segunda-feira, 21 de abril de 2025

Francisco

 

 


 

Muito se escreveu sobre a vinda do Papa Francisco a Portugal e sobre a Jornada Mundial da Juventude. Já muito se tinha escrito sobre o Papa Francisco e sobre o dedo que ele começou a pôr nas feridas da Igreja, logo no início do seu pontificado. Veio, logo que foi eleito, parece-nos, escancarar a porta que João Paulo II tinha deixado entreaberta. Meio disfarçados até então, os escândalos de pedofilia no seio da Igreja são assumidos sem meias tintas e condenados por Bergoglio, que quer justiça para as vítimas e duras penas para os que vierem a ser condenados.

Mas não foi apenas com estes casos que o seu tempo na cadeira de Pedro se tem revelado inspirador e profícuo. A sua forma de entender os evangelhos, reescrevendo-os sempre que se pronuncia sobre a vida de todos nós, crentes e não crentes, mostra-nos que o tempo, as leis, as mentalidades no tempo de Cristo, e nos séculos antes da Sua vinda, não se podem aplicar e serem entendidos da mesma forma, à luz deste século XXI, que corre vertiginoso ao nosso lado. Francisco transformou o Deus Todo-Poderoso e vingativo do Antigo Testamento num Pai compreensivo e tolerante que eu não conheci quando, criança, andava na catequese. O Deus castigador, que, qual Big Brother de Orwell, andava sempre de olho nas nossas acções, nos nossos pensamentos e nos nossos desejos, é hoje, nas palavras de Francisco, um Pai que, como todos os bons pais, aceita todos os seus filhos, por muito desviados que possam andar dos caminhos que a Igreja decidiu classificar como os caminhos do Bem.

Se o Papa Francisco fosse Deus, personalizado e livre de todos os insondáveis mistérios com que, ao longo dos séculos, os homens da Igreja O cobriram, eu repensaria as minhas opções de fé e reformularia as minhas vivências espirituais. Mas enquanto na Igreja não houver uma real e generalizada prática dos ensinamentos deste verdadeiro homem de Deus… continuarei a admirá-lo, a defendê-lo e a seguir o seu pensamento… mas do lado de fora.


João Luís Nabo 

In "O Montemorense", Setembro de 2023

In O Martini das Onze e Meia, Edições Colibri, 2025 (no prelo)

quinta-feira, 17 de abril de 2025

Stabat Mater (porque estamos na Páscoa)


 Imagem do filme "A Paixão de Cristo" (2004) de Mel Gibson


A cruz pesava-lhe no ombro, mas já não tanto como no início. O corpo coberto de pústulas de sangue e suor misturadas com o pó seco do caminho, dando origem a uma espessa camada de lama avermelhada, começava a estar dormente, afastado do seu pensamento.

O sangue quente e vivo escorria-lhe da cabeça, e a coroa de espinhos continuava fortemente enterrada no crânio, parecendo ter nascido ali, com origem nos cabelos suados, castanhos e lodosos. O Sol a pino cegava-o e ele quase não conseguia ver para onde atirava os pés doridos, que as sandálias já não conseguiam proteger. O caminho era íngreme, pedregoso, difícil. Como difícil tinha sido a sua vida e a sua luta pela fé.

Jerusalém estava cheia de gente, por altura da Páscoa. Muitos tinham vindo de longe só para verem, com os próprios olhos, a condenação e a morte de um homem que dizia ser o rei dos Judeus. A multidão cercava-o selvaticamente, gritando, urrando, fugindo às investidas dos soldados e dos cavalos, acicatando alguns cães que se misturavam com a turba em êxtase. Ele ouvia todo aquele barulho ensurdecedor, mas não conseguia distinguir as vozes. Esforçava-se, desesperadamente, por escutar, de entre a confusão de palavras, a voz gentil de Maria, sua Mãe, que estivera sempre consigo, que o amava incondicionalmente, que sempre respeitara a sua vontade e as suas opções, que queria morrer por ele, se a deixassem. E Maria de Magdala, com o seu conforto e os seus olhos de avelã, doces e tristes, e João, o seu melhor amigo, o seu irmão, a sua paz. Mas o peso da cruz tirava-lhe a concentração, e desistiu. Sabia que estariam ali, a acompanhar o seu caminho derradeiro até ao Gólgota.

