O
povo americano já não nos pode surpreender mais. Quem deixa de
torturar e matar negros para os transformar em presidentes da sua
grande nação pode, muito bem e sem qualquer justificação, agarrar
num indivíduo carregado de defeitos e sentá-lo na Sala Oval, porque
o acha merecedor de tal distinção e responsabilidade.
A
linha que a sociedade nos manda traçar para dividirmos o Bem do Mal,
anulando assim, inequivocamente, a possibilidade de ambos se
misturarem, nunca foi clara na sociedade americana. A sua literatura,
ainda que herdeira de fortes influências europeias, mostra-nos, e
aqui sim, claramente, que o espaço americano, pela sua amplitude e
diversidade, pode permitir tanto a um habitante de Nova Inglaterra ou
de Massachusetts, com um passado histórico de caça às bruxas
(literalmente), como a um cidadão, distante e isolado, dos estados
do Nebrasca ou do Arcansas, de espírito livre e mais ligado à
natureza, mas não impeditivo de atitudes-limite, a vivência de
duplicidades que só se tornam compreensíveis se as entendermos à
luz de comportamentos borderline,
comummente generalizados como esquizofrénicos ou bipolares.
Donald
Trump lembra-nos precisamente algumas personagens com estes
atributos, saídas de romances de Bret Easton Ellis – vítimas de
um novo-riquismo que lhes permite os excessos e que, ao mesmo tempo,
as atira para um espaço onde a mitomania (a capacidade de acreditar
nas suas próprias mentiras e nos seus projectos megalómanos) as
torna ainda mais assustadoras aos olhos dos outros – ou de Edgar
Allan Poe, onde a luta constante com a sua própria consciência as
transforma em seres alienados e capazes de qualquer loucura contra
eles próprios ou contra os outros.
O
novo presidente da nação mais poderosa do mundo, diz-se,
apresentou-se como um indivíduo contra o status
quo. Contudo, e paradoxalmente, as
suas atitudes, palavras e maquinações acabam por roçar o ridículo
pela incredulidade que provocam nos que o escutam. Por outro lado,
esses terríveis planos de Trump levam-nos a pensar que é
urgente que um qualquer super-herói esteja alerta, na tradição dos
mais competentes vigilantes da Marvel, pronto para entrar em acção,
de modo a impedir a concretização de tais ideias. Estas parecem
vindas de um verdadeiro ditador dos tempos da Segunda Grande Guerra
ou de um general alucinado, que tenha passado a maior parte da vida
escondido, na clandestinidade, com os seus guerrilheiros numa floresta
esconsa da América do Sul.
Se
Trump leu Ellis, Poe ou mesmo Hawthorne, terá decerto encontrado
traços comuns entre si próprio e as conflituosas e sofredoras
personagens destes génios americanos. No entanto, se o novo chefe do
mundo se atrever a ler um certo e muito célebre romance da
literatura gótica inglesa, poderá concluir que ele próprio, no
calor dos seus discursos e nas contradições constantes da sua vida,
poderá não passar de uma criatura construída por si próprio e
pelos media, com pedaços de vivências de si e de outros que o tornam num todo misto,
grotesco e vivendo numa insuportável e angustiante ausência de paz.
Afinal,
a Criatura de Victor Frankenstein só precisava de um pouco de
compreensão e carinho. Tal como Mary Shelley, sua virtuosa e
verdadeira criadora.
João Luís Nabo
In "O Montemorense", Novembro de 2016
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