A
cruz pesava-lhe no ombro, mas já não tanto como no início. O corpo coberto de
pústulas de sangue e suor misturadas com o pó seco do caminho, dando origem a
uma espessa camada de lama avermelhada, começava a estar dormente, afastado do
seu pensamento.
O sangue quente e vivo escorria-lhe
da cabeça, e a coroa de espinhos continuava fortemente enterrada no crânio,
parecendo ter nascido ali, com origem nos cabelos suados, castanhos e lodosos.
O Sol a pino cegava-o e ele quase não conseguia ver para onde atirava os pés
doridos, que as sandálias já não conseguiam proteger. O caminho era íngreme, pedregoso,
difícil. Como difícil tinha sido a sua vida e a sua luta pela fé.
Jerusalém estava cheia de gente,
por altura da Páscoa. Muitos tinham vindo de longe só para verem, com os próprios
olhos, a condenação e a morte de um homem que diziam ser o rei dos Judeus. A
multidão cercava-o selvaticamente, gritando, urrando, fugindo às investidas dos
soldados e dos cavalos, acicatando alguns cães que se misturavam com a turba em
êxtase. Ele ouvia todo aquele barulho ensurdecedor, mas não conseguia
distinguir as vozes. Esforçava-se, desesperadamente, por escutar, de entre a
confusão de palavras, a voz gentil de Maria, sua mãe, que estivera
sempre consigo, que o amava incondicionalmente, que sempre respeitara a sua
vontade e as suas opções, que queria morrer por ele, se a deixassem. E Maria de
Magdala, com o seu conforto e os seus olhos de avelã, doces e tristes, e João,
o seu melhor amigo, o seu irmão, a sua paz. Mas o peso da cruz tirava-lhe a
concentração, e desistiu. Sabia que estariam ali, a acompanhar o seu caminho
derradeiro até ao Gólgota.
Sentiu que as forças lhe fugiam.
Caiu mais uma vez. Mais uma vez os soldados romanos o levantaram a toque de
lanças e de palavras sujas. Ergueu-se, as pernas a tremer e a garganta seca,
seca, como as dunas do deserto. Dobrou-se para abraçar a cruz e pô-la de novo sobre os
ombros, já em carne viva. Não foi capaz. O corpo não obedecia ao cérebro
cansado. O estômago ardia-lhe e o coração parecia querer sair-lhe do peito.
Apercebeu-se de que alguém lhe punha a mão na face. Por entre o sangue quase em
crosta e o suor enlameado, abriu mais os olhos para ver quem era. Não era a mãe.
Não era João. Nem Maria de Magdala.
“Chamo-me Simão. Vou ajudar-te”. E empurrado pelos soldados, após um brusco aceno
de cabeça do centurião, o homem, já idoso, natural de Cirene, carregou a cruz
durante uns bons metros. Os suficientes para aliviar um pouco o condenado. Este
aproveitou para semicerrar os olhos e tentar ver, pela centésima vez, onde
estavam os amigos. Escondidos, decerto. Amedrontados, como seria de esperar. A
protegerem a própria vida.
Quando, com um esgar de
sofrimento, se preparava para aceitar a cruz de volta, das mãos do Cireneu, viu
uns olhos muito azuis, muito abertos, rasos de lágrimas, incrustados num rosto
claro de tanta luz e triste de tanta dor. Era a mãe. Era a sua mãe que lhe
estendia a mão frágil, como se com aquele gesto pudesse carregar também aquela
cruz ensanguentada. Inspirado pelo olhar incomparável daquela mãe, incomparável como o de todas as mães, o condenado mostrou-se mais vigoroso, mais preparado para o resto do caminho em direcção ao monte.
Agarrou na cruz, e nem as dores dos espinhos, nem os golpes das vergastadas lhe ardiam. Nada o segurou ou impediu de cumprir o fim da mais difícil oração da sua vida. Muito menos as memórias do que tinha sofrido havia poucas horas. Pelo seu olhar perpassou o manto cor de púrpura e os risos dos que, no Sinédrio, gozavam com ele, a cana a servir de ceptro, o seu rosto cansado, cuspido pelos soldados, as injúrias e os impropérios, a libertação de Barrabás, os gritos do povo enlouquecido, “Crucifica-o, crucifica-o!”, as mãos de Pilatos mergulhadas na bacia e, depois, pingando para o chão a água da indiferença…
Agarrou na cruz, e nem as dores dos espinhos, nem os golpes das vergastadas lhe ardiam. Nada o segurou ou impediu de cumprir o fim da mais difícil oração da sua vida. Muito menos as memórias do que tinha sofrido havia poucas horas. Pelo seu olhar perpassou o manto cor de púrpura e os risos dos que, no Sinédrio, gozavam com ele, a cana a servir de ceptro, o seu rosto cansado, cuspido pelos soldados, as injúrias e os impropérios, a libertação de Barrabás, os gritos do povo enlouquecido, “Crucifica-o, crucifica-o!”, as mãos de Pilatos mergulhadas na bacia e, depois, pingando para o chão a água da indiferença…
Olhou
em frente e viu o monte. O Gólgota. O Monte da Caveira. Onde eram crucificados
os que punham em causa o que não podia ser posto em causa. Seria ali, dentro de
poucas horas, o lugar da sua morte. E ele sabia-o. Desde o tempo dos profetas
que tudo isto se sabia. Nada era novidade para ele. Então, nada havia a fazer
para contrariar a vontade dos homens que o tinham condenado, o desinteresse dos
homens que não o defenderam e a frieza do Pai, que iria aparentemente abandoná-lo
no momento mais extraordinariamente difícil da sua vida. E também sabia que as suas
roupas iriam ser jogadas à sorte entre os soldados e que lhe iria ser dado
vinho e fel, pelos mesmos que lhe iriam perfurar o lado para se certificarem da
sua morte. Todas estas provações seriam muito mais difíceis de aceitar se a mãe
não estivesse com ele, quando tudo terminasse. Essa era a sua grande certeza: a
mãe iria recebê-lo nos braços, junto ao coração, num aperto derradeiro, único e
doloroso. E lá estaria também a irmã dela. E João. E Maria de Magdala.
Assim
se cumpriu.
Depois da hora nona, as trevas
invadiram a Terra. O condenado, à beira do fim (ou do princípio?), invocou o nome do Pai e, em
paz, depois de tudo estar consumado, entregou o espírito.
O Sol eclipsou-se, o véu do
templo rasgou-se em dois e a Terra tremeu, tal como tinha sido narrado pelos
profetas.
…………………………..
Aos pés da Cruz, o regaço de
Maria recebeu, finalmente, este Menino de Sua Mãe, exangue, coberto de chagas, retalhado, sujo, semi-nu, abandonado, morto, mas vivo para toda a eternidade.
João Luís Nabo
In "O Montemorense", Páscoa de 2019
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