terça-feira, 16 de junho de 2020

Tempos estranhos





Floyd

            E passou um mês. Trinta dias alucinantes em que a normalidade da nossa vida continuou a sofrer constantes alterações diárias, quer por motivos vindos da esfera pública, quer por acontecimentos de maior proximidade, que nos afectaram, de certa forma, o nosso dia-a-dia, já de si tão complicado. O assassinato, pela polícia, de George Floyd em Minneapolis, no estado do Minnesota, no dia 25 de Maio, passou a marcar o nosso tempo, quando trouxe à superfície velhos conflitos de consciência colectiva, latentes mas vivos, que os norte-americanos vinham, pensavam eles, a ignorar. A diversidade racial nos Estados Unidos da América provocou, desde o início da História daquele país, cismas incontornáveis e com uma solução visivelmente distante. Aliada às diferentes raças e etnias, veio a religião, e a prevalência do Puritanismo que, tal como o Catolicismo na Europa, deixou atrás de si um rasto de perseguições e mortes, em nome dos acertos de fé que motivavam os seus mentores.
            Paralelamente às manifestações nos Estados Unidos e um pouco por todo o mundo, em que se exigiu, mais uma vez, justiça e tratamento igual por parte das forças de segurança em relação aos cidadãos, independentemente da cor da pele, choveu uma tempestade de caos e destruição. Sabemos que gritar em grupo por uma causa, não será, nunca o foi, como gritar sozinho no meio de uma avenida ou de uma praça. O grupo, pelas suas características de, paradoxalmente, quase anonimato, angaria uma força tal e uma personalidade de tal modo perigosa, que os seus actos, praticados na multidão, acabam por extravasar os verdadeiros motivos que o levou a manifestar-se.
            Dos assaltos e dos saques, dos incêndios e da violência física entre manifestantes e a polícia, a raiva e a revolta que moviam os mais radicais viraram-se para outros alvos, de forma cega e absolutamente grosseira e indiscriminada. Estátuas começaram a ser vandalizadas um pouco por todo o mundo, sem qualquer fundamento ou sem que alguém procurasse uma solução para os problemas que estamos a viver. Muitos, levados pela cultura do ódio e da ignorância cega, esqueceram por completo a verdadeira virtude da luta pelos direitos humanos e, neste caso específico, pelos direitos dos negros no país daquela esquisita figura a que chamam Trump. Achei estranho este ataque aos inertes blocos de estatuária e concluí que há mais ignorantes no planeta Terra do que poderíamos imaginar, pois muitos parecem estar esquecidos das bases em que fomos construindo a nossa civilização. Ou, então, nunca perceberam as mentalidades que dominaram cada tempo, cada época, todas delas conduzidas e plasticinadas pelos homens da política e da religião, pela ciência e, sobretudo e de forma mais abrangente, pelo pensamento vigente. É por isso que é de primordial importância perceber, mas perceber com o cérebro todo, que a História das nações se fez sempre com exploradores e explorados, escravos e homens livres, poderosos e desprotegidos, ricos e pobres, conquistadores e conquistados, cultos e ignorantes, vencedores e vencidos.
Porém, hoje, a História não pode continuar a ser construída só por ignorantes. Destruir não me parece a melhor forma de homenagear a memória de Rosa Parks, de Luther King e de Nelson Mandela, entre muitos outros. De acordo com o que tenho lido, nenhum deles pediu que se destruísse qualquer estátua ou incendiasse qualquer edifício. Por isso, e por mais incrível que pareça, se dermos seguimento a esta nova política de atentados ao património, não haverá muitas ruas a manterem o mesmo nome, ou muitas estátuas de pé nos seus pedestais. Nem o Convento de Mafra poderá ficar inteiro.
Não se está a fazer o que é fundamental: combater o racismo de hoje porque, desta forma, o futuro da História tem toda a possibilidade de ser alterado. Quanto ao passado, por muito tenebroso que tenha sido, nada dele deve ser eliminado para que esse futuro que desejamos faça claro sentido.


Tele-professor

            Fui tele-professor durante três meses. Não gostei. Não gostei mesmo nada. Fugiu-me de repente a rotina da minha escola. O encontro e o convívio com os colegas e alunos desapareceu, as salas de aula transformam-se num ecrã frio e impessoal, as matérias tornaram-se estranhas quando transmitidas assim à distância, e a motivação de quem gosta de estar numa sala de aula desceu a pique e nunca soubemos, na verdade, se a informação passada através do microfone, foi, de facto, a recebida pelos alunos.
Por isso, tenham lá cuidado com as férias, com as manifestações, com as peregrinações, com as cerimónias religiosas, com as Feiras, com os concertos e má-na-sê-quê, porque eu, em Setembro, quero ir para escola, ensinar alunos “de verdade” e continuar a acreditar numa escola de futuro com gente de carne e osso e com genuína vontade de aprender.
Olhem, caros oito leitores, eu já estou por tudo. Sou muito humilde a pedir: quero uma sala, um pau de giz e um quadro preto. E uma quantidade de alunos à minha frente. É quanto basta. Obrigado.
Livros? Não preciso. Havia um jovem, nos seus trinta e poucos, que “não sabia nada de finanças. Nem consta que tivesse biblioteca”.
           

João Luís Nabo
In "O Montemorense",  Junho de 2020

4 comentários:

Leonel Craveiro disse...

Bom, muito bom.
Grande abraço

Unknown disse...

LI, COM TOTAL CONCORDÂNCIA , A ESCRITA DO PROF JOÃO LUIS NABO..MAS, E DE REPENTE...
.. ASSALTOU ME A FOME DE CANTAR , EM CONCERTOS OU ENSAIOS, e vem - me à memória.... NAS ESCADARIAS , NAS RUAS , NA CAMIONETA, NOS AVIOES , NO AUDITÓRIO STRAVINSKY , NO MAR NEGRO ( sim, no Mar Negro ! )... tanto, tanto lugar ... E TANTA, TANTA SAUDADE QUE ATÉ FAZ DOER...TUDO, SOB A DIRECÇÃO DO MAESTRO JOÃO LUIS NABO..
OBRIGADO, JOÃO LUIS.
José Bexiga

Cloreto de Sódio disse...

Cantámos um pouco por toda a Europa, em grandes salas e também nestes lugares improváveis mas que nos deram tanto ou mais prazer!!

Teresa F. disse...

Obrigada, João, pelo teu desabafo.
Ainda bem que estou reformada, mesmo assim com enormes saudades dos meus 60 queridos alunos seniores.
Quanto ao recismo e etc., subscrevo inteiramente.
Bjs.
Teresa F.

Distraídos crónicos...


Contador de visitas

Contador de visitas
Hospedagem gratis Hospedagem gratis

Arquivo do blogue

Acerca de mim

A minha foto
Montemor-o-Novo, Alto Alentejo, Portugal
Powered By Blogger