terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

Ou há democracia... ou comem todos

 


Ou há democracia...

Tem sido de loucos este tempo estranho, diferente e improvável. Há um ano, a nossa vida decorria dentro da normalidade, com os nossos problemazinhos de fácil resolução, com as nossas birrinhas por isto ou por aquilo, com as nossas zangas no emprego, porque o chefe gosta mais de ti do que de mim.

Meses depois de lançado o alerta, os dias tornaram-se iguais, mas para pior, salpicados a toda a hora por notícias que nos dão números, números e mais números, que nos põem a cabeça num rodopio, num deprimente enjoo sem limites. São os falecidos, os internados em enfermaria, os internados em UCI, os casos activos, os novos casos... São gastas desta forma as horas dos noticiários em todos os canais. Oferece-se ao espectador o que ele quer ver. É a lei da oferta e da procura aplicada aos tempos de pandemia. Vivemos para perceber o panorama do país em forma de gráficos, e ansiamos loucamente pela descida dos números. Contudo, vamos passear à beira-rio, ou, quem sabe, organizamos um jantar num determinado restaurante que diz descaradamente lutar pelo direito à liberdade, com a Grândola do Zeca cantada sem pudor pelos alegres convivas e num desrespeito absoluto pelo valor da democracia e, mais do que isso, pelo valor da vida. É um gozo displicente com quem se mantém em casa e um insulto a quem é obrigado a manter as actividades profissionais suspensas, em cumprimento das regras impostas.

Nada disto acontece por acaso. A ocasião faz o ladrão e má-na-sê-quê, não é? Costa é um primeiro-ministro tolerante. Costa é um primeiro-ministro de boa fé. Costa é um político fofinho. Este pai bonacheirão e o também fixolas avô Marcelo põem as autoridades a fiscalizar, a mandar parar as viaturas, a perguntar aos condutores se vão dar banho ao cão ou se vão dar farelos às galinhas, num galinheiro que fica mesmo ali à curva, a seguir ao moinho velho. “Vá lá, passe lá, vá dar comida às suas galinhas, senão elas morrem, coitadinhas”, diz o capitão da guarda com voz forte, mandando avançar para, educadamente, leccionar depois uma aula sobre civismo e comportamento ao condutor seguinte e à respectiva mulher, entretida a fazer umas botinhas para o neto que vai nascer daí a três anos. A justiça branda faz o povo rebelde, dizia-me o meu saudoso Pai, e diziam os sábios como ele, e começo a acreditar que assim é. Aliás, o que há… à vista está.

...ou comem todos

Nunca, em tantos anos de democracia e liberdade, se queixou tanto o povo. As lamentações sucedem-se em cascata, muitas vezes sem se saber exactamente porquê. Muitas nem sequer têm razão de ser. Partem de cidadãos que, devido à especificidade do seu emprego, estão em casa em teletrabalho, recebendo, e merecidamente, o seu ordenado por inteiro, sem que essa preocupação lhe afecte o raciocínio. (Sim, porque a falta de dinheiro afecta o raciocínio de qualquer um.) Pois estes queixam-se porque têm os filhos todos em casa, em ensino à distância, mais o seu querido cônjuge em teletrabalho também, mostrando que é preciso ter uma capacidade gigantesca para gerir computadores, quebras de Internet, refeições, banhos, horas de sono, trabalho e lazer (pouco). Terão as suas razões, naturalmente que sim. Relativamente.

Outros portugueses há que, também devido à especificidade do seu trabalho, se encontram neste momento… sem trabalho. Contudo, cumprem corajosamente as medidas impostas pelo Governo, porque não querem ser eles os responsáveis pelas infecções e pelas mortes que ainda poderão ocorrer, depois da lista já infindável, onde constam queridos amigos nossos que estariam vivos se não fosse o vírus e que partiram sem que os pudéssemos ter acompanhado à sua morada derradeira.

Dos mais atingidos estão, sem dúvida, todos os ligados à indústria hoteleira e à restauração, aos ginásios e ao desporto, ao mundo da estética e da moda, à música, ao cinema, ao teatro, ao bailado e a outras artes de palco, que se encontram hoje a viver, juntamente com as suas famílias, os momentos mais difíceis das suas vidas. Contas para saldar, ordenados para cumprir, empréstimos a dilatarem-se, rendas e impostos para pagar e a necessidade de comer todos os dias. Torna-se difícil gerir tudo isto juntamente com a ansiedade que os assalta pela incerteza do futuro e, mais do que tudo, se acrescentarmos a sensação de injustiça de que são alvo quando vêem alguns dos seus pares a desafiarem o Governo, a gozarem com as autoridades, no fundo, a assumirem comportamentos como se vivessem num país imaginário.

Esta gritante falta de solidariedade e de respeito faz-nos desejar aos infractores que nunca tenham de lidar com infecções ou mortes no seio das suas famílias ou nas suas relações de amizade. Faz-nos desejar ainda que, embora furem as regras, consigam depois ser encarados pelos outros como pessoas de bem e não como criminosos sem perdão. E quando digo pelos outros, refiro-me aos que perderam os seus rendimentos, aos que ficaram sem emprego, aos que não fazem concertos, cinema, teatro ou bailado há um ano, aos que deixaram de ter comida para dar aos filhos e a têm de ir pedir a uma associação benemérita. 

Os outros são estes.


João Luís Nabo

In "O Montemorense", Fevereiro de 2021

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