terça-feira, 11 de junho de 2024

Três cenários

 


 

Cenário I – o Centro Histórico

 

            Se algum forasteiro se atreve a desenhar a nossa cidade com traços críticos, de mau gosto, apenas porque sim, ou para cumprir a sua missão como “detestador” de serviço, nós, os de cá, levantamos logo a mão (a direita ou a esquerda, tanto faz) e dizemos sem hesitação: “Alto e para o baile!” E porquê? Porque para dizer mal, criticar e apontar defeitos à nossa cidade estamos cá nós, os que gostamos dela, os que cá vivemos e que temos as suas ruas e os seus largos como cenários naturais da nossa vida diária.

Sabemos que o nosso Centro Histórico continua, pelo menos aparentemente, sem uma solução à vista. Já por aqui passaram, noutra altura, esses desabafos e alertas. Sabe-se que nem tudo depende da autarquia e que os proprietários das casas quase em ruínas precisariam de apoios substanciais para poderem restaurar/reconstruir os imóveis que são, muitos deles, a imagem do Centro Histórico, mas que estão na iminência de cair. Não se referem aqui as evidências, porque elas são, de facto, demasiado visíveis, e estas linhas são apenas o resumo das muitas preocupações que munícipes e órgãos autárquicos vêm manifestando ao longo de vários anos. No entanto, ainda nada se fez. No entanto, esses imóveis continuam lentamente a mover-se em direcção ao solo.

Um dia, o Largo General Humberto Delgado, o Largo da Matriz e outros espaços emblemáticos da cidade podem transformar-se em feridas angustiantes e dolorosamente difíceis para o olhar de quem passa.  

 

            

Cenário II – O Rio

 

            Também o Rio parece condenado a desaparecer. O Rio onde aprendemos a nadar, onde passámos verões inteiros à pesca, onde nós éramos parte daquelas águas e personagens desenhadas naquele quadro com as torres do castelo lá em cima, no monte mais alto. As margens foram, há muito, conquistadas pelas silvas e por outras plantas selvagens, os peixes perderam há anos o seu habitat natural, as águas, um fio de luz naquele restolho sem fim, já quase não se avistam ao longo daquele triste barranco… Lembro-me de o Rio ter sido, em tempos, um dos elementos que viria a ser estudado pelos socialistas, quando estes começassem a gerir a autarquia. Na verdade, pouco ou nada se tem ouvido falar sobre o assunto.

Enquanto esperamos que outros dias possam trazer uma enchente de boa vontade (e de dinheiro) para devolver ao Rio a sua dignidade, aqui fica, sem qualquer presunção, um excerto do conto “O Milagre”[1], com dois retratos profundamente diferentes do Rio Almansor, mas porque era assim que, em tempos idos, ele se manifestava. No Verão era um, no Inverno era outro, como qualquer ser vivo em constante mutação. Agora… é sempre igual. É um cadáver à espera do próprio enterro:

 

FAZIA um calor de morte. Agosto ia a meio e Vila Nova transpirava por todos os poros. Nas ruas e nos largos quase não se via vivalma. Apenas a luz do Sol a vibrar nas pedras da calçada e a fazer escorrer suor pelos rostos, muito poucos, dos mais ousados. O rio que passava lá em baixo, no sopé da colina coroada com as torres do Castelo, era um fio de dor que deixava a descoberto troncos velhos, secos, de braços retorcidos apontados ao céu, que destapava rochas, lapas, labirintos escavados no fundo do leito por peixes de toda a ordem, por cágados e cobras de água, bicharada que ia convivendo, que se ia apertando, conforme o tamanho e o feitio, nos pequenos pegos, pobres poças de água quase pútrida, onde tentariam sobreviver até à chegada das próximas chuvas “(…)”.

“(…)” No dia seguinte, choveu, glória à Virgem e a Deus, aleluia! (…) Por cima do Castelo, nuvens negras vomitavam raios e trovões, lançando uma cascata, pesada e interminável, que era um entorneiro por aquela encosta e por todas as encostas ali à volta, desaguando no rio que, no fundo do vale, já tapava os arcos da ponte romana. As águas, imparáveis e impiedosas, saltavam as margens e arrastavam sem compaixão porcos e ovelhas, galinhas e patos, que chegavam já inchados ao Pego do Moinho do Virtuoso “(…)”.

 Cenário III - Férias (o velho cliché de sempre?)

Vamos lá então descansar os ossos para um sítio longe daqui, para desanuviar, dizem uns, para mudar de ares, para lavar a vista… Praia, montanha, lá fora, cá dentro, com a família, com amigos ou sozinho. Cada um fará como melhor lhe aprouver ou conforme o deixarem. Muitos saem porque estão fartos das mesmas ruas, das mesmas pessoas nos mesmos locais. Mas não querem ficar em hotéis de luxo, ou em apartamentos confortáveis com vista para o mar ou para a montanha. Nada disso. Aventuram-se para o Algarve, à boleia, com uma mochila às costas, para a Comporta, de bicicleta, ou mesmo para um parque de campismo meio perdido, junto a uma pequena aldeia do Norte. Outros atravessam desertos, de moto ou em camelos, descem a costa alentejana de caravana ou num Opel Corsa de 1992 (ah, a Velha Senhora, sempre pronta para as curvas!) ou fazem trails de loucos em serras inóspitas, onde um passo em falso pode ditar uma verdade assustadora. O objectivo não é o repouso, sob um sol convidativo, à beira da piscina do Altis ou no relvado de um jardim exótico. Não são as sunset parties nos bares da praia ou os jantares à beira-mar, onde tudo é preto e prata, branco e alaranjado. O propósito é a superação, é o aliviar do espírito, o querer, o ser, o estar, o afirmar-se, mais uma vez e sempre, como seres humanos que levam ao limite o seu talento de sobreviventes, e ser capaz, no fim, de lavar o sangue, o suor e todas as lágrimas. Como faz o Pedro Ferreira, nesta sua permanente atracção pelo abismo.

Um dia, que se deseja tarde, serão esses os primeiros a salvar-se.


João Luís Nabo

In "O Montemorense", Junho de 2024

 



[1] João Luís Nabo, in “Segredos de Vila Nova” (Edições Colibri, Lisboa, 2023)

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Distraídos crónicos...


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