Primeiro aborrecimento
Estou a ficar muito aborrecido com esta pandemia. Como dizia um senhor, há
uns anos, “Não gosto de ficar sequestrado, pá! Não gosto!” Mas esta
minha apoquentação não é pelo vírus em si, que já provou por esse mundo fora
ser mesmo mauzinho e que até mata muitas pessoas, e tudo. São, lá está, as pessoas,
em si, que me aborrecem.
Passei este tempo todo fechado em casa (mas sempre de fato e gravata, não
fosse haver ordem repentina para fazermos concertos), no sentido de colaborar
com aquelas senhoras com ar já muito cansado que nos entram em casa a toda a
hora a falar de mortos, de recuperados, de infectados e má-na-sê-quê. Eis senão
quando, nas redes sociais, começam a aparecer publicações de manos e manas que
se fartam de passear o cão, de lavar o carro, de conviver com os vizinhos,
dizendo até que com vizinhos não faz mal nenhum que é tudo gente séria e de
confiança. Gostava de entender isto.
Segundo aborrecimento
Agora, um dos passatempos da televisão destes últimos tempos (vejo muita
televisão, já se sabe!) é ir até aos funerais fazer umas imagens descontraídas
para mostrar ao pessoal que fica em casa… e que não pode ir aos funerais. E o
que é que nós vemos? Pessoal a chorar baba e ranho (há canais que fazem grande planos
destas secreções naturais), abraçado a toda a gente, aproveitando assim a onda
do abracinho comovido para sentir alguma proximidade, porque depois regressam a
casa e, por vezes, ficam sem ninguém para abraçar.
Terceiro aborrecimento
Outra coisa que me incomodou nestes dias tristes, e muito, foi aquela briga
assaz curiosa e engraçada entre o Primeiro Ministro e o Ministro das Finanças por
causa de um comentário que aquele senhor que ainda pensa que está na TVI fez.
Ora, Marcelo já devia ter fechado o megafone há muito tempo, só que ninguém tem
coragem para lho dizer. Por vezes, (quase nunca) ninguém lhe pede a opinião e ele
acaba por dá-la, dividida em vários pontos (quase sempre dois) e de borla. Fiz
alguma investigação e descobri, vejam lá só, que esta pequeníssima desavença
foi tirada, sem tirar nem pôr, de uma cena de uma novela venezuelana em que ele,
todo machão, diz, ela, muito sorrateira, desdiz, e depois vem a bisbilhoteira
da vizinha meter o nariz onde não é chamada. Acabam todos à pancada, mas depois
de um encontro romântico (sem a vizinha, que é chata!!!), o casal continua
junto, com renovadas juras de amor. Pelo menos, até Junho.
Quarto aborrecimento
Isto hoje são só desabafos. Eu não saio de casa, mas sei de tudo o que se
passa por aí. Porquê? Porque, nos intervalos dos treinos físicos que agora se
fazem a dar com um pau, a malta vai dar umas voltas para espairecer e desata a
tirar fotos e a mandar informação. Pois, uma coisa que me aborreceu
profundamente é a falta de sensibilidade de algumas pessoas anónimas que não
gostam de fazer as coisas às claras. Então não é que houve uns jardineiros
amadores que foram arrancar as plantas das floreiras da renovada rua de Aviz?
Isso não é forma de manifestar o seu desagrado em relação ao ar inestético das
floreiras, até porque as flores não têm culpa nenhuma. A falta de honestidade
passa, isso sim, por outra questão: se foi o género de flor que desagradou ao
sensível energúmeno, este, para ser intelectual e esteticamente honesto, só
deveria ter tido o cuidado de lá ter plantado outra a seu gosto. Eu sei que corria
o risco de outro pateta não concordar e arrancar os seus malmequeres e trocá-los
por miosótis ou por um alho francês, por exemplo. Mas isso era uma questão que
se ia resolvendo nas noites seguintes.
Quinto aborrecimento
Vou terminar, avançando com uma inconfidência que me pode valer as malas à
porta (já esteve mais longe de acontecer): um dia destes, a Fofa começou a fazer exercício físico com mais intensidade do que o habitual e eu perguntei-lhe qual o motivo de tanto esforço. Sorriu (cá em casa
não usamos máscara e eu vi-lhe o sorriso maroto) e respondeu: “Assim que
aquecer o tempo, vamos à praia.” “À praia?”, admirei-me. “Vai ser
uma enchente e vamos ter de ficar presos naquelas gaiolas art-déco de acrílico (parecemos
uns periquitos da China)!!” Ela respondeu-me, com a respiração entrecortada:
“Vamos cedinho, tipo três, quatro da manhã, chegamos lá, tiramos a senha
verde para irmos para o areal, a senha azul para o duche, a senha vermelha para
o restaurante, a senha branca para as bolas de Berlim e a senha amarela para
passear à beira-mar. Anima-te e faz uns exercícios também. Vais ver que, por
volta das onze da noite, já estamos em casa.”
E eu não tive outro remédio.
2 comentários:
Maravilhoso!!! :) :) :) clap clap clap <3 <3 <3
Obrigada, João, pelos momentos de humor que ajudam a aliviar o confinamento.
Bj.
Teresa Fonseca
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