Sentiu que as forças lhe fugiam. Caiu mais uma vez. Mais uma vez os soldados romanos o levantaram a toque de lanças e de palavras sujas. Ergueu-se, as pernas a tremer e a garganta seca, seca, como as dunas do deserto da Judeia. Dobrou-se para abraçar a cruz e pô-la de novo sobre os ombros, já em carne viva. Não foi capaz. O corpo não obedecia ao cérebro cansado. O estômago ardia-lhe e o coração parecia querer sair-lhe do peito. Apercebeu-se de que alguém lhe punha a mão na face. Por entre o sangue quase em crosta e o suor enlameado, abriu mais os olhos para ver quem era. Não era a mãe. Não era João. Nem Maria de Magdala.

“Chamo-me Simão. Vou ajudar-te”. E empurrado pelos soldados, após um brusco aceno de cabeça do centurião, o homem, já idoso, natural de Cirene, carregou a cruz durante uns bons metros. Os suficientes para aliviar um pouco o condenado. Este aproveitou para semicerrar os olhos e tentar ver, pela centésima vez, onde estavam os amigos. Escondidos, decerto. Amedrontados, como seria de esperar. A protegerem a própria vida.

Quando, com um esgar de sofrimento, se preparava para aceitar a cruz de volta, das mãos do Cireneu, viu uns olhos muito azuis, muito abertos, rasos de lágrimas, incrustados num rosto claro de tanta luz e triste de tanta dor. Era a Mãe. Era a sua Mãe que lhe estendia a mão frágil, como se com aquele gesto pudesse carregar também aquela cruz ensanguentada. Inspirado pelo olhar incomparável daquela mãe, incomparável como o de todas as mães, o condenado mostrou-se mais vigoroso, mais preparado para o resto do caminho em direcção ao monte.

Agarrou na cruz, e nem as dores dos espinhos, nem os golpes das vergastadas lhe ardiam. Nada o segurou ou impediu de cumprir o fim da mais difícil oração da sua vida. Muito menos as memórias do que tinha sofrido havia poucas horas. Pelo seu olhar perpassou o manto cor de púrpura e os risos dos que, no Sinédrio, gozavam com ele, a cana a servir de ceptro, o seu rosto cansado, cuspido pelos soldados, as injúrias e os impropérios, a libertação de Barrabás, os gritos do povo enlouquecido, “Crucifica-O, crucifica-O!”, as mãos de Pilatos mergulhadas na bacia e, depois, pingando para o chão a água da indiferença…

Olhou em frente e viu o monte. O Gólgota. O Monte da Caveira. Onde eram crucificados os que punham em causa o que não podia ser posto em causa. Seria ali, dentro de poucas horas, o lugar da sua morte. E ele sabia-o. Desde o tempo dos profetas que tudo isto se sabia. Nada era novidade para ele. Então, nada havia a fazer para contrariar a vontade dos homens que o tinham condenado, o desinteresse dos homens que não o defenderam, e a frieza do Pai, que iria aparentemente abandoná-lo no momento mais extraordinariamente difícil da sua vida. E também sabia que as suas roupas iriam ser jogadas à sorte entre os soldados e que lhe iria ser dado vinagre e fel, pelos mesmos que lhe iriam perfurar o lado para se certificarem da sua morte. Todas estas provações seriam muito mais difíceis de aceitar se a Mãe não estivesse com ele, quando tudo terminasse. Essa era a sua grande certeza: a Mãe iria recebê-lo nos braços, junto ao coração, num aperto derradeiro, único e doloroso. E lá estaria também a irmã dela. E João. E Maria de Magdala.

Assim se cumpriu.

Depois da hora nona, as trevas invadiram a Terra. O condenado, à beira do fim (ou do princípio), invocou o nome do Pai e, em paz, depois de tudo estar consumado, entregou o espírito.

O Sol eclipsou-se, o véu do templo rasgou-se em dois e a Terra tremeu, tal como tinha sido narrado pelos profetas.

…………………………..

