Cenário I – o Centro Histórico
Se algum forasteiro
se atreve a desenhar a nossa cidade com traços críticos, de mau gosto, apenas
porque sim, ou para cumprir a sua missão como “detestador” de serviço, nós, os
de cá, levantamos logo a mão (a direita ou a esquerda, tanto faz) e dizemos sem
hesitação: “Alto e para o baile!” E porquê? Porque para dizer mal,
criticar e apontar defeitos à nossa cidade estamos cá nós, os que gostamos
dela, os que cá vivemos e que temos as suas ruas e os seus largos como cenários
naturais da nossa vida diária.
Sabemos que o nosso Centro Histórico continua, pelo menos
aparentemente, sem uma solução à vista. Já por aqui passaram, noutra altura,
esses desabafos e alertas. Sabe-se que nem tudo depende da autarquia e que os
proprietários das casas quase em ruínas precisariam de apoios substanciais para
poderem restaurar/reconstruir os imóveis que são, muitos deles, a imagem do
Centro Histórico, mas que estão na iminência de cair. Não se referem aqui as
evidências, porque elas são, de facto, demasiado visíveis, e estas linhas são
apenas o resumo das muitas preocupações que munícipes e órgãos autárquicos vêm
manifestando ao longo de vários anos. No entanto, ainda nada se fez. No
entanto, esses imóveis continuam lentamente a mover-se em direcção ao solo.
Um dia, o Largo General Humberto Delgado, o Largo da Matriz
e outros espaços emblemáticos da cidade podem transformar-se em feridas
angustiantes e dolorosamente difíceis para o olhar de quem passa.
Cenário II – O Rio
Também o Rio
parece condenado a desaparecer. O Rio onde aprendemos a nadar, onde passámos
verões inteiros à pesca, onde nós éramos parte daquelas águas e personagens desenhadas
naquele quadro com as torres do castelo lá em cima, no monte mais alto. As
margens foram, há muito, conquistadas pelas silvas e por outras plantas
selvagens, os peixes perderam há anos o seu habitat natural, as águas,
um fio de luz naquele restolho sem fim, já quase não se avistam ao longo
daquele triste barranco… Lembro-me de o Rio ter sido, em tempos, um dos
elementos que viria a ser estudado pelos socialistas, quando estes começassem a
gerir a autarquia. Na verdade, pouco ou nada se tem ouvido falar sobre o
assunto.
Enquanto esperamos que outros dias possam trazer uma
enchente de boa vontade (e de dinheiro) para devolver ao Rio a sua dignidade,
aqui fica, sem qualquer presunção, um excerto do conto “O Milagre”[1],
com dois retratos profundamente diferentes do Rio Almansor, mas porque era
assim que, em tempos idos, ele se manifestava. No Verão era um, no Inverno era
outro, como qualquer ser vivo em constante mutação. Agora… é sempre igual. É um
cadáver à espera do próprio enterro:
“FAZIA um calor de morte. Agosto ia a meio e Vila
Nova transpirava por todos os poros. Nas ruas e nos largos quase não se via
vivalma. Apenas a luz do Sol a vibrar nas pedras da calçada e a fazer escorrer
suor pelos rostos, muito poucos, dos mais ousados. O rio que passava lá em
baixo, no sopé da colina coroada com as torres do Castelo, era um fio de dor
que deixava a descoberto troncos velhos, secos, de braços retorcidos apontados
ao céu, que destapava rochas, lapas, labirintos escavados no fundo do leito por
peixes de toda a ordem, por cágados e cobras de água, bicharada que ia
convivendo, que se ia apertando, conforme o tamanho e o feitio, nos pequenos
pegos, pobres poças de água quase pútrida, onde tentariam sobreviver até à
chegada das próximas chuvas “(…)”.
“(…)”
No dia seguinte, choveu, glória à Virgem e a Deus, aleluia! (…) Por cima do
Castelo, nuvens negras vomitavam raios e trovões, lançando uma cascata, pesada
e interminável, que era um entorneiro por aquela encosta e por todas as
encostas ali à volta, desaguando no rio que, no fundo do vale, já tapava os
arcos da ponte romana. As águas, imparáveis e impiedosas, saltavam as margens e
arrastavam sem compaixão porcos e ovelhas, galinhas e patos, que chegavam já
inchados ao Pego do Moinho do Virtuoso “(…)”.
Vamos lá então descansar os ossos para um sítio longe daqui, para desanuviar, dizem uns, para mudar de ares, para lavar a vista… Praia, montanha, lá fora, cá dentro, com a família, com amigos ou sozinho. Cada um fará como melhor lhe aprouver ou conforme o deixarem. Muitos saem porque estão fartos das mesmas ruas, das mesmas pessoas nos mesmos locais. Mas não querem ficar em hotéis de luxo, ou em apartamentos confortáveis com vista para o mar ou para a montanha. Nada disso. Aventuram-se para o Algarve, à boleia, com uma mochila às costas, para a Comporta, de bicicleta, ou mesmo para um parque de campismo meio perdido, junto a uma pequena aldeia do Norte. Outros atravessam desertos, de moto ou em camelos, descem a costa alentejana de caravana ou num Opel Corsa de 1992 (ah, a Velha Senhora, sempre pronta para as curvas!) ou fazem trails de loucos em serras inóspitas, onde um passo em falso pode ditar uma verdade assustadora. O objectivo não é o repouso, sob um sol convidativo, à beira da piscina do Altis ou no relvado de um jardim exótico. Não são as sunset parties nos bares da praia ou os jantares à beira-mar, onde tudo é preto e prata, branco e alaranjado. O propósito é a superação, é o aliviar do espírito, o querer, o ser, o estar, o afirmar-se, mais uma vez e sempre, como seres humanos que levam ao limite o seu talento de sobreviventes, e ser capaz, no fim, de lavar o sangue, o suor e todas as lágrimas. Como faz o Pedro Ferreira, nesta sua permanente atracção pelo abismo.
Um dia, que se deseja tarde, serão esses os primeiros a salvar-se.
João Luís Nabo
In "O Montemorense", Junho de 2024
Sem comentários:
Enviar um comentário