Ficou adormecido durante mais de quatro décadas o maior dos
monstros que tinha transformado o nosso país numa quinta, gerida durante 48
anos por um capataz de fala mansa e com mão de ferro. Eram as trevas o seu meio
ambiente preferido, onde espalhava o seu hálito putrefacto e bafiento da
ameaça, nos cantos mais recônditos de um Portugal cinzento e amedrontado,
habitado por gente que tinha sempre por sobre a cabeça a perspectiva da prisão,
da tortura, da perseguição, da censura, do exílio, das reuniões clandestinas,
das separações, do degredo.
O Monstro, vivo e
violento durante quase meio século, não foi destruído naquela madrugada desse
dia “inicial inteiro e limpo”. Foi, afinal, posto a dormir com um golpe na
nuca, não de uma arma, mas de um cravo, que se julgou, poeticamente, ser a
solução mais eficaz. Com o susto provocado pelos militares e pelo povo nas
ruas, o Monstro não morreu, como se pensava, regressando antes às profundezas
do abismo onde tinha sido gerado. E aí ficou, em hibernação, adormecido,
aguardando pacientemente a chegada das condições ideais para, novamente,
começar a espalhar a semente do Mal.
A intolerância
religiosa, racista e xenófoba, as invasões militares, os ataques, os insultos
em plena campanha eleitoral, nos Estados Unidos, em Portugal e noutros países
ditos civilizados, as infantilidades na nossa Assembleia da República, as
chantagens políticas, as perseguições, as mortes, a impassividade dos ditos
homens bons, o demérito da esquerda, são a face visível desse Monstro, cujos
tentáculos abraçam violentamente o
planeta.
Governos de
extrema-direita começam a surgir na Europa que nem cogumelos, novos hitlers
espreitam e sorriem aos descontentes, aos que se esqueceram do sofrimento dos
pais e dos avós, perseguidos e muitos deles mortos pela força e pelos métodos
invasivos dos maquinistas do Estado Novo, que não deixavam ninguém pôr o pé em
ramo verde. Tornadas definitivas a democracia e a liberdade, estes seres
ressabiados, defendidos e privilegiados pelo regime adormecido, esconderam-se
nos novos partidos políticos, usados como máscaras durante anos, até hoje. E por lá ficaram, gritando vivas à liberdade,
contaminando discretamente ministérios e secretarias de estado, câmaras
municipais e juntas de freguesia, deixando descendência, física e ideológica,
que, anos mais tarde, começaria a manifestar-se de forma estranhamente
descontraída e nunca até então vista.
Espaço livre, foi o que foi.
Começou a haver, primeiro, timidamente, depois a céu
aberto, espaço livre, onde o Monstro se instalou comodamente, agradecendo aos
defensores da democracia e da liberdade a sua ausência de estratégias para
manter o país a navegar, louvando a sua falta de empenho em condenar os
corruptos e os ladrões de colarinho branco, o seu receio de devolver a
autoridade às forças de segurança, a sua inépcia em legislar de forma séria e
adequada sobre questões sensíveis como a imigração, a eutanásia, a mudança de
sexo, a carreira docente, a saúde, a segurança, a idade da reforma… Cada falha de governação permitiu aos
partidos de extrema-direita (e de extrema-esquerda) darem um passo em frente em
direcção aos degraus que os poderão conduzir ao Poder.
Este Monstro vai
começar, mais dia menos dia, a ser tratado como uma necessidade a bem da Nação.
Esse Monstro já começou a babar-se, sedento de sangue e de morte. Esse Monstro
tem um nome: chama-se Fascismo e pode, em breve, começar a fazer as primeiras vítimas:
tu e eu. Depois, como escreveu Brecht, será tarde demais. [1]
[1]
Referência ao poema de Brecht (baseado num outro de Martin Niemöller) que
começa assim: “Primeiro levaram os negros/Mas não me importei com isso/Eu não
era negro (…).”
João Luís Nabo
In "O Martini das Onze e Meia", Edições Colibri, Maio de 2025