Aos pés da Cruz, o regaço de Maria recebeu, finalmente, este Menino de Sua Mãe, exangue, coberto de chagas, retalhado, sujo, semi-nu, abandonado, morto, mas vivo para toda a eternidade. 


João Luís Nabo

In "O Martini das Onze e Meia", Edições Colibri, 2025 (no prelo)

  

quarta-feira, 9 de abril de 2025

Reconquistas

 




Reconquistemos Abril

 

Os cravos parecem começar a murchar. Os que os regavam diariamente vão desaparecendo aos poucos. Ou porque partem para outra dimensão, obrigados a isso pela lei da vida e da morte, ou porque tais flores, símbolo dos novos tempos que vieram depois das trevas, não atraem os que  nunca viveram o tempo da ditadura, das prisões, das torturas, do terror e da morte.

Não é necessário escrever muito mais. Partidos que nasceram num espectro que de  democrático nada têm começam, de forma absolutamente descarada, a conquistar um espaço que deveria continuar a ser preenchido por gente boa, com sentido democrático, defensores e praticantes activos da justiça e da tolerância, e criadores de um mundo onde não se instale o medo e a desconfiança permanentes.

A Revolução de Abril trouxe-nos algumas incertezas, mas acabou com a guerra colonial e com os presos políticos, para além de, definitivamente, nos permitir falar, escrever e pensar sem medo. É neste patamar que pretendemos permanecer até ao fim.

Foi disto que falámos com os meus alunos Catarina Neves e Santiago Batista e o Professor Vítor Guita, nas gravações para o programa infanto-juvenil Radar XS, da RTP. Para que a memória permaneça e o passado nunca regresse.

 

Para reforçar essa ideia, fica aqui este excerto de uma obra de ficção, embora baseada em factos reais, um modesto contributo para que a História nunca seja falsificada e para inspirar todos, sobretudo os jovens, para que a luta permaneça, de modo a que Portugal seja sempre um país liberto de todas as amarras e sem ameaças vindas de um passado que tem rosto e que não queremos de regresso: “Sem perder tempo, o outro pide deu-me um pontapé no estômago que me fez dobrar em dois e cair. Fiquei deitado, de costas para o Simplício que me aplicou dois pontapés no peito. Senti os ossos a quebrarem. Comecei a deitar sangue pela boca (…) Não o vou maçar com esta narrativa sobre as horas que passámos os dois, na mesma cela, juntos, dois homens feitos, um a transformar-se aos poucos num farrapo, após dezenas de horas sem dormir (Sertório foi substituído a meio da noite) e outro a usar o seu poder para dar liberdade às suas fantasias mais sórdidas. Fui ‘ferrado’ várias vezes ao longo da noite, por vezes esmurrado e, até, sovado com um cavalo marinho.”[1]

           

Almansor Reconquistado

 

Há dois anos, a 30 de Maio, encerrou o Almansor que conhecíamos. O Café que recebeu o nome do Rio e que, depois, deu nome ao Largo, e que albergou, durante décadas, dezenas de histórias de bons e maus tempos, dependendo da perspectiva de quem os viveu. Dias de poder e dias de indiferença. Dias de equilíbrio e de reajustes, que a Revolução, a partir daquele dia “inicial e limpo”, veio repor.

Fui cliente do histórico Café desde a minha tenra adolescência. Ali começámos a beber chá de limão e meias de leite, de início, para depois passarmos, descontraída,  ousada e corajosamente, a erguer à frente do nariz uma imperial gelada ou um licor, cuja marca não me paga para fazer publicidade, enquanto se puxavam as primeiras baforadas de um cigarro, fumado ali, longe da vista dos pais. Foi ali que criei amizades, reforcei relações, me aborreci com amigos e com eles fiz as pazes, sempre à volta dos petiscos extraordinários que saiam daquela cozinha mágica. Fui lá, nesse dia 30 de Maio, despedir--me. Deixei ficar dois exemplares do meu romance “Sertório”, história em que o José Maria e o Evaristo têm uma breve participação, logo no segundo capítulo.

 

João Luís Nabo

In "O Montemorense", Abril de 2025

[1] In Sertório, uma história de Vila Nova, Edições Colibri, 2021.

Distraídos crónicos...


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