde espalhava o seu hálito putrefacto e bafiento da ameaça, nos cantos mais recônditos de um Portugal cinzento e amedrontado, habitado por gente que tinha sempre por sobre a cabeça a perspectiva da prisão, da tortura, da perseguição, da censura, do exílio, das reuniões clandestinas, das separações, do degredo.

 O Monstro, vivo e violento durante quase meio século, não foi destruído naquela madrugada desse dia “inicial inteiro e limpo”. Foi, afinal, posto a dormir com um golpe na nuca, não de uma arma, mas de um cravo, que se julgou, poeticamente, ser a solução mais eficaz. Com o susto provocado pelos militares e pelo povo nas ruas, o Monstro não morreu, como se pensava, regressando antes às profundezas do abismo onde tinha sido gerado. E aí ficou, em hibernação, adormecido, aguardando pacientemente a chegada das condições ideais para, novamente, começar a espalhar a semente do Mal.

 A intolerância religiosa, racista e xenófoba, as invasões militares, os ataques, os insultos em plena campanha eleitoral, nos Estados Unidos, em Portugal e noutros países ditos civilizados, as infantilidades na nossa Assembleia da República, as chantagens políticas, as perseguições, as mortes, a impassividade dos ditos homens bons, o demérito da esquerda, são a face visível desse Monstro, cujos tentáculos abraçam  violentamente o planeta.

 Governos de extrema-direita começam a surgir na Europa que nem cogumelos, novos hitlers espreitam e sorriem aos descontentes, aos que se esqueceram do sofrimento dos pais e dos avós, perseguidos e muitos deles mortos pela força e pelos métodos invasivos dos maquinistas do Estado Novo, que não deixavam ninguém pôr o pé em ramo verde. Tornadas definitivas a democracia e a liberdade, estes seres ressabiados, defendidos e privilegiados pelo regime adormecido, esconderam-se nos novos partidos políticos, usados como máscaras durante anos, até hoje.  E por lá ficaram, gritando vivas à liberdade, contaminando discretamente ministérios e secretarias de estado, câmaras municipais e juntas de freguesia, deixando descendência, física e ideológica, que, anos mais tarde, começaria a manifestar-se de forma estranhamente descontraída e nunca até então vista.

Espaço livre, foi o que foi.

Começou a haver, primeiro, timidamente, depois a céu aberto, espaço livre, onde o Monstro se instalou comodamente, agradecendo aos defensores da democracia e da liberdade a sua ausência de estratégias para manter o país a navegar, louvando a sua falta de empenho em condenar os corruptos e os ladrões de colarinho branco, o seu receio de devolver a autoridade às forças de segurança, a sua inépcia em legislar de forma séria e adequada sobre questões sensíveis como a imigração, a eutanásia, a mudança de sexo, a carreira docente, a saúde, a segurança, a idade da reforma…  Cada falha de governação permitiu aos partidos de extrema-direita (e de extrema-esquerda) darem um passo em frente em direcção aos degraus que os poderão conduzir ao Poder.

  Este Monstro vai começar, mais dia menos dia, a ser tratado como uma necessidade a bem da Nação. Esse Monstro já começou a babar-se, sedento de sangue e de morte. Esse Monstro tem um nome: chama-se Fascismo e pode, em breve, começar a fazer as primeiras vítimas: tu e eu. Depois, como escreveu Brecht, será tarde demais. [1]

 



[1] Referência ao poema de Brecht (baseado num outro de Martin Niemöller) que começa assim: “Primeiro levaram os negros/Mas não me importei com isso/Eu não era negro (…).”

João Luís Nabo

In "O Martini das Onze e Meia", Edições Colibri, Maio de 2025

segunda-feira, 12 de maio de 2025

Carta a um Cão e outros escritos


 

Carta a um cão que não era um cão

 

Querido Balú:

Escrevi-te em tempos uma carta em nome da Família, ainda estávamos confinados por causa da pandemia e, sem me teres respondido, mostraste-nos todos os dias como um cão pode ser um extraordinário ser humano, atento, amoroso e que cuida dos que lhe são próximos.

Vigiavas todos os nossos passos, ficavas triste quando não nos apetecia sorrir, abrias os olhos e balançavas as orelhas quando era a alegria que dominava o momento. Esperavas sempre por nós quando chegávamos a casa vindos do trabalho, adivinhavas quando estava o carteiro quase a tocar à campainha e tornaste-te um amigo para a vida de todos os que nos visitavam.

