Há dias deu por ele a caminhar, devagar e sozinho, em direcção à ermida da Senhora da Visitação. O tempo era ainda de Inverno, mas aquele dia, aquele dia exacto, tinha dispensado a chuva e o vento e, em seu lugar, o Sol, pregado naquele céu tão azul, abraçava Vila Nova e iluminava as muralhas ainda imponentes do velho castelo. Subiu a escadaria lentamente, saboreando cada passo que o levava mais alto em direcção ao templo. Não, não foi pagar uma promessa, muito menos fazer um pedido ou alterar um compromisso assumido num momento de aflição. Foi, simplesmente, porque a hora de almoço era larga e sentiu (terá sentido?) uma força, cuja origem nem sequer tentara perceber, que o puxou até lá a cima. Chegado ao cimo da colina, virou-se e enfrentou a vila. Gostou do que viu. Gostava sempre.
Deu por ele a empurrar a porta centenária, sempre entreaberta. Entrou e sentou-se na última fila (onde se senta habitualmente quando entra numa igreja), na penumbra silenciosa da capela. O espaço parecia-lhe vazio. Mas não. Quando os olhos, ainda cheios da luz do Sol, se habituaram àquela semiescuridão, viu um vulto junto ao altar-mor. No genuflexório da direita, mesmo aos pés da Virgem, notou a presença recolhida de uma senhora que rezava, concentrada, de cabeça baixa. O que estaria ela a murmurar? Que pedido? Que agradecimento? Só ela o sabia. Era sério o momento e, por isso, ficou, descontraidamente, a olhar para ela, sentindo, não queria admiti-lo, um estranho desejo de estar lá à frente, no lugar daquela mulher. Confirmou a vontade. Sim. Era um sentimento que poderia ser de… inveja, um pecado que há muito não cometia.
As pequenas chamas das velas, lá em cima, tremeluziam por detrás da imagem e reforçavam o ambiente místico que envolvia aquele cenário tão… simples. A força silenciosa daquela mulher, que não conheceu logo, quer pela semiobscuridade do espaço, quer pela distância a que se encontrava, deixou-lhe o pensamento viajar para outros tempos, quando tudo era mais enigmático mas, paradoxalmente, mais claro.
Perguntou-se em silêncio se ainda saberia rezar. Achou que já não. Muitos anos se tinham passado desde a última vez. Tinha-se esquecido de como pôr as mãos, de como olhar para cima e imaginar Deus na parede do seu quarto, junto à janela, ou mesmo ao seu lado enquanto adormecia. Libertou um sorriso breve ao lembrar-se de como, nesse tempo, se sentia seguro e inexplicavelmente confiante. «Rezar é falar com Deus», asseguravam-lhe as catequistas, de quem tinha uma imensa saudade. Delas, do padre António, na sua constante impaciência pragmática, que ninguém tentava contrariar, dos pequenos amigos, do lanche (frugal e rápido, é verdade) depois da missa da primeira comunhão. Se rezar era (e é decerto) apenas e só isso ― falar com Deus ―, então esse diálogo entre Deus e este humano, frágil e feito do pó da terra, Adão mil vezes renascido, acabaria por tornar-se difícil, por motivos na altura considerados fortes e inabaláveis. Razões que hoje teriam, provavelmente, a mesma força, embora numa nova era, e passados tantos anos, talvez houvesse tempo, ou maturidade, para o perdão pela Sua enorme mácula. Entretanto, para preencher aquele enorme vazio tinham aparecido outros deuses, outras divindades, novas certezas, bem mais materiais e bem menos, como diria, difíceis de compreender e aceitar…
Por estranho que possa parecer, a imagem da Virgem, no seu manto da cor do céu lá fora, com aquela senhora aos pés, cheia de fé e humildade, fez com que sentisse saudades do Deus da sua infância, um constante companheiro de conversas, algumas ridículas aos olhos de hoje, muitas delas sublimes e inesquecíveis aos olhos de qualquer época. Mesmo assim, mantinha-se onde estava, firme, inabalável nas suas crenças cristalizadas de homem do novo milénio, querendo deixar para trás as suas discussões com Deus, os debates, as brigas, as fugas e os regressos, mas sobretudo o último diálogo, violento e tumultuoso, que ditara aquela zanga aparentemente definitiva, uma ruptura permanente, sem regresso possível.
Foi depois da morte de um amigo da sua idade, quase irmão, impetuoso, bem-humorado, generoso, ambos na escola, com planos e projectos de longas vidas e famílias felizes. Morte inexplicável e injusta. Dor profunda e incurável. Um jovem quase adulto, iluminado, filho único. Cancro. Galopante. Nem tempo tinha havido para tentar a cura. Deus fora, afinal, um pai desatento e negligente. Outros, os que espalhavam o mal, os ódios e as guerras, continuavam aí com bilhete de identidade vitalício e sem pai que os repreendesse. Depois de muitas discussões, com lágrimas e raiva à mistura, disse-Lhe que já não O queria como seu, que não precisava de um pai assim, omnipotente mas com defeitos.
Quando a senhora se levantou, ele, sem lhe apetecer grandes conversas, de forma quase automática, saiu da capela e dirigiu-se à escadaria que desaguava lá em baixo, junto à estrada. No entanto, não a desceu. Esperou, curioso. A senhora, de cabelo prateado e pele morena, a rondar os 70 anos, saiu em passo lento e ficou de rosto iluminado logo que o viu. Desceu os três degraus que a separavam do terreiro e acenou na sua direcção:
― Não esperava encontrar-te aqui. Pelo menos para já! ― Fez uma pausa, enquanto guardava o terço no bolso do casaco, e acrescentou: ― Não sabia que as minhas orações tinham uma força tão poderosa e um efeito tão… imediato! ― Perante o seu contínuo silêncio, aproximou a face da dele e segredou-lhe: ― Se Deus nos perdoa os pecados, também tu deves perdoar-Lhe o Dele.
Era a mãe, a sua, inteligente como todas as mães, confiante e simples como todos os sábios.
In “Outros Contos de Vila Nova”
João Luís Nabo
Editorial Tágide
Lisboa,
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