Emma: Ainda pensas em mim?
Jerry:
Não preciso de pensar em ti.
Traições (Betrayal), por muitos considerada a obra-prima do dramaturgo
britânico Harold Pinter (1930-2008), foi estreada a 15 de Novembro de 1978, em
Londres, no National Theatre, e em Portugal, no ano seguinte. Em Montemor, subiu
à cena recentemente, no passado dia 6 de Dezembro, pela Associação Theatron, com a produção executiva de Todinha Santos, no
Espaço do Tempo, agora sediado na antiga Oficina Magina,
A
criativa encenação de Paulo Quedas e a exploração dos jogos de luz, de som e de
imagem, pelos cada vez mais sofisticados Tiago Coelho e Helena Barreiras, trouxeram-nos
um Harold Pinter absolutamente actual, focado nas glórias e nas misérias, nas
forças e nas inseguranças do ser humano, à deriva, sempre à deriva, consoante
os sentimentos e os impulsos de que se alimenta, condicionado pelo sucesso,
pelo fracasso, pelas relações conjugais, pelos laços de amizade e pelo sexo.
O
público era constituído por apenas 15 (sim, quinze) espectadores, convidados a
fazer, de certo modo, parte da peça, como figurantes/voyeurs, que
assistem ao desvendar dos mais íntimos segredos, protegidos (ou não) pela
memória, e escondidos nos cantos mais profundos das três personagens em
conflito. O desconforto provocado no
espectador, confrontado com questões que, aparentemente, não lhe dizem
respeito, é tal que, nos momentos de maior tensão, lhe apetece disfarçar, ir até
lá fora, apanhar ar ou fumar um cigarro, para dar tempo a que Jerry, Robert,
Emma e Judith (que nunca aparece) resolvam as graves questões em que assenta a
peça: o adultério, a traição e as memórias impossíveis de segurar. É, pois, o
passado que regressa, implacável, aos olhos deles e aos nossos.
Rosa
Souto Armas (Emma), Filipe Fernandes (Jerry) e Bernardino Samina (Robert) mostram-se
cada vez mais amadurecidos nos papéis que assumem e interpretam. Pinter, nas
palavras deste trio, ficou ainda mais subtil e, por isso mesmo, mais violento,
mais ironicamente revelador. Durante pouco mais de uma hora, assistimos a
momentos verdadeiramente sublimes, quando, numa empatia perfeita, exploraram as
subtilezas do texto, com os tempos mais do que correctos e os silêncios mais do
que enervantes, de modo a acelerar o batimento cardíaco do espectador,
sobretudo quando o que ficava por dizer era muito mais esclarecedor do que
aquilo que se tinha dito. O espectador, esse é a verdadeira vítima do texto de
Pinter: entramos em cena, servimo-nos educadamente de uma bebida e vamos
deambulando pelos diferentes cenários, espreitando, constrangidos, as vidas
duplas das personagens em permanente conflito.
Falei com o meu filho mais velho no final da
récita e ele resumiu de forma simples, mas absolutamente esclarecedora, o que
tínhamos acabado de ver: “Estivemos num Facebook ao vivo, a fazer um scrolling
da vida dos outros”.
O
mais assustador é que nós, os espectadores, as mulheres e os homens reais deste
mundo, ficámos durante aquele tempo a olhar para nós próprios, num espelho que
reflectia também, quiçá, o nosso passado, o nosso presente e o nosso futuro. Onde
surgiram os fantasmas que nos atormentam, as relações de amizade falhadas, os casos
amorosos por concluir e… as nossas próprias traições.
Mais
do que as palavras de Pinter, na voz e no corpo destes actores, e nas mãos do
Paulo do Tiago e da Helena, foram os silêncios que me incomodaram.
E de que maneira.
In O Montemorense, Dezembro de 2019
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