Após a tua partida, as mensagens de apoio solidário de tantos amigos não tardaram em chegar. Poderá ser absurdo enviar e receber mensagens de condolências pela morte de um cão? Pode. Mas tu não eras um cão: eras a imagem da amizade, da fidelidade, da paixão, da transparência, da socialização e da democratização das relações. Transformaste-te numa estrela ainda em vida, passeavas pelas redes sociais, sabias posar para as fotografias e viveste com esta tua Família de humanos durante doze bons anos, recheados de grandes momentos que, por vezes, inspiraram algumas das minhas histórias…

Eras tu o fiel companheiro que ficava comigo, madrugada dentro, quando, no silêncio da casa, lançava para o papel muitos dos escritos que circulam por aí. No silêncio da noite, debruçado sobre o computador, ouvia apenas o teu ressonar, leve e compassado. De vez em quando, acordavas, erguias a cabeça e levantavas o olhar, como que a dizeres: “Estamos juntos, aqui, na vida e na ficção”.

No meu último livro de histórias, Segredos de Vila Nova, és tu, querido Balú, que encerras aquele ciclo de acontecimentos ficcionais e é assim que quero recordar-te – à minha espera. À espera de todos nós:

O autor destas histórias não ouviu o som das conversas e dos risos que se avolumavam na sala e também já não ouviu o latido do cão, do Balú, que, impaciente, se preparava, como de costume, para o receber ao fundo das escadas. 

 

Por esta altura, apesar de pouco tempo passado, já estarás com saudades de todos nós, dos mimos, dos petiscos, das conversas, dos ralhetes, das sestas clandestinas no sofá, das festinhas prolongadas em que tu te viciaste. As saudades são um reduto onde ficamos presos porque queremos, porque quem ama… ama assim com mais força.  

E era impossível não amar este Balú dos olhos doces.

 

Almansor Reconquistado

 

Há dois anos, a 30 de Maio, encerrou o Almansor que conhecíamos. O Café que recebeu o nome do Rio e que, depois, deu nome ao Largo, e que albergou, durante décadas, dezenas de histórias de bons e maus tempos, dependendo da perspectiva de quem os viveu. Dias de poder e dias de indiferença. Dias de equilíbrio e de reajustes, que a Revolução, a partir daquele dia “inicial e limpo”, veio repor.

Fui cliente do histórico Café desde a minha tenra adolescência. Ali começámos a beber chá de limão e meias de leite, de início, para depois passarmos, descontraída,  ousada e corajosamente, a erguer à frente do nariz uma imperial gelada ou um licor, cuja marca não me paga para fazer publicidade, enquanto se puxavam as primeiras baforadas de um cigarro, fumado ali, longe da vista dos pais. Foi ali que criei amizades, reforcei relações, me aborreci com amigos e com eles fiz as pazes, sempre à volta dos petiscos extraordinários que saiam daquela cozinha mágica. Fui lá, nesse dia 30 de Maio, despedir-me. Deixei ficar dois exemplares do meu romance Sertório, história em que o José Maria e o Evaristo têm uma breve participação, logo no segundo capítulo.

No início de Abril, regressei ao velho Almansor, agora renovado. Aos icónicos proprietários sucedeu a Joana Pires e a sua jovem equipa, que, numa cozinha aberta e “laboratorial”, começam já a deixar a sua marca em todos os nossos sentidos. Da cozinha continuam a nascer os vapores da comida caseira, que degustamos lentamente e a matar saudades. 

A ementa é simples, sem que o cliente/amigo perca muito tempo com indecisões. E depois sabemos que o que pedimos está imbuído de qualidade e, ao mesmo tempo, de um pouco de exotismo. Comemos um “Bacalhau à Avó Guida”, porque as avós deixam sempre aos netos coisas boas, com sabor a infância, como se prolongassem através da sua comida o mimo que lhes dão e que fica a pairar-nos no pensamento como uma carícia permanente. 

Encontrámos todos estes ingredientes naquele “Bacalhau à Avó Guida”, no serviço impecável de cozinha, na face resplandecente de felicidade da Joana e no prazer desta visita ao velho Almansor… reconquistado.

 

 

Vai um Martini?

 

Há uns tempos, estive a relar as crónicas publicadas neste espaço entre 2019 e 2024 e decidi que já era altura de escolher algumas para pôr num livro a que viria a chamar O Martini das Onze e Meia. Vai ser servido no dia 7 de Junho, na Biblioteca Municipal da nossa cidade.

Nunca é suficiente o agradecimento ao jornal "O Montemorense", à minha editora, à Câmara Municipal, à União de Freguesias Vila, Bispo e Silveiras e à equipa que esteve comigo desde o início deste projecto: Fernando Mão de Ferro, Helena Gil e Raquel Ferreira (Edições Colibri), Manuel Filipe Vieira, Vítor Guita, Pedro Coelho, Tânia Grafino, Pedro Ferreira, Ricardo Feijão, Luís Marinho Sampaio, outros amigos dedicados e, claro, o pessoal cá de casa.

Vai um Martini? Com ou sem limão?


João Luís Nabo

In "O Montemorense", Maio de 2025

Distraídos crónicos...


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