É a primeira vez que escrevo uma carta a um cão. Pode ser sintoma
de caquetismo precoce, pode ser um pretexto para um exercício
literário diferente ou, quem sabe, será tão somente uma
manifestação de ternura em nome de todos os que, cá em casa, tal
como eu, te consideram mais um membro da família.
Tu não és um cão, sabias? És um gato persa, uma águia imperial,
uma tartaruga de Madagáscar, um hamster de pêlo sedoso, um peixinho
dourado. És um companheiro que nos recebe entusiasmado quando
chegamos a casa, no final do dia. És um vigilante que desperta ao
menor ruído e denuncias, com cuidado, quem se aproxima de nós. És
um companheiro silencioso, sentimentalão, que nos acompanha nos bons
e nos maus momentos. Que fica triste quando o pessoal anda mais
abatido, que salta em direcção ao Sol ao sentir as energias
positivas a circularem pela casa.
Sabes quando podes estar connosco e quando deves ir para o teu
canto, quando deves comer e quando deves esperar. E nem te aborreces
com os truques meio circences que todos te obrigam a fazer. E os
amigos dos meus filhos? São uma fonte de inspiração para ti! A tua
alegria redobra quando eles por cá estão. Todos te mimam e
respeitam como animal quase racional que és. E tu gostas, maroto!!
Tu gostas!
Mas
chegou o momento de te revelar uma coisa. Um segredo que nunca
partilhei contigo por vergonha, confesso. Aqui vai... com o meu
pedido de desculpas: quando entraste cá em casa pela primeira vez,
uma bolinha de pêlo, nos braços da Rosária, nunca imaginei que
vinhas para ficar. Julgava que eras apena mais uma visita. Porque
nunca concordei em alargar o nosso espaço a um canídeo. Cães em
casa? Náááá´, era a resposta, sempre que insistiam. Na noite da
tua chegada, e depois de perceber que não estavas de passagem,
senti-me incomodado a princípio. Porque a minha opinião não tinha
sido respeitada. Porque eras o resultado de um plano bem urdido pela
família e pela Rosária, cúmplice desta espécie de desobediência
civil. Mas foram breves os momentos de “incómodo”. Bastaram uns
minutos para entender a ligação que começou a nascer entre nós os
dois. Entre nós os cinco e tu.
E
foi um privilégio assistir à tua metamorfose: ao longo dos meses,
adquiriste o perfil de uma esfinge, a coragem de um leão, a
sensibilidade de um cavalo, a classe de uma pantera negra, o bom
humor de quem está bem com a vida, o espírito brincalhão de uma
criança de dois anos, a generosidade, enfim, de um verdadeiro
labrador.
Sei que podemos contar contigo e também sei que a casa ficará mais
vazia quando um dia nos deixares... Que esse dia venha longe. Que o
teu olhar pacífico e, por vezes, melancólico, que nos embebeda de
ternura, repouse sobre nós por muitos anos. Se podíamos viver sem ti? Poder, podíamos. Mas não seria a mesma
coisa.
Quando um dia leres estas linhas (eu acredito que não falta muito
para aprenderes a ler), saberás, preto no branco, que ficou
registado para conhecimento do universo que, afinal, somos os seis
uma família.
Recebe umas festinhas em nome de todos.
In "O Montemorense", 20 de Março de 2015
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