Deixar passar em
claro a oportunidade de escrever sobre o assunto mais comentado da actualidade
é ignorar o óbvio e desiludir os meus 10 leitores. Portanto, aqui vai.
Condeno sem
reservas o ataque obsceno à redacção da Charlie Hebdo, uma revista satírica
francesa que fazia (e vai continuar a fazer) as delícias dos seus leitores, com
caricaturas fortes, sobretudo de personalidades ou entidades ligadas à
religião. Apesar deste meu propósito, não sou o tal Charlie. Assumindo esse
facto, tal como milhões assumiram o contrário, escrevi numa rede social “Je ne
suis pas Charlie”, contrariando o slogan com que o mundo acordou pouco
depois do atentado. Escrevi e logo escreveram a seguir o que lhes ia na alma,
tornando o meu Mural num verdadeiro atentado à minha própria liberdade de
expressão.
Por aqui se vê
que é profundamente difícil discutir esta temática sem tentar perceber primeiro
até onde pode ir o limite do humor e da liberdade, qual a delimitação da
fronteira em relação à caricatura mordaz e violenta, e até se é possível usar
de bom senso antes de se publicar seja o que for. Pois é, dirão muitos, o bom
senso é uma cerca mascarada contruída à volta do nosso cérebro e onde se fecha
a cadeado a democracia, a liberdade de expressão e a criatividade. Proceder a
uma auto-censura prévia em relação ao que publicar é aceitar, irrevogavelmente,
a limitação da nossa própria existência como seres pensantes e cidadãos do
mundo.
Mas quem pode
ser melhor ou maior cidadão do mundo? Não é, tenho a certeza, quem carrega
cartazes e frases nas camisolas e na testa a dizer “Je suis Charlie” até
à exaustão e a roçar o vulgar. Também não será aquele que, no cantinho do seu
sofá, este já moldado ao corpo pela habituação, ignora a ameaça gigante que se
repetiu recentemente, a meia dúzia de quilómetros da nossa casa, e cuja
primeira versão aconteceu em Nova Iorque, no dia 11 de Setembro de 2001. Deixar
que os nossos pensamentos sejam controlados por radicais, seja de que religião ou
partido for, é um passo para a criação de uma sociedade totalitária, de terror
e em guerra permanente. E não há religiões algumas que possam afirmar-se inocentes
nesta matéria. Recordemos que noutros tempos, de igual infeliz memória, também
a Igreja de Roma agiu de forma brutal contra quem pensava de outro modo.
Também, mais recentemente no friso temporal, as notícias sobre Salazar eram
sempre dadas no pretérito perfeito, à luz de uma certa religiosidade absurda:
“No dia 2 de Outubro, sua Ex.ª, o Presidente do Conselho, ESTEVE na zona onde
nasceu. Visitou a prima e a antiga empregada da casa...” (Este é um dos motivos
por que lhe chamavam o “Esteves”). É que assim, com jornalistas domesticados a
rigor, evitavam-se males maiores, como atentados, slogans
despropositados ou manifestações espontâneas de desagravo a sua Ex.ª. Agir sem
medo mas com a inteligência necessária para não cair no extremo oposto será,
provavelmente, a uma única atitude possível.
Os que escrevem
ou desenham em jornais sabem como é penoso, e contra a nossa natureza, teclar
apenas o que os editores pretendem, de acordo com orientações governamentais ou
determinados princípios religiosos ou morais. Quando, há uns bons anos, comecei
a escrever na “Folha de Montemor” ou aqui, nesta coluna, ninguém me perguntou a
cor da minha religião nem os temas que iriam ser alvos das minhas
análises-mais-ou-menos-populares. Para entender a democracia e a liberdade não
preciso de ser Charlie, nem de defender os ideais de um deus ou de um líder
político. E é por isso que, ainda hoje, continuo a escrever. Porque não sou Charlie.
Tenho ideias próprias e não gosto, não quero, não preciso que me mandem ser
seja quem ou o que for.
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Então, como é?
Quinze dias depois daquelas mortes injustas, bárbaras e inesquecíveis,
continuam a ser todos Charlie? Ou já estão mais calminhos? É que os
caricaturistas continuam a trabalhar e os islamistas estão atentos. Estes e
outros radicais... que podem surgir de onde menos se espera. Mas nós, os
ocidentais, só estaremos atentos (caso sobrevivamos) depois de uma bomba cair
na nossa sala de estar, ao lado da chaise longue, a partir da qual
enviamos mensagens e comentários incendiários para as redes sociais, sem, muitas
vezes, ousar pôr o pé na rua. Mas esse gesto, caros leitores, também pode ser
uma forma, não menos violenta, de terrorismo. Mas nunca deixem de escrever e de
desenhar! Façam-no sempre! Mas assumam que tudo o que se escreve e desenha,
para além de poder alertar para os problemas do nosso tempo, é capaz também de
conduzir a consequências graves, resultado de gestos criminosos impossíveis de
controlar.
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Já repararam,
decerto, que o autor destas pobres linhas continua firme e irredutível a
utilizar a grafia correcta da língua portuguesa. E porquê? Porque o dito
acordo ortográfico é uma perfeita estupidez inventada por um bando de terroristas
idiotas. Grupo ao qual jamais pertencerei. Nem com uma kalashnikov apontada. Je
ne suis pas idiot!
In "O Montemorense", Janeiro de 2015
In "O Montemorense", Janeiro de 2015
1 comentário:
Concordo com muito do que escreves. O assunto tem pano para larguíssimas mangas: ver o Israelita que massacrou famílias inteiras em Gaza na manifestação encenada, só não é um nojo, porque são dois, e por isso, de certo modo e nesse sentido, eu também não me sinto Charlie (como imaginas, penso o que pensa qualquer comum mortal sobre o direito de assasinar pessoas que estão a trabalhar num jornal) Depois,é preciso perceber as causas mais profundasdas coisas. É que não há terroristas bons nem maus, não há vítimas de primeira e de segunda: Líbia (onde o Hollande se comporta como um neocolonialista), Iraque, Irão, Afeganistão, Síria. Lembrem-me lá outra vez quem é que atirou a primeira pedra, que eu assim de repente não me lembro?...
(Um abraço, rapaz